Academia de Polícia

A Lei 13.718/18 é quase proporcional e mantém importunação antiga

Autores

  • Ruchester Marreiros Barbosa

    é delegado de polícia do RJ professor da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro da Escola da Magistratura de Mato Grosso e do Cers autor de livros palestrante e colaborador oficial da Comissão de Alienação Parental da OAB-Niterói.

  • Illyana Magalhães

    é advogada criminalista e consultora especialista em Direito Penal e Processual Penal.

16 de outubro de 2018, 10h10

Spacca
A atual Lei 13.718, de 24 de setembro de 2018, implementou modificações no âmbito legal dos crimes sexuais do Código Penal, inserindo dois novos tipos penais, acrescendo e reajustando majorantes, modificando a natureza da ação penal e revogando a contravenção penal de importunação ofensiva ao puder do artigo 61 da Lei de Contravenções Penais.

É sabido que esta não é a primeira tampouco será a última alteração do Código Penal sobre a reforma dos delitos sexuais. São quase 80 anos de vigência, e o Código Penal Brasileiro já passou por oito modificações relativas a essa temática. Portanto, não é crível adentrarmos nesta seara antes de analisarmos os aspectos políticos, sociológicos e jurídicos sobre o entorno e o fim da Lei 13.718/2018.

Alguns autores já fizeram apontamentos a respeito da Lei 13.718/18[1] e suas consequências no âmbito penal e na alteração do regramento sobre a ação penal, que passou a ser pública incondicionada por força da nova redação do artigo 225 do CPP[2].

A princípio, o que salta aos olhos inicialmente é a autoridade que sancionou a lei, ou seja, uma autoridade do Poder Judiciário. Dias Toffoli, atual dirigente do Supremo Tribunal Federal, quarto da linha sucessória, sancionou a referida lei em virtude de uma viagem internacional do presidente da República aliado à ausência dos presidentes da Câmara dos Deputados e do Senado Federal.

A expansão da jurisdição constitucional, efetivada pela Constituição da República de 1988, terminou por conferir ao Poder Judiciário a prerrogativa de atuar de forma ativa, concretizando o conteúdo da Constituição. Seria o ativismo judicial já atuante no âmbito jurídico estendendo seus tentáculos para a seara política?

Não desconsideramos a relevância do poder jurisdicional, pois, se não fosse por essa via, muitos direitos jamais seriam sequer reconhecidos devido à falta de força política de grupos minoritários no Congresso Nacional e no Poder Executivo. Nesse sentido, o STF, por exemplo, reconheceu o Estado de Coisas Inconstitucional[3], bem como da dignidade da mulher quanto a uma gravidez indesejada no aborto econômico[4].

Apesar da relevância da atuação judicial nesses casos, a própria legitimidade de tais decisões se torna outro problema dentro do modelo de Estado Democrático de Direito, em razão do esvaziamento da tripartição de Montesquieu, porquanto se observa uma omissão sistêmica do Legislativo e Executivo, por não ser a função do Judiciário aferir a vontade popular e cumprir as exigências de minorias, por meio de políticas públicas.

Recentemente, tem-se observado o aumento de intensos movimentos sociais clamando por democracia em regimes democráticos, o que à primeira vista pode parecer um contrassenso, porém revela a crise de legitimidade do poder político e do Judiciário por força da distorção na aplicação dessa lógica do sistema de Justiça e de Direito.

O processo penal é o ambiente político que retrata a atuação de um poder. Sua democraticidade ou autoritarismo remete ao regime político e sua respectiva predileção por qual instrumento se realizará o controle social. É o que se denomina de “fenômeno político complexo”[5] ou “microcosmo do Estado de Direito”[6], de normas processuais penais que repetem mecanismos autoritários mesmo diante de uma nova ordem constitucionalmente democrática.

