Olhar Econômico

O comércio digital no novo acordo entre Estados Unidos, México e Canadá

Autor

  • João Grandino Rodas

    é sócio do Grandino Rodas Advogados ex-reitor da Universidade de São Paulo (USP) professor titular da Faculdade de Direito da USP mestre em Direito pela Harvard Law School e presidente do Centro de Estudos de Direito Econômico e Social (Cedes).

18 de outubro de 2018, 10h40

Spacca
Uma das características da sociedade internacional das últimas décadas do século XX e do atual século é a maioria dos Estados pertencer a organizações internacionais regionais de integração econômica, vulgarmente conhecidas como blocos econômicos regionais. A América do Norte não foge a essa regra. As colônias britânicas, que viriam a formar o Canadá e os Estados Unidos, vêm liberalizando o comércio entre si desde 1855, quando foi concluído o Reciprocity Treaty. Vários tratados bilaterais se seguiram, com o intuito de reduzir tarifas e aumentar o comércio, até ser concluído, em 2 de janeiro de 1988, o Acordo de Livre Comércio entre Canadá e Estados Unidos.

A culminação dessa tendência deu-se com a conclusão do Tratado de Livre Comércio da América do Norte (TLCAN ou Nafta), assinado em 17 de dezembro de 1992, cuja entrada em vigor se deu a 1º de janeiro de 1994. É um tratado longo e minudente, bem ao gosto da tradição da common law. Embora minimalista quanto à estrutura orgânica e normativa, bem como sem ambição de supranacionalidade, conformou uma das maiores áreas de livre comércio do mundo, em região habitada por cerca de 500 milhões de pessoas e movimento comercial anual de US$ 1 trilhão. Entre 1994 e 2018, praticamente todas as barreiras tarifárias e não tarifárias foram eliminadas e aumentaram significativamente os investimentos e o comércio intrabloco.

Ainda na campanha presidencial, Donald Trump, preocupado com os déficits comerciais e obstinado em aumentar os empregos em seu país, acenava com a renegociação do Nafta ou a retirada dos Estados Unidos desse tratado. Com sua posse como presidente, em 2017, os três países iniciaram as negociações. Estados Unidos e Canadá chegaram a acordo em 2017; enquanto que as tratativas com o México somente frutificaram em 1º de outubro deste ano, quando os três países concluíram o Acordo Estados Unidos-México-Canadá (USMCA, na sigla em língua inglesa; e AEUMC, na sigla em espanhol). Passará a vigorar no primeiro dia do terceiro mês que se seguir à última notificação de cumprimento de seus procedimentos internos para entrada em vigor, por parte dos Estados-membros (artigo 34.5).

O mero exame dos títulos dos capítulos do USMCA denota sua abrangência e minúcia, permitindo uma ideia geral do tratado:

Preâmbulo: 1. Disposições iniciais e definições gerais; 2. Tratamento nacional e acesso de bens ao mercado; 3. Agricultura; 4. Regras de origem, com regras específicas de produto; 5. Procedimentos de origem; 6. Têxteis e vestuário; 7. Alfândega e facilitação ao comércio; 8. Reconhecimento da propriedade do México, direta, inalienável e imprescritível aos hidrocarbonetos; 9. Medidas sanitárias e fitossanitárias; 10. Trade remedies; 11. Barreiras técnicas ao comércio; 2. Anexos setoriais; 13. Compras governamentais; 14. Investimentos; 15. Comércio transfronteiriço em serviços; 16. Entrada temporária; 17. Serviços financeiros 18. Telecomunicações; 19. Comércio Digital; 20. Propriedade intelectual; 21. Política de concorrência; 22. Empresas estatais; 23. Trabalho; 24. Meio ambiente; 25. Empresas pequenas e médias; 26. Competitividade; 27. Anticorrupção; 28. Boas práticas regulatórias; 29. Publicação e administração 30. Disposições administrativas e institucionais; 31. Solução de disputas; 32. Disposições gerais e excepcionais; 33. Políticas macroeconômicas e questões cambiais; e 34. Disposições finais.

Inobstante o preâmbulo do USMCA assevere de modo expresso que ele substitui o Nafta, muitas das cláusulas deste subsistiram. Talvez isso tenha levado a afirmações de que as mudanças foram “cosméticas”, e a maior diferença foi a mudança no título do tratado. Entretanto, como será visto a seguir, as diferenças entre o Nafta e o USMCA são muitas e importantes.

Os aspectos que mais chamam a atenção neste tratado são as seguintes:

  • estimula a produção de carros e caminhões nos três países, ao estabelecer tarifa zero para a venda, se 75% dos respectivos componentes forem fabricados na América do Norte e cumpridas algumas exigências trabalhistas;
  • aumenta a proteção da propriedade intelectual (artigo 20);
  • permite maior acesso dos Estados Unidos ao mercado de leite e derivados do Canadá;
  • adota sistema de solução de controvérsias similar ao existente no Nafta (artigo 31). Aspecto considerado positivo, por preservar painéis binacionais e solução de disputas Estado a Estado;
  • determina notificação prévia dos demais partícipes no USMCA, por parte do Estado-membro desejoso de concluir acordos de livre comércio com países não adeptos da economia de mercado (cláusula, provavelmente, para enquadrar a China);
  • trata de políticas macroeconômicas e questões cambiais (capítulo 33);
  • contém regras comuns e modernas sobre procedimentos aduaneiros, em capítulo específico (capítulo 7);
  • contém regras de proteção ambiental, garantidoras que não serão atraídos investimento ou comércio, por meio da diminuição dos níveis de proteção ambiental (capítulo 24). Meio ambiente;
  • estipula a duração do acordo por 16 anos, devendo ser, formalmente, revisado a cada seis anos (artigo 34.7).

