Celso de Mello enfrenta autoritarismo desde quando era promotor na ditadura
24 de outubro de 2018, 13h52
Nos últimos dias, o decano do Supremo Tribunal Federal, ministro Celso de Mello, ganhou os holofotes por dirigir duras críticas à declaração do deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) de que o Supremo Tribunal Federal pode ser fechado caso contrarie os interesses do seu pai, o candidato à Presidência Jair Bolsonaro (PSL) e aos ataques à ministra Rosa Weber por um coronel da reserva do Exército. Mas enfrentar arroubos autoritários não é novidade para Celso de Mello.
Celso tomou posse como promotor de Justiça do Ministério Público de São Paulo em 3 de novembro de 1970, aprovado em primeiro lugar em um concurso com 1.118 concorrentes. Corria o governo do general Emílio Garrastazu Médici e vicejava o Ato Institucional 5. Em seu discurso de posse, o jovem promotor discorreu sobre seu papel e de seus colegas em uma sociedade em que não prevaleciam as liberdades fundamentais e sobre o direito de resistência às normas ilegítimas da ditadura militar. Celso de Mello começou, ali, a chamar a atenção de desafetos e admiradores.
Logo ele foi alocado na 4ª Promotoria de Osasco. E foi lá que enfrentou o temido secretário de Segurança Pública, o coronel Erasmo Dias, quando trabalhava junto à Vara da Corregedoria da Polícia e dos Presídios da cidade da grande São Paulo.
O fato de Celso nunca pedir prisões para averiguação, abrir sistemáticas sindicâncias para investigar abusos policiais e processá-los quando encontrava indícios de que haviam passado da linha provocou a ira do coronel. À época, o secretário disse à imprensa: “Há um promotor em Osasco, um tal Celso de Mello, agindo subversivamente, colocando a população contra a Polícia”.
Em uma época em que o Ministério Público era atrelado ao Executivo, o comportamento rebelde não o ajudou na carreira. Ele e seu grupo foram mantidos na geladeira, longe das promoções. Tanto que só conseguiu chegar a procurador de Justiça a duras penas, em 1989, pouco antes de ser nomeado ministro do Supremo. Isso não o impediu, contudo, de fazer correições em presídios e defender insistentemente o direito de presos à ampla defesa — o que faz até hoje, a cada dia com mais vigor.
Defesa das liberdades
Em meados dos anos 70, o jornalista Cláudio Marques, que tinha uma coluna na página 2 do Shopping News, ficou famoso por “alertar as autoridades” sobre a subversão. Ou seja: delatava quem era contra a ditadura reinante, o que costumava levar a condenações sem julgamento. Um de seus alvos foi o jornalista Vladimir Herzog, diretor da TV Cultura. Acusado por Marques de ser um perigoso subversivo, Herzog foi assassinado nos porões do regime.
Na época, Celso de Mello integrava a assessoria jurídica da Secretaria da Cultura paulista. O chefe da pasta, José Mindlin, era outro destinatário frequente dos ataques paranoicos de Cláudio Marques. “A campanha ganhou um vulto que provocou a dissolução da equipe da Secretaria de Cultura”, contou Celso de Mello à ConJur.
Após passar pela Secretaria da Cultura, Celso de Mello voltou a desagradar a ditadura militar. Em 24 de março de 1977, na inauguração do Fórum de Osasco, Celso falou em nome do Ministério Público para um auditório lotado. Presentes à solenidade o comando do TJ paulista, do Ministério Público, o prefeito Francisco Rossi e um coronel representante do Exército.
Depois de mornos discursos, Celso de Mello ocupa o microfone e faz uma fala contundente atacando a existência de instrumentos autoritários no ordenamento jurídico brasileiro, o estado das prisões, as detenções arbitrárias. O coronel presente esfrega as mãos nervosamente. O AI-5 só seria revogado 1 ano e 9 meses depois. Mas o discurso foi aplaudido de pé — menos pelas autoridades que integravam a mesa, imóveis, impassíveis. Somente o corregedor-geral do Ministério Público, Alberto Hermínio Marques Porto, se levantou, atravessou o salão e abraçou Celso de Mello.
No mesmo dia, o corregedor-geral do MP recebeu o recado de que, “em nome do bom relacionamento entre o governo e o MP”, seria preciso punir o promotor abusado. O corregedor perguntou ao interlocutor se ele se dispunha a fazer um pedido de sindicância contra o exercício da liberdade de expressão. Diante da resposta negativa, não houve sequer sindicância contra Celso de Mello.
No dia seguinte ao polêmico discurso, o jornal O Estado de S. Paulo destacou a defesa dos direitos humanos feita por Celso de Mello e suas críticas ao AI-5. As críticas se tornaram a principal notícia nos diários de Osasco, e Celso foi distinguido como cidadão honorário do município.
Críticas ao autoritarismo
Nos últimos tempos, Celso de Mello, como decano do STF, tem assumido o papel de porta-voz da corte contra declarações autoritárias, críticas à sua atuação ou tentativas de intimidação.
Em março de 2016, o ministro rebateu a afirmação do ex-presidente Lula — exposta em grampos divulgados pelo juiz Sergio Moro — de que o país tem “uma Suprema Corte totalmente acovardada”. O pensamento, disse o decano do STF, é uma “reação torpe e indigna, típica de mentes autocráticas e arrogantes, que não conseguem disfarçar o temor do império da lei e de juízes livres e independentes”.
