Tribuna da Defensoria

Por que o IDC é pouco utilizado e como reverter isso?

Autor

  • Matheus Nascimento

    é advogado pós-graduado em Direito Constitucional e em Direito Processual Civil e bacharel em Direito pela Universidade Federal do Ceará.

16 de outubro de 2018, 11h52

Neste ano, a atual Constituição da República completou 30 anos e, num ano eleitoral marcado pela polarização política e ideológica, demonstra sua força para ser a Lei Fundamental do Estado Democrático de Direito brasileiro. Não imune a críticas, nosso texto constitucional passou por mais de uma centena de reformas realizadas por emendas constitucionais.

Dentre essas modificações, destaca-se a feita pela EC 45/2004, a Emenda da Reforma do Judiciário, que trouxe inúmeras alterações, fortalecendo o papel do Poder Judiciário e das funções essenciais à Justiça para a manutenção da ordem constitucional.

Nesse sentido, no artigo 109 da CRFB foi incluído o parágrafo 5º para conferir ao procurador-geral da República a possibilidade de suscitar incidente de deslocamento de competência ao Superior Tribunal de Justiça para que, em casos de graves violações a direitos humanos, o inquérito ou o processo fosse remetido das instâncias estaduais para as federais. O IDC surge, então, como instrumento destinado a “assegurar o cumprimento de obrigações decorrentes de tratados internacionais de direitos humanos dos quais o Brasil seja parte”.

Na verdade, desde a década de 1990[1] já havia a preocupação com a falta ou a morosidade de investigação e punição de graves violações a direitos humanos, principalmente se atentarmos ao fato de que a responsabilização internacional da República Federativa do Brasil recai sobre a União (artigo 21, I, da CRFB c/c artigos 27 e 29 da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados[2]). Ou seja, mesmo que uma violação a direitos humanos seja perpetrada por um estado-membro, um município ou até um particular, será a União responsabilizada.

Dadas as dificuldades do governo federal em colher informações dos demais entes para subsidiar sua defesa perante organismos internacionais de direitos humanos[3], surgiu, desde a primeira PEC da Reforma do Judiciário (96/1992), passando pelos Planos Nacionais de Direitos Humanos I e II (1996 e 2002) e até por relatório da Comissão Interamericana de Direitos Humanos[4] (1997), a ideia de criar um incidente para deslocar de órgãos estaduais para federais a investigação e/ou o processo que apure graves violações a direitos humanos. Isso permite, portanto, uma atuação da União que pode prevenir a responsabilização internacional do Brasil, principalmente quanto ao seu dever de investigar e punir tais violações.

Com isso, surge o IDC, positivado no artigo 109, parágrafo 5º, da CRFB, conforme exposto linhas atrás. Ocorre que, passados quase 14 anos de sua criação, só chegaram ao STJ dez pedidos de IDC[5], mas sabemos que diuturnamente há violações a direitos humanos, como assassinatos em massa a mando de milícias e organizações criminosas, atentados à liberdade de expressão e à vida de minorias, como mulheres, comunidades tradicionais, pessoas LGBTI, negros etc.

Por que o IDC é subutilizado e como pode ser efetivo? Baseados na doutrina, em pesquisas realizadas pelo Ministério da Justiça e nas ADIs 3.486 e 3.493, verificamos que, além da própria dificuldade na conceituação de “graves violações a direitos humanos” e no rito que deve percorrer o IDC, existe uma forte tensão institucional entre os atores do sistema político e/ou de Justiça, cujo potencial de desgaste inviabiliza o manejo do IDC.

Por outro lado, comparando-se a quantidade de ações objetivas de controle de constitucionalidade antes e depois da ampliação do rol de legitimados[6], verifica-se que houve um exponencial aumento de ADIs, ADCs, ADPFs e ADOs, possibilitando uma pluralização no debate de temas de interesse constitucional. Da mesma forma, é importante que se amplie o rol de legitimados para o IDC, pulverizando a tensão institucional que impede seu uso como instrumento de litigância estratégica de direitos humanos.

Há PECs que visam garantir a outras pessoas ou instituições a legitimidade para o IDC[7], destacando-se dentre essas entidades a Defensoria Pública, órgão previsto de forma inédita na Constituição de 1988 e que tem ganhado importância não só pela defesa das pessoas economicamente hipossuficientes, mas também pela promoção dos direitos humanos e da democracia.