Em outras palavras, percebemos com os referidos escândalos midiáticos, a força do poder econômico influenciando diretamente o exercício do poder político, muito bem explicado por Raymundo Faoro[7]. A análise das estruturas de poder em um capitalismo de Estado, que, além de reflexos negativos como impedir a livre concorrência no Brasil, seja pela fraude em licitações e contratos públicos, ou pela escolha dos dirigentes das empresas estatais em setores estratégicos, coloca o poder político e econômico lado a lado como “donos do poder”.

Neste jaez, inclui-se no rol de medidas deletérias desse sistema os projetos de leis que resultam em normas de puro controle social por meio do Direito Penal simbólico e da prisão processual como prima ratio, bem como os transforma em um mecanismo de manipulação das instituições que atuam no sistema de Justiça criminal, em especial a promoção de uma distorção da função da polícia judiciária como dispositivo democrático[8].

Em que pese as críticas à postura ativa do Judiciário, verifica-se que o fato de a publicação da lei ter ocorrido de forma atípica não afasta sua constitucionalidade, posto que respeitou as regras do jogo democrático. Jogo de cartas marcadas.

Dito isso, cabe analisar os impactos do novo tipo do artigo 215-A, do CP, em especial seus aspectos processuais penais e seu contrassenso como ferramenta de um pseudocombate à criminalidade de desrespeito à mulher.

Em um prognóstico dos horizontes hermenêuticos possíveis, partindo das premissas filosóficas de Heidegger, deve-se compreender o Ser, isto é, aquilo que se pode dizer ou investigar, na perspectiva de sua historicidade. Assim, depois de criada a norma jurídica, é impossível identificar “um muro entre sujeito e objeto, sentenciando uma total desintegração entre o investigador e o objeto investigado”[9].

Rompeu-se, portanto, com a barreira entre o sujeito cognoscente e o objeto cognoscível. Em outras palavras, tratando-se de ciências sociais aplicada, como o Direito, o objeto de estudo (fato social) não é neutro como uma maçã ou uma laranja, ele já se apresenta ao sujeito (operador do Direito) carregado de sentido pelo seu dever histórico, da mesma forma que o próprio sujeito que pensa e analisa esse objeto também é constituído de uma visão de mundo prévia ao evento em que se encontram.

Atualmente, exige-se uma compreensão do homem imerso em conexões com fatos, pessoas e coisas. Todo ser humano possui uma pré-compreensão sobre tudo. Esta constatação é determinante na interpretação e aplicação do Direito Positivo, pois cada intérprete enxerga o mesmo fato social sob seu viés específico.

O delegado de polícia ocupado em investigar a materialidade e autoria do crime dirige seu olhar para esses elementos, ao lado do juiz, considerando-os igualmente progressistas, ocupados com a garantia de direitos fundamentais do investigado/acusado observam o fato efetivando (ou deveria efetivar) suas funções de conter o poder punitivo do Estado legiferante. A seu turno, é de se esperar que os agentes do parquet, comprometidos com a “defesa da sociedade”, enxerguem o fato sob a perspectiva da ameaça ou lesão aos bens jurídicos fundamentais elencados. De igual cariz, enxergariam os operadores do Direito, comprometidos com a Constituição da República, convenções e tratados de direitos humanos, o Código Penal e o Código de Processo Penal, uma interpretação conforme.

Antes de se chegar ao ponto pretendido, ou seja, a definição do “que é” ou “não é”, faz-se necessário percorrer um caminho dialético. Em linhas gerais, trata-se de “uma descrição dinâmica (e não mais estática) do processo de compreensão que, posteriormente, recebeu a denominação de círculo hermenêutico[10]”.

Quando se deseja compreender um texto normativo, inicia-se com uma pesquisa do aspecto gramatical da linguagem. Como, nessa etapa, há análise impessoal de regras linguísticas, inicia-se uma incursão na seara psicológica do autor (a vontade do legislador), bem como uma investigação do contexto social, político, econômico e cultural, capaz de levar o intérprete a compreender, de forma prévia e não definitiva, os possíveis motivos pelos quais aquele texto de lei foi editado. Porém, o processo só se completa, quando a compreensão da norma se confronta com as diversas interpretações dos atores jurídicos que produzem suas narrativas, carregadas de sentido, sobre os fatos trazidos aos autos (mundo jurídico).