Sem diminuir a importância das regras do USMCA sobre carros e produtos lácteos (tão ressaltadas nas mídias nacionais e internacionais), são fulcrais suas disposições sobre comércio digital.

Acordos de livre comércio passaram a conter cláusulas sobre comércio digital recentemente. O Trans-Pacific Partnership (TPP ou CPTPP)[1] pode ser considerado marco inicial, a que se seguiu o USMCA e vários outros. Basicamente, os capítulos sobre comércio digital buscam: a não discriminação nos serviços digitais, a validade das assinaturas eletrônicas, a segurança nos contratos eletrônicos e a restrição na cobrança de impostos aduaneiros nos produtos digitais transferidos por via eletrônica.

A problemática, entretanto, repousa nas cláusulas referentes aos dados. Elas constituem o fulcro do comércio digital, pois o fluxo transfronteiriço de dados é de grande importância para a atual economia, sem fronteiras, da era da internet. De um lado, localizar os dados, ou seja, exigir que eles sejam guardados e processados em um país, cerceia o comércio digital internacional. Exigir que companhias estrangeiras somente possam operar no território de um país ou de um bloco econômico, se dispuserem de infraestruturas próprias de dados nesses locais, dificulta o acesso a serviços globais e possibilita o protecionismo. De outro lado, a livre circulação de dados favorece o acesso aos serviços e aos mercados globais.

O USMCA é tido como o primeiro acordo comercial a ter um capítulo sobre comércio digital. Suas cláusulas sobre economia digital, embora tenham sido inspiradas nas do TPP, o superaram ou dele divergiram em vários aspectos. Contradisse, igualmente, normas assentes na União Europeia. Seus pontos principais são:

  • inexistência de definição de comércio digital no capítulo;
  • proibição de impor tarifas e taxas quando da importação de produtos digitais, distribuídos eletronicamente;
  • proibição de requerer divulgação do código fonte de software e dos respectivos algoritmos, protegendo assim a competitividade dos provedores de internet;
  • certo grau de proteção das informações fornecidas pelos usuários, permitindo, entretanto, que cada país-membro possa adotar regras mais estritas de proteção de privacidade;
  • proteção aos prestadores de serviços de internet, com relação à responsabilidade por direitos autorais, devido a ações de seus usuários, na linha da seção 512, do título 17, do United States Code;
  • limitação da responsabilidade civil das plataformas de internet, excetuada a referente à propriedade intelectual, com o intuito de viabilizar, economicamente, tais plataformas;
  • obrigação de cada país possuir leis anti-spam;
  • aplicabilidade on-line das leis de proteção do consumidor, unicamente dentro de cada Estado-membro;
  • incorporação da cláusula de “serviços interativo de computador”, fazendo com que as plataformas de internet não sejam civilmente responsáveis, pelas ações de seus usuários;
  • incorporação da cláusula que favorece a leitura por máquina (robô), dos dados governamentais abertos;
  • incorporação de disposições, sobre localização de dados e restrições ao respectivo fluxo (mais severas do que as contidas no Nafta), que impedem até mesmo a localização de dados relativos a serviços financeiros, consoante se depreende do capítulo 17 sobre esse assunto.

Há que se concordar com Anupam Chander[2], quando considera que “o capítulo sobre comércio digital do USMCA constitui-se no mais significativo conjunto de cláusulas sobre comércio digital, negociado até o momento; ao menos fora do mercado único, criado na União Europeia”.

Por outro lado, não se pode ignorar a advertência de Michael Geist[3]. Ele considera que as cláusulas sobre comércio digital do USMA não refletem importantes normas globais de e-commerce. Por isso, somente poderão se tornar modelos a serem seguidos globalmente, caso venham a satisfazer necessidades de gama muito mais ampla de negócios, consumidores e legisladores nacionais[4].

O G20, na reunião de ministros de 2018, realizada em agosto na Argentina, reconheceu o papel da economia digital para o desenvolvimento global e abordou as mudanças que ela vem causando, tendo estabelecido, em sua declaração final, passos a serem trilhados. A OMC, somente em data recente, começou a discutir e-commerce.

Se os países tech-emergentes desejarem preservar seus interesses sobre o comércio digital e participar na elaboração das respectivas regras internacionais, não podem se eximir de estudar e discutir o comércio digital, tanto interna e bilateralmente quanto no seio de organizações internacionais, notadamente na OMC.


[1] O TPP, após a saída dos EUA, sofreu algumas mudanças e mudou seu nome para Comprehensive and Progressive Agreement for Trans-Pacific Partnership (CPTPP). Entretanto as regras sobre comércio digital foram pouco modificadas.
[2] Anupam Chander, The Coming North American Digital Trade Zone, https://www.cfr.org/blog/coming-north-american-digital-trade-zone
[3] Michael Geist, How the USMCA falls short on digital trade, data protection and privacy. https://www.washingtonpost.com/news/global-opinions/wp/2018/10/03/how-the-usmca-falls-short-on-digital-trade-data-protection-and-privacy/?utm_term=.87cfbb351cd1
[4] Michael Geist, Setting the Standad?: How the USMCA Quietly Reshaspes Global Digital Trade Agreement. http://www.michaelgeist.ca/2018/10/setting-the-standard-how-the-usmca-quietly-reshapes-global-digital-trade-agreements

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