A República, afirmou Celso de Mello, “além de não admitir privilégios, repudia a outorga de favores especiais e rejeita a concessão de tratamentos diferenciados aos detentores do poder ou a quem quer que seja”. E o magistrado ainda deixou seu recado: “Ninguém está acima da autoridade das leis e da Constituição de nosso país, a significar que condutas criminosas perpetradas à sombra do Poder jamais serão toleradas, e os agentes que as houverem praticado”.
Na véspera do julgamento do pedido de Habeas Corpus preventivo de Lula, em abril de 2018, o comandante do Exército, general Eduardo Villas Bôas, publicou, em sua conta no Twitter, mensagens que foram entendidas como uma intimidação ao Supremo. “Asseguro à Nação que o Exército Brasileiro julga compartilhar o anseio de todos os cidadãos de bem de repúdio à impunidade e de respeito à Constituição, à paz social e à Democracia, bem como se mantém atento às suas missões institucionais”, declarou o militar em uma das postagens.
Antes de proferir seu voto no caso, o decano do STF repudiou as ameaças de intervenção militar. “Nossa própria experiência histórica revela-nos que insurgências de natureza pretoriana, à semelhança da ideia metafórica do ovo da serpente, descaracterizam a legitimidade do poder civil instituído e fragilizam as instituições democráticas, ao mesmo tempo em que desrespeitam a autoridade suprema da Constituição e das leis da República”.
O ministro lembrou que intervenções militares costumam gerar governos ditatoriais – algo “inaceitável” e que gera “danos irreversíveis” ao sistema democrático.
“Intervenções castrenses, quando efetivadas e tornadas vitoriosas, tendem, na lógica do regime supressor das liberdades, a diminuir, quando não a eliminar, o espaço institucional reservado ao dissenso, limitando, desse modo, com danos irreversíveis ao sistema democrático, a possibilidade de livre expansão da atividade política e do exercício pleno da cidadania. Tudo isso, senhora presidente, é inaceitável. O respeito indeclinável à Constituição e às leis da República representa limite inultrapassável, a que se devem submeter os agentes do Estado, quaisquer que sejam os estamentos a que eles pertençam”, apontou Celso de Mello.
No domingo (21/10), foi divulgado vídeo de uma “aula” que Eduardo Bolsonaro deu em julho para concurseiros da Polícia Federal. Na ocasião, o deputado federal eleito com mais votos na história das eleições brasileiras disse que o STF poderá ser fechado, e seus ministros, presos, sem que ninguém protestasse contra isso.
Segundo Bolsonaro filho, se o STF tentasse impugnar a candidatura de seu pai — função que não cabe à corte, mas ao Tribunal Superior Eleitoral —, teria que "pagar pra ver". Ele disse que, "se quiser fechar o STF", "você não manda nem um jipe, cara, manda um soldado e um cabo". O deputado ainda declarou que, caso um ministro da corte fosse preso — como Gilmar Mendes —, não haveria manifestações populares em favor dele.
Em nota divulgada na segunda-feira (22/10), Celso de Mello classificou a fala como "inaceitável visão autoritária". "Essa declaração, além de inconsequente e golpista, mostra bem o tipo (irresponsável) de parlamentar cuja atuação no Congresso Nacional, mantida essa inaceitável visão autoritária, só comprometerá a integridade da ordem democrática e o respeito indeclinável que se deve ter pela supremacia da Constituição da República".
No dia seguinte, o decano repudiou os ataques do coronel da reserva do Exército Carlos Alves a Rosa Weber. No vídeo, o militar, com evidentes sinais de desequilíbrio, ofende gravemente a ministra. O coronel também diz que se a ministra impedir que Jair Bolsonaro (PSL) tome posse como presidente por causa de crimes eleitorais, ele fechará o Supremo. Bolsonaro é réu numa ação de investigação ajuizada pelo PT no Tribunal Superior Eleitoral. A acusação é de caixa 2 e financiamento empresarial ilegal por causa um esquema de disparo em massa de milhões de mensagens pelo WhatsApp.
Em sessão da 2ª Turma nesta terça, o ministro Celso falou em defesa dos colegas e chamou atenção para os crimes cometidos pelo oficial da reserva do Exército no vídeo. A turma decidiu, por unanimidade, mandar a Procuradoria-Geral da República investigar o cometimento de crimes.
“O discurso imundo, sórdido e repugnante do agente que ofendeu a honra da ministra Rosa Weber – uma mulher digna e magistrada de honorabilidade inatacável, que exerce, como sempre exerceu, a função judicial com talento e isenção, de modo sóbrio e competente – exteriorizou-se mediante linguagem profundamente insultuosa, desqualificada por palavras superlativamente grosseiras e boçais, próprias de quem possui reduzidíssimo e tosco universo vocabular, indignas de quem diz ser Oficial das Forças Armadas, instituições permanentes do Estado brasileiro que se posicionam acima das paixões irracionais e não se deixam por elas contaminar, paixões essas que cegam aqueles que, a pretexto de exercerem a liberdade de palavra – que constitui um dos mais preciosos privilégios dos cidadãos da República –, resvalam para o plano subalterno da prática abusiva e criminosa da calúnia, da difamação e da injúria”.
“O primarismo vociferante desse ofensor da honra alheia faz-me lembrar daqueles personagens patéticos que, privados da capacidade de pensar com inteligência, optam por manifestar ódio visceral e demonstrar intolerância radical contra os que consideram seus inimigos, expressando, na anomalia dessa conduta, a incapacidade de conviver em harmonia e com respeito pela alteridade no seio de uma sociedade fundada em bases democráticas”, criticou o decano.
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