Opinião

Marco regulatório e financiamento público no setor de saneamento

Autores

  • Pedro Estevam Serrano

    é advogado professor de Direito Constitucional Fundamentos de Direito Público e Teoria Geral do Direito da PUC-SP pós-doutor em Teoria Geral do Direito pela Universidade de Lisboa e doutor e mestre em Direito do Estado pela PUC-SP.

  • Anderson Medeiros Bonfim

    é mestrando em Direito Administrativo pela PUC-SP; professor assistente de Direito Constitucional da Faculdade de Direito da PUC-SP e advogado.

23 de outubro de 2018, 6h22

Recentemente foi editada a Medida Provisória 844/2018 para atribuir a uma agência reguladora federal, a Agência Nacional de Águas (ANA), a competência para a instituição de normas nacionais para a regulação dos serviços públicos de saneamento. As matérias a serem objeto de regulação são, dentre outras, padronização de contratos, regime remuneratório e critérios de qualidade e eficiência.

Ainda que reconhecida a titularidade dos serviços públicos de saneamento pelos municípios, condicionou-se o acesso aos recursos federais ao cumprimento da citada regulação federal, a qual deverá basear-se em determinados princípios e regras, tais como livre concorrência, eficiência, sustentabilidade, cooperação, universalização, modicidade tarifária e, por fim, adoção de métodos, técnicas e processos adequados às peculiaridades locais e regionais.

Além do mais, alterando-se a sistemática anterior, o novo marco regulatório vedou parcerias entre órgãos públicos sem que antes haja chamamento endereçado à iniciativa privada e, em havendo interessados, seja realizada licitação pública.

Veja-se, portanto, que a edição da medida provisória em exame alterou significativamente o regime jurídico do saneamento até então vigente especialmente ao estimular os municípios à obediência da regulação federal e, ainda, instituir um mecanismo adicional de inserção da iniciativa privada no setor, preservada a titularidade pública.

Independentemente dos eventuais aprimoramentos que possam haver ao longo da conversão da medida provisória em lei, um primeiro ponto a se destacar é que, no Brasil, a regulação das relações econômicas é marcada, historicamente, por pouca racionalidade e eficácia em um cenário em que é dever do Estado justificar, constantemente, as ações por meio de transparência, interlocução e busca de soluções dialógicas. Além do mais, a edição de uma espécie normativa excepcional e pouco democrática como a medida provisória tende a comprometer uma adequada análise de impacto regulatório.

Com efeito, a atividade regulatória do Estado deve ser fruto da ponderação entre os valores econômicos e sociais que sofrerão a sua incidência. É preciso considerar, ainda, que a regulação busca, essencialmente, a promoção de valores essenciais, tais como desenvolvimento social e econômico. Entretanto, a realização de referidos fins depende, dentre outras medidas, da avaliação da necessidade e eficácia dos instrumentos regulatórios, dos seus custos e efeitos, o que, no que tange ao novo marco regulatório do saneamento, não ocorreu.

Em outras palavras, a ação estatal não foi adequadamente justificada nem foram analisados seus possíveis custos, benefícios e alternativas. Isto é, não houve uma adequada análise dos impactos para os grupos socialmente vulneráveis e excluídos, meio ambiente e atividades econômicas, o que tende não só a comprometer a universalização dos essenciais serviços de saneamento como também desestabilizar o já imperfeito modelo estabelecido.

É fundamental que seja ampliado o debate público e oferecida maior tecnicidade na análise e condução de questões contratuais e regulatórias. As parcerias entre o poder público e a iniciativa privada ainda são vistas com relativa desconfiança. O desconforto surge, especialmente, diante de modelagens regulatórias e contratuais precipitadas, isto é, construídas sem se ouvir a iniciativa privada e carecedoras de estudos técnicos quanto à sua viabilidade e atratividade.

Especificamente com relação ao financiamento dos projetos em saneamento, é importante destacar que o mercado de financiamento nacional não possui tradição em projetos de longo prazo. Por essa razão, o financiamento de projetos públicos fica, atualmente, limitado à capacidade governamental de disponibilizar recursos por intermédio de suas instituições.

Diante da escassez dos mecanismos de financiamento, foi editada a Lei 12.431/2011, que criou as debêntures de infraestrutura, as quais garantem um tratamento tributário especial aos investidores. Entretanto, referida medida não se mostrou eficaz. Talvez inclusive por essa razão o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) tenha noticiado que aumentará o limite de financiamento dos projetos em saneamento de 80% para 95%.

Além do mais, a adoção de modelos de marcos regulatórios no Brasil é complexa, o que decorre da recontextualização imperfeita do modelo americano das agências, da multiplicidade de atores reguladores com competências potencialmente conflitantes, dos excessos da regulação, da elevada assimetria de informações entre poder público e agentes econômicos e, ainda, da atuação pouco deferente dos órgãos estatais de controle. Apenas com o estabelecimento de um ambiente legal razoavelmente seguro é que será adequadamente estimulada a alocação de recursos privados em projetos de interesse público de saneamento.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!