Em nossa nova ordem jurídica, que prioriza a universalização dos Direitos[11], nos permite concluir que esse movimento de atribuição de sentido inicia na fase da investigação criminal (Lei 12.830/13) e só termina com uma decisão de mérito, em que se delimita a formação da culpa do autor e, reinicia-se, quando se observa um novo fato semelhante, à luz do precedente formado.

Segundo Gadamer[12], cada intérprete possui seu próprio horizonte interpretativo e nem sempre haverá consenso sobre o mundo fenomênico. Nesse contexto, ganha relevo a argumentação jurídica capaz de contextualizar o Direito Positivo com os fatos do caso sub examen.

A nova lei, a par de outras questões anteriormente debatidas, definiu uma interpretação autêntica[13] (simbólica), fruto dos influxos da cidadania manifestada pelos nossos representantes legítimos, ou seja, essa norma penal simboliza um imediatismo punitivo populista. Esse é o ponto.

Na oportunidade, o delegado de polícia e o promotor de Justiça entenderam que tal conduta teria causado grande constrangimento à vítima, e o fato de não ter ocorrido violência física não descartava a violência psicológica causada pelo trauma, visivelmente ofensivo a sua dignidade sexual. Logo, ao sujeito lhe foi imputado o crime de estupro. Contudo, o juiz, acatando o “horizonte interpretativo” da Defensoria Pública de São Paulo, converteu a tipificação do crime para a contravenção penal prevista no artigo 61, da LCP.

Assim, veio o legislador e reagiu, criando um tipo penal que se adequasse ao apelo popular e fixando, em busca de proporcionalidade entre a conduta de ejacular no ônibus e o ato libidinoso violento não consensual, fixou no tipo penal uma pena de reclusão de 1 a 5 anos ao delito de importunação sexual, estabelecendo um mecanismo de prisão automática na fase policial, utilizando-se do limite inconvencional previsto no artigo 322 do CPP[14].

Em outras palavras, numa leitura retrospectiva da norma esculpida no referido artigo do CPP, o delegado de polícia não poderia conceder liberdade provisória, e o detido seria encaminhado à audiência judicial de custódia, para ter efetivado seu direito de liberdade provisória ou não, em razão do delito ser de médio potencial ofensivo e admitir suspensão do processo, por força do artigo 89 da Lei 9.099/95, aplicável a qualquer delito cuja pena mínima seja igual ou inferior a 1 ano ou, como já pronunciou o STF[15], houver previsão de pena alternativamente de multa, ainda que a pena mínima seja superior à 1 ano.

Por oportuno, se a pena de 1 a 5 anos definiu uma resposta penal intermediária entre o estupro, como crime hediondo, e a contravenção penal, de menor potencial ofensivo, por outro lado, avaliza o costumeiro viés simbólico do Direito Penal ao manipular a pena máxima para que se dificulte a liberdade em sede policial. A prisão seja ela de que natureza for deve atender aos seus fins processuais[16], incluindo-se seu caráter homogêneo, que consiste em não impor ao investigado ou réu uma medida mais gravosa que aquela que incidiria em caso de condenação[17].

É imperioso concluir, que diante dos posicionamentos doutrinários sobre a cautelaridade[18] da detenção em flagrante e da Corte Interamericana de DH sobre a legitimidade de órgãos não jurisdicionais possuírem a plena possibilidade do exercício da função denominada de “materialmente judicial”[19], que o delegado de polícia, no exercício de sua função técnico jurídica de interpretar a norma, decorrência de atividade jurídica de Estado, deva exercer, ao se deparar com o direito subjetivo de suspensão do processo, decidirá pela liberdade provisória do conduzido, por vislumbrar uma situação jurídica do detido de inexistência sequer de aplicação de pena.

