Limite Penal

Como superar a cabeça do jurista baunilha no processo penal

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19 de outubro de 2018, 8h05

Spacca
A atividade processual é complicada porque em geral não sabemos o que queremos, quanto queremos e como podemos alcançar nossos objetivos. Dominar o aspecto estratégico (objetivo), tático (ações tendentes a obter o resultado desejado) e cognitivo (informações qualificadas, coerentes e consistentes) pressupõe certa capacidade de compreensão do design do jogo que você está jogando. Em outras palavras, será necessário entender o desafio cognitivo do que você sabe, do que você aparentemente não sabe, o que você sabe aparentemente e principalmente o que você não sabe que não sabe — tanto em relação a você mesmo quanto sobre o ambiente e contexto em que opera. A ingenuidade e redução da complexidade são os modos com que conseguimos, aparentemente, manter a consonância interna e externa. Por isso, o primeiro momento é o de desfazer as grandes ilusões com as quais operamos e temos tanta certeza.

Este pequeno texto é sobre como se pode jogar no processo penal, sobre como construir cenários imaginários realisticamente e, diante do contexto antevisto, agir de modo estratégico. Por meio da lógica, de expectativas racionais e com ganhos aos jogadores envolvidos na interação processual, pode-se estabelecer hipóteses razoavelmente factíveis. Bem verdade que se pode enfrentar um irracional (por exemplo, pela emoção, afetos das mais variadas ordens: amor, ódio, compaixão etc.) e até kamikaze. Mas em todo caso, a partir de indícios, será possível também compreender as hipóteses não lógicas. Tudo isso corrobora a necessidade de se estabelecer um mecanismo formal de compreensão do jogo processual penal.

Assim é que pretendo usar a grelha teórica da Teoria dos Jogos. Por ela aposto em sua capacidade de pensar uma saída oculta a cada contexto processual. Pode ser que você não consiga, atualmente, buscar novas possibilidades de sentido ou táticas que podem virar as narrativas e/ou o resultado do jogo. Por isso, em vez de descrever candidamente o processo penal, a cada momento deve-se apresentar as posições possíveis, destacando-se as dominantes/dominadas, sugerindo, quem sabe, saídas diferenciadas.

Para que isso seja possível, será necessário que você seja ativo e participe da construção das táticas em cada processo penal e, também, que aceite participar dos jogos processuais penais ciente de que há camadas de cognição em cada comunidade de jogadores. Isso porque a cada conjunto de jogadores, situados no tempo e no espaço, os sentidos podem se modificar. Dar-se conta do caráter dinâmico e precário dos sentidos cristalizados será fundamental para que você possa jogar profissionalmente. Amadores acreditam em sentidos fixos, imutáveis, como se a cada interação processual um mero detalhe não pudesse mudar o resultado das decisões proferidas, quer por jogadores, quer por julgadores.

A contingência preside os jogos processuais reais. Em cada interação processual há jogadores engajados e também frouxos, preocupados mais em ir para casa mais cedo. De qualquer sorte, o desafio será o de fazer você parar para pensar e se preparar para cada jogo processual, antecipando realisticamente as possibilidades dominantes/dominadas de ação de cada um dos agentes processuais.

De algum modo, a atividade de se preparar e antecipar as múltiplas possibilidades de ação pode parecer inconveniente e cansativa, assim como se dá em qualquer atividade que você não queria ser amador. Desde jogos de computador até modalidades olímpicas, em geral, os amadores perdem. Pode haver um resto de sorte, sempre. Entretanto, a conjunção de sorte com preparação adequada rende melhores resultados. Logo, na perspectiva de se tornar um jogador apto a vencer, cabe desenvolver novas perspectivas de compreensão do design do jogo processual penal. Será necessário reenquadrar o desafio da cognição, das capacidades estratégicas e principalmente de entender o seu lugar no jogo em relação aos demais agentes a partir das recompensas/ganhos de cada um. Sem uma leitura formal do jogo processual, perde-se em devaneios imaginários de aplicação normativa no vácuo (em um processo imaginário desprovido de sujeitos humanos). O DNA humano comparece nas interações processuais a todo o tempo. Redescobrir as suas capacidades de performance será o mote da adoção de uma postura estratégica, amplamente manejada no Brasil contemporâneo.

De qualquer sorte, no caminhar, o desafio será o de — o tempo todo — convocar você a pensar o que poderia fazer e também o que seu adversário e julgador podem querer fazer, a saber, qual o comportamento esperado deles. Uma dica: passe um dia todo se imaginando como seu oponente. Sério. Vale a pena eleger um sócio ou parceiro que você respeite tecnicamente para fazer sua função e se coloque na posição dos demais players. Seja o juiz ou o adversário por um dia. Pense como ele pensa, estabeleça as recompensas dele, reúna o máximo de informação qualificada sobre o modo como pensa, suas recompensas. Use e abuse do recurso de pensar como seu oponente.

Superar a cabeça de jurista baunilha para se transformar em jurista estratégico. Dominar as novas categorias pode lhe conferir categorias ampliadas de compreensão da interação humana manifestada no jogo processual e dar-se conta das próprias limitações é o primeiro dos desafios. Depois deste primeiro passo, o segundo é o de compreender que a necessidade de buscar melhorar a performance decisória pode encontrar respaldo em diretrizes diferenciadas, com um pé na psicologia cognitiva e outro na Teoria dos Jogos (MORAIS DA ROSA, Alexandre. Teoria dos Jogos e Processo Penal: a short introduction. Florianópolis: Emais, 2018)

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    é juiz em Santa Catarina, doutor em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) e professor de Processo Penal na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e na Universidade do Vale do Itajaí (Univali).

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