Correlação de forças

Temos que fazer a Constituição retornar ao centro da vida política do país"

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21 de outubro de 2018, 7h01

Spacca
A globalização mudou a forma de as economias se relacionarem, mas também acabou subvertendo as estruturas de poder. Para o professor Francisco Balaguer Callejón, um dos maiores estudiosos do Direito Constitucional do mundo, o século XXI reorganizou a correlação de forças entre as constituições e as grandes corporações.

Em entrevista exclusiva à ConJur, ele afirma que nem sempre o interesse dos grandes grupos econômicos é o melhor para a democracia ou está de acordo com as constituições. O resultado são políticas desenhadas para redes sociais com o objetivo de fragilizar o poder estatal e diminuir a influência da vontade popular no processo decisório dos governos.

"Temos que fazer retornar a constituição ao centro da vida política, retornar a Constituição nos sentimentos, no sentido de identidade cultural da sociedade", afirma.

O Brasil é um exemplo disso, diz. O país passa por uma crise, mas deve se colocar como uma liderança local, para representar os interesses da América Latina de maneira supranacional. Mas ele é otimista: "O Brasil tem todas as possibilidades de retomar o sentido constitucional da vida política".

Francisco Balaguer é catedrático de Direito Constitucional da Universidade de Granada, na Espanha, desde 1991. É autor de mais de 300 publicações sobre Direito Constitucional em 12 países e é diretor do Centro de Excelência do Integração Europeia e Globalização (Ei&G).

ConJur — Como avalia o atual estado do Direito Constitucional brasileiro?
Francisco Balaguer —
 A primeira vez que vim ao Brasil foi em 2007, e minha experiência com o país é muito positiva. A Constituição brasileira é muito desenvolvida, não só do ponto de vista do texto, mas também da doutrina e das decisões dos juízes do Supremo Tribunal Federal. Já na primeira vez que vim ao Brasil tive a sensação que o país tinha uma doutrina constitucional com a qual eu podia falar nos mesmos termos com que falo com qualquer colega alemão, português, espanhol, italiano ou norte-americano. Só que a realidade social e política no Brasil nos últimos anos é mais complicada e problemática. E isso é também uma parte da realidade constitucional. Não podemos estabelecer uma fronteira entre texto constitucional e a realidade social e política. Se a realidade social e política não é boa, isso quer dizer que a Constituição não funciona como deveria funcionar.

ConJur — É possível dizer que existe um constitucionalismo brasileiro?
Francisco Balaguer —
 A Constituição brasileira seguiu muito o modelo da Constituição portuguesa, que eu gosto muito. Para a minha geração, por exemplo, a Revolução dos Cravos foi muito importante. E vimos que também a Espanha poderia se incorporar aos sistemas democrático e constitucionalista mais modernos. E a Constituição do Brasil inspirou-se muito na Constituição portuguesa, não do ponto de vista da organização do poder ou outras coisas, mas dos direitos sociais, da construção dos princípios gerais da Constituição, da ideia de Gomes Canotilho, tudo isso que para nós tinha muita importância para a construção de uma sociedade mais livre, mais igualitária. Isso foi muito importante. Por isso que, na Espanha, temos uma imagem muito boa da Constituição do Brasil.

ConJur – Uma crítica comum à Constituição brasileira é que ela reconhece direitos demais, o que atrapalha a "governabilidade".
Francisco Balaguer —
 Naturalmente, sou a favor dos direitos sociais. Sei que muitos criticam a Constituição do Brasil, e mesmo a Constituição de Portugal, porque a solução foi estabelecer muitos direitos sociais e, no caso do Brasil, estabelecer também provisões garantidoras desses direitos sociais. Mas isso não é nada negativo, é muito positivo. Sem direitos sociais não temos a possibilidade de garantia pessoal. E a pessoa é o centro do Direito Constitucional hoje. Considero que os direitos sociais, na Constituição do Brasil ou até mesmo na Constituição de Portugal, são uma grande contribuição ao constitucionalismo. Não é nada negativo, mas uma grande contribuição ao constitucionalismo. Sei que nem todos os direitos sociais podem ser efetivos na prática, mas gostaria de dizer que quantos mais direitos sociais, mais avançada é uma Constituição.

ConJur — A Economia superou o Direito?
Francisco Balaguer —
 Infelizmente é assim. Temos tido, na Europa, uma grande crise econômica que não deveria ter sido também uma crise constitucional. Ao final, tivemos, infelizmente, com a crise econômica, a primeira grande crise do Direito Constitucional do século XXI. Nessa crise, vai se colocar uma narrativa das instituições financeiras, também das instituições europeias, que vai estabelecer uma interpretação econômica da Constituição. Gosto mais de uma interpretação constitucional da economia. O meu mestre, o professor Peter Habërle, muito conhecido no Brasil, fala sempre da necessidade de fazer o controle do mercado. O mercado tem que instrumentar os direitos. A função que temos como constitucionalistas é garantir que os direitos sociais sejam possíveis e estabelecer os critérios econômicos que garantam os direitos sociais, e não limitá-los para possibilitar políticas econômicas de austeridade, regressivas do ponto de vista social e constitucional.