Trata-se de uma desproporção criada pelo legislador ao querer forçar o ingresso do imputado no sistema prisional para depois ser solto, adiando o que pode ser concedido pelo delegado. Insta salientar que a liberdade provisória em sede policial uma medida que não está sob a reserva absoluta de jurisdição, ajustando-se a proporcionalidade processual penal da liberdade e da pena, desde o momento em que o Estado-investigação é instado a se manifestar e aplicar a lei ao caso concreto.

Há duas insistências nefastas à sociedade: a busca por se resolver questões imorais com prisão populista e a manipulação do poder policial para se satisfazer pelo gozo do castigo antecipado. O gozo pelo castigo da pena não é mais satisfatório.


[1] MORAES, Rafael Francisco Marcondes de e EVANGELISTA JUNIOR, Osvaldo. Lei 13.718/18 e o pretenso recrudescimento dos crimes sexuais. IBCCRIM, São Paulo, v. 26, nº 311, Outubro/2018.
[2] GILABERTE, Bruno. Lei nº 13.718/2018: importunação sexual e pornografia de vingança. Revista Eletrônica Canal Ciências Criminais. Disponível: <https://canalcienciascriminais.com.br/importunacao-sexual-vinganca>, acesso em 8/10/2018.
[3] ADPF 347 MC/DF, Rel. Min. Marco Aurélio, julgado em 9/9/2015. Plenário do STF.
[4] STF, HC 124.306/RJ. 1ª Turma. Min. Luiz Roberto Barroso. Dje 17/03/17.
[5] FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. 3ª ed. Rio de Janeiro: Nau, p. 75.
[6] MARTINS, Rui Cunha. A hora dos cadáveres adiados: corrupção, expectativa e processo penal. São Paulo: Atlas, 2013, p. 3.
[7] FAORO, Raymundo. Os Donos do Poder: formação do patronato político brasileiro. 5ª Ed. São Paulo: Globo, 2012.
[8] BARBOSA, Ruchester Marreiros. Polícia Judiciária enquanto Dispositivo Democrático. In HOFFMANN, Henrique et al. Investigação Criminal pela Polícia Judiciária. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2017, p. 08.
[9] GACKI, Sérgio Ricardo Silva. Perspectivas do Diálogo em Gadamer: a questão do método. Cadernos do Instituto Humanitas Unisinos, ano 4, n. 16, p. 7-26, ago. 2006. p. 7.
[10] COSTA, Alexandre Araújo Costa. Direito e Método: diálogos entre a hermenêutica filosófica e a jurídica. 2008. Tese de Doutoramento – Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade de Brasília, DF, 2008. p. 91.
[11] Art. 4º, II da CR/88.
[12] GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. Tradução Flávio Paulo Meurer. 2.ed. Petrópolis: Editora Vozes, 1998.
[13] https://www.conjur.com.br/2017-ago-31/ejacular-mulher-constrange-nao-justifica-prisao-juiz
[14] BARBOSA, Ruchester Marreiros e HOFFMANN, Henrique. Controle de Convencionalidade pelo Delegado de Polícia. ANSELMO, Márcio Adriano et al. Temas Avançados de Polícia Judiciária. 2ª Ed. Salvador: JusPudivum, 2018, p. 52.
[15] HC 83.926-6, Rel. Ministro Cezar Peluzo.
[16] BARBOSA, Ruchester Marreiros. Prisão preventiva e seus fins processuais. In HOFFMANN, Henrique et al. Temas Avançados de Polícia Judiciária. 2ª Ed. Salvador: JusPudivum, 2018, p. 106.
[17] HC 64.379-SP, Sexta Turma, DJe 3/11/2008. HC 182.750-SP, Rel. Min. Jorge Mussi, julgado em 14/5/2013.
[18] OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de; FISCHER, Douglas. Comentários do código de processo penal e sua jurisprudência. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2012, 584.
[19] Corte IDH. Caso Vélez Loor Vs. Panamá. Excepciones Preliminares, Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 23 de noviembre de 2010 Serie C No. 218, párr. 142.

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