Opinião

Fake news atuaram como força sistêmica ao longo da história

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26 de outubro de 2018, 6h47

O fenômeno das fake news, muito por conta da replicação quase automática das notícias falsas via redes sociais e aplicativos de comunicação, vem atribulando o processo eleitoral de diversas nações. Ainda não se sabe o impacto real que o compartilhamento de desinformação teve na eleição de Donald Trump, nos Estados Unidos, e está tendo na dinâmica política brasileira. O que se sabe, no entanto, é que esse impacto está longe de ser desprezível. Apesar de a difusão massiva de inverdades ser considerada um processo atual, a história, não sem certa licença poética, está repleta de fake news. Elas já ditaram o rumo de guerras, manipularam a escolha de líderes e sustentaram regimes autoritários.

Não é exagero dizer que a fundação do Estado alemão está embasada sob a cuidadosa manipulação da verdade. Em 1870, o desfecho sobre a sucessão do então vago trono espanhol, embora opusesse a Prússia e a França, terminaria pacificamente se dependesse dos soberanos Napoleão III e Guilherme I. Contudo, o chanceler prussiano Otto Von Bismarck, vislumbrando uma oportunidade única de fomentar o nacionalismo germânico e angariar o apoio dos autônomos bávaros, sagazmente adulterou um telegrama diplomático. Conhecida como O Despacho de Ems, a missiva foi considerada ultrajante por ambos os mandatários e desencadeou a Guerra Franco-Prussiana (1870-1871). Com a vitória dos germânicos e a anexação da Alsácia e Lorena, a Alemanha finalmente foi unificada. Bismarck, por causa de seus feitos, até hoje é considerado um dos maiores estadistas alemães.

Décadas mais tarde, a alteração inescrupulosa da verdade ditou os rumos do acontecimento mais importante do século XX: a Revolução Russa. O moribundo Lenin teria alertado em seu testamento político sobre os perigos do autoritarismo de Stalin, que, segundo escreveu, já concentrava em suas mãos um imensurável poder. Após a morte de Lenin, a disputa pela liderança do Partido Comunista se tornou aberta. O intelectual Trotsky, preferido para a sucessão, foi engolido pela astúcia do georgiano, que se aproveitou da burocracia que controlava para legitimar seu poder. Nos anos seguintes, Stalin adulterou fotografias em que Trotsky figurava junto de Lenin, eliminando seu opositor dos registros revolucionários na tentativa de apagá-lo do imaginário bolchevista e se consolidar como farol incontestável da revolução. A manipulação stalinista só foi revelada após a morte do ditador, durante o Degelo de Kruschev dos anos 1950.

A história do Brasil, como não poderia deixar de ser, também está repleta de passagens que podem ser associadas às atuais fake news. Um dos motivos da eclosão da Guerra do Paraguai (1864-1870) foi a desinformação transmitida ao ditador paraguaio Solano López, por meio de seu incipiente corpo diplomático, de que o império brasileiro interviria em seu país, assim como havia feito no Uruguai. O temor de Solano contribuiu para que se antecipasse e ordenasse a invasão das províncias argentinas de Corrientes e Entre Ríos, de Mato Grosso e do Rio Grande do Sul, dando início aos combates. Talvez, se possuísse um corpo diplomático estruturado e atuante no Brasil, o ditador poderia ser informado de que a soberania do Paraguai, e não sua subjugação, interessava a Dom Pedro II. Dessa forma, em um exercício de imaginação, a guerra poderia ter sido evitada.

O causo brasileiro mais famoso, no entanto, é o Plano Cohen (1937) — suposto plano comunista de insurreição, nos moldes da Intentona de 1935, que havia chegado às mãos das forças armadas. O conteúdo do plano e a agitação social por ele causada serviriam aos interesses do governo varguista. O turbulento cenário social, permeado pelos embates entre os adeptos da Ação Integralista Brasileira (AIB) e os numerosos partidários da Ação Nacional Libertadora (ANL), foi controlado a fórceps por Vargas, que instaurou o ditatorial Estado Novo. Posteriormente, descobriu-se que o Plano Cohen foi redigido pelo capitão Olímpio Mourão Filho, na época, chefe do serviço secreto da AIB. Em mais uma das questões paradoxais da história nacional, Vargas acabou se valendo do documento falso de Mourão para banir a AIB, coincidentemente, o partido do capitão. Anos depois, Mourão viria a ter papel de destaque no golpe de 1964.

As fake news atuaram como força sistêmica na história, contribuindo, diversas vezes, para rumos indesejados. Logo, a preocupação acadêmica e da mídia em relação à disseminação de desinformação não se trata de mero alarmismo. Nos termos dos exemplos históricos, o fenômeno não é novo, contudo, a magnitude por ele alcançada e a porosidade da população em relação às notícias falsas devem, invariavelmente, acender o sinal de alerta.

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