ConJur — A Constituição brasileira completou 30 anos este ano, e Brasil e Espanha, além de Portugal, passaram por processos constituintes no mesmo período. Desses 30 anos, que mudanças no Direito Constitucional o senhor destacaria?
Francisco Balaguer — O processo foi muito similar nos três casos. Portugal foi uma coisa mais revolucionária — com isso eu quero dizer que eles tiveram mais liberdade para estabelecer as leis fundamentais na Constituição. No caso da Espanha, e mesmo no caso do Brasil, tivemos a possibilidade de fazer grandes consensos, e mesmo aqueles que não gostavam de uma parte da Constituição a aceitaram para estabelecer as regras comuns que eram ao final o espírito constitucionalista. Então a transição, com diferenças nos três países, foi muito positiva. E o processo constituinte foi também muito positivo. Do ponto de vista da evolução, temos um mundo muito diferente.

ConJur — Em que sentido?
Francisco Balaguer —
 No século XX tivemos muitas guerras, mas a segunda metade foi um munto com um ritmo menos acelerado no tempo histórico, por assim dizer. Foi também um mundo onde nós, do ponto de vista Constitucional, estabelecemos regras para a construção de sociedades com grandes consensos. Consensos territoriais para o federalismo e consensos sociais para os direitos sociais, direitos trabalhistas, consensos democráticos para todo o direito. E todos esses consensos, ao final, convergem na constituição normativa.

Agora temos um mundo muito diferente, mais acelerado. Grande parte do poder ficava nas mãos do Estado, e agora existe um poder que fica nas mãos dos grandes agentes globais. E a Constituição não mudou na mesma medida — e não pode mudar. Não é um problema das formações constitucionais, porque o Brasil fez muitas formações constitucionais. É um problema de achar um modo de controlar os grandes poderes que agora podem condicionar as políticas estatais e os direitos da cidadania. Esse é o grande desafio que temos no Direito Constitucional hoje.

ConJur — Na sua palestra em Brasília, o senhor falou dos desafios da internet, sobre como as constituições foram feitas antes dos grandes avanços nas tecnologias de comunicação, da globalização. Pode explicar um pouco dessa fala?
Francisco Balaguer —
 O grande problema que temos no Direito Constitucional é que estabelecemos por meio das constituições normativas, como a Constituição no Brasil, as regras para fazer o controle do poder do Estado. Só que o poder deixa de ser do Estado e passa a se deslocar para as grandes corporações, como as redes sociais, as plataformas de comunicação, as plataformas de internet, em que há o ponto de vista econômico. Então o grande problema agora é que a globalização trouxe muitas mudanças não só no aspecto econômico, mas também sob o ponto de vista dos processos políticas da construção da vontade popular, da construção da democracia. E esses processos atingem também ao Brasil.

ConJur — Como?
Francisco Balaguer —
 O Brasil teve um grande desenvolvimento econômico e mesmo com a crise vai ser a quarta potência mundial. Mas mesmo sendo a quarta potência mundial, o Brasil vai ter só 25% do PIB dos Estados Unidos e menos de 10% da primeira potência mundial, que é a China.  Portanto, o que o Brasil tem que fazer é liderar a integração supranacional da América do Sul, porque ele tem 50% da produção econômica dos países da região, então tem as condições de assumir um papel de liderança desse processo. Porque mesmo o Brasil não tem a magnitude necessária para poder fazer o controle dos grandes poderes na globalização e para conseguir também uma posição como agente global.

Considero que o futuro seja de mais integração supranacional com a liderança do Brasil, e que a Constituição tem que se compreender na realidade constitucional nacional e na realidade constitucional supranacional. É uma interação dialética das suas realidades que podem favorecer os direitos fundamentais, os sociais, sobretudo.

ConJur — Como o senhor avalia a situação atual da Europa?
Francisco Balaguer —
 A situação atual da Europa infelizmente não é boa. É muito problemática porque tivemos a crise econômica e também uma grande crise constitucional, uma grande crise política. Foram impostas políticas de austeridade que não eram necessárias e não eram recomendadas por grandes economistas da Europa, e isso provocou mais problemas sociais, mais desigualdade, provocou mais conflitos entre os membros da União Europeia e ao final provocou também o desenvolvimento dos movimentos populistas, que são movimentos que infelizmente tem grandes possibilidades de conseguir lugar em governos em países democráticos na Europa.