Em nosso livro[8], propomos que seja dada legitimidade ao defensor público-geral federal para suscitar o IDC, já que os autos do inquérito ou processo passarão a ser analisados por polícia, Ministério Público e Justiça federais. Pode, portanto, a Defensoria Pública da União também atuar com o fim de que os direitos das vítimas de graves violações a direitos humanos sejam assegurados, inclusive com justa reparação pelos danos materiais e morais. Caso o resultado seja inexistente ou insuficiente, pode o Brasil ser denunciado perante órgãos internacionais de direitos humanos, conforme prevê o artigo 4º, VI, da Lei Complementar 80/94[9].

A atuação da DPU ou outros legitimados no IDC, todavia, de forma alguma deve tornar obrigatória a submissão de um caso à sistemática do IDC, isto é: entendendo-se que, estrategicamente, o melhor é submeter o caso diretamente a órgãos internacionais de direitos humanos, podem as vítimas e seus representantes fazê-lo. Todavia, o impacto sobre a opinião pública e as instituições[10], bem como o custo-benefício de mover o IDC (conhecimento da legislação interna, menor gasto de recursos humanos e financeiros com o processo, audiências e produção probatória), tornam bastante atrativa a ideia de aumentar o rol de legitimados e de regulamentar o IDC, assegurando a devida apuração, punição e não repetição de violações a direitos humanos.

Ao permitir essa expansão do rol de legitimados para o IDC, o Congresso Nacional estará fortalecendo o Sistema Nacional de Direitos Humanos, não somente para combater, mas também prevenir e reparar graves violações a direitos humanos.


[1] GOMES, Olívia Alves (coord.); ALMEIDA, Guilherme de Assis (coord.); ASTOLFI, Roberta Corradi; LAGATTA, Pedro; OI, Amanda Hildebrand. Estudo sobre a federalização de graves violações aos direitos humanos. Brasília: Ministério da Justiça, Secretaria de Reforma do Judiciário, 2014, p. 24.
[2] CRFB, Art. 21. Compete à União:
I – manter relações com Estados estrangeiros e participar de organizações internacionais;
CVDT, Art. 27. Uma parte não pode invocar as disposições de seu direito interno para justificar o inadimplemento de um tratado.
CVDT, Art. 29. A não ser que uma intenção diferente se evidencie do tratado, ou seja estabelecida de outra forma, um tratado obriga cada uma da partes em relação a todo o seu território.
[3] Nesse sentido, vide: CAZETTA, Ubiratan. Direitos humanos e federalismo: o incidente de deslocamento de competência. São Paulo: Atlas, 2009, p. 159-160.
[4] COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Relatório sobre a situação dos direitos humanos no Brasil. San José: CIDH, 1997. Disponível em: <http://cidh.oas.org/countryrep/brazil-port/Cap%203-1.htm#CONCLUS%C3%95ES>. Acesso em 12.out.2018.
[5] Dados obtidos via Lei de Acesso à Informação ao próprio STJ.
[6] Dados verificáveis no site do próprio STF: http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/publicacaoBOInternet/anexo/estatistica/ControleConcentradoGeral/CC_Geral.mhtml. Acesso em: 12.out.2018.
[7] PECs 487/2005 e 350/2013, ambas da Câmara dos Deputados, e PECs 61/2011, 80/2011 e 31/2017, do Senado Federal. As PECs da Câmara dos Deputados e a mais recente do Senado Federal preveem o defensor público-geral federal como legitimado para o IDC.
[8] NASCIMENTO, Matheus Alves do. Legitimidade da Defensoria Pública para suscitar o incidente de deslocamento de competência: por mais um instrumento na defesa dos direitos humanos. Belo Horizonte: CEI, 2018.
[9] LC 80/94, Art. 4º São funções institucionais da Defensoria Pública, dentre outras:
VI – representar aos sistemas internacionais de proteção dos direitos humanos, postulando perante seus órgãos.
[10] Vide o caso do assassinato da vereadora do Rio de Janeiro Marielle Franco: INVESTIGAÇÃO do caso Marielle Franco será comandada pela Polícia do RJ, diz MP após reunião com Dodge. G1 Rio, Rio de Janeiro, 15 mar. 2018. Disponível em: <https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/investigacao-do-caso-marielle-franco-sera-comandada-pela-policia-do-rj-diz-mp-apos-reuniao-com-dodge.ghtml>. Acesso em: 29.abr.2018.

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