ConJur — O que fazer, então?
Francisco Balaguer —
 É preciso mais integração, mais democracia e ao final uma solução federal. E tem que lembrar que o país economicamente mais forte da Europa, a Alemanha, vá ficar de fora do grupo das oito maiores potências do mundo em alguns anos. Nenhum país europeu pode ter a capacidade isolada de fazer frente à globalização, então precisamos de mais interação. Mas, infelizmente, temos menos interação, temos problemas com alguns países que não são democráticos, como a Hungria e a Polônia, e temos também o problema do Brexit.

ConJur — Por que é um problema?
Francisco Balaguer —
Porque precisamos também do Reino Unido para estabelecer uma interação mais forte, com mais capacidade de agir no mundo global. A situação é muito crítica. Estamos a pouco das eleições do parlamento europeu e se os populistas, os antieuropeus, conseguirem uma grande posição nas eleições pode ser um momento muito crítico.

ConJur — A ascensão desses movimentos de direita ou de extrema direita é uma ameaça para os direitos fundamentais?
Francisco Balaguer —
 Uma ameaça para os direitos fundamentais, sim. O problema é que quando falamos na história do fascismo pensamos no fascismo com as grandes mobilizações de massa, com as bandeiras, com os costumes muito particulares. Porque o fascismo se desenvolveu assim, precisando se diferenciar dos demais movimentos populares como o comunismo. Então ele precisava das bandeiras, dos incentivos particulares, dos modos de intervenção no poder. Mas agora é muito diferente. Temos muitos movimentos fascistas e eles não chegam às bandeiras, não podem ser identificados como podiam antes. Para identificar é preciso ver as coisas que eles dizem e avaliar se elas são congruentes com a Constituição e com a democracia. Infelizmente, temos muitas formas novas do fascismo na Europa e fora da Europa que não são tão identificáveis e por isso a população não as considera tão perigosas. Mas, na verdade, elas são mais perigosas agora que os antigos fascistas, porque não são identificáveis como tais.

ConJur — Muitos políticos têm defendido a necessidade de uma nova constituição. Como observador externo, o que acha da ideia?
Francisco Balaguer —
A Constituição brasileira é muito desenvolvida e vocês não precisam de uma constituição nova. Temos mais problemas na Espanha porque temos uma Constituição de 40 anos que só teve duas reformas para a integração européia, então tivemos que fazer reformas mais profundas. Mas a Constituição brasileira é diferente. Pode ser que precise de reformas pontuais, como os termos da avaliação do poder e algumas outras coisas que podem ser melhoradas no futuro, naturalmente, como toda constituição. Uma constituição que tem a reputação da Constituição brasileira, que tem a consideração da doutrina em todo o mundo, dos intelectuais, dos professores de Direito Constitucional, não faz sentido mudar para uma constituição nova. Além disso, considerando os problemas constitucionais que temos nessa altura da globalização, devo dizer que eles não podem ser resolvidos através das reformas constitucionais.

ConJur — Por quê?
Francisco Balaguer —
 São problemas globais. Muitos desses problemas estão em isolar a Constituição da sociedade, em provocar conflitos e problemas que não fazem sentido dentro do ponto de vista do espírito constitucional. E são problemas globais que vão se refletir no quadro das constituições nacionais e vão provocar uma situação muito difícil no constitucionalismo do nosso tempo.

Você tem que considerar que depois da crise econômica, temos tido, nos últimos dois anos, uma grande crise provocada pela intervenção das redes sociais contra as posições democráticas. E tudo isso ao final é mais uma mudança de paradigma constitucional, uma mudança das pautas culturais do constitucionalismo que não podem se resolver através de reformas concretas da Constituição. Temos que achar um modo de controlar o poder para que ele fique no povo. O poder não fica no Estado – o Estado tem naturalmente o seu poder e tem capacidade de gerenciar, mas não tem o mesmo poder que tinha em 1988. Temos que fazer retornar a constituição ao centro da vida política, retornar a Constituição nos sentimentos, no sentido de identidade cultural da sociedade.

O Brasil tem todas as possibilidades de retomar o sentido constitucional da vida política. Afinal, quando eu conheci o Brasil, eu conheci também o constitucionalismo no Brasil e eu pude perceber que o Brasil é um dos países do mundo que tem mais sentido constitucional, mais cultura constitucional. Mas tem um sentido de que a Constituição é uma parte da civilização, uma parte dos direitos da pessoa. Então o Brasil tem possibilidades de recuperar a Constituição e fazer com que ela seja o centro da vida política e social.

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