Opinião

Ensinamentos de Evandro Lins e Silva e Sobral Pinto para estes tempos sombrios

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15 de outubro de 2018, 15h44

Não há dúvida de que, ao longo de toda a sua vida pública, Jair Messias Bolsonaro tem se posicionado a favor de ideais que muito se afastam daqueles que regem a nossa jovem democracia, construída com o sangue e com a perda de várias pessoas. Desde o fim da ditadura de 1964, os valores democráticos nunca estiveram tão ameaçados. Mas o que isso tem a ver conosco, profissionais do Direito?

De início, caso eleito, Bolsonaro seria o responsável pela indicação do procurador-geral da República e de pelo menos dois ministros do Supremo Tribunal Federal. Além disso, nomearia outros vários ministros de tribunais superiores e magistrados de segundo grau. Controlaria o Exército e a Polícia Federal.

Mas não é só. Ele seria um agente catalizador do momento punitivo pelo qual a sociedade brasileira tem passado. Colocaria, não tenham dúvida, em risco o devido processo legal e as prerrogativas dos advogados. Foi nos anos de ditadura que houve advogados presos, desaparecimentos de pessoas, processos forjados. Bolsonaro exalta esse amargo período de nossa história.

Como há o concreto risco de termos Bolsonaro como presidente da República, gostaria de relembrar a meus companheiros advogados, magistrados e membros do Ministério Público, entre outros, alguns valores, os quais reputo fundamentais para, caso o pior ocorra, que não esqueçamos jamais como proceder.

E é justamente dos anos de chumbo que gostaria de resgatar a lembrança de dois exemplos, bastante salutares e que lutaram, colocando em risco a própria vida e de seus familiares, pela liberdade de seus clientes e da nação.

O primeiro foi procurador-geral da República, ministro das Relações Exteriores, ministro-chefe da Casa Civil e ministro do Supremo Tribunal Federal. O segundo foi um dos maiores advogados de todos os tempos, destemido e de uma bravura tão notável que levou alguns personagens daquela época a afirmar que “tocar em Sobral Pinto é talvez mais difícil do que fechar o Congresso”. Ambos enfrentaram as duas últimas ditaduras pelas quais passamos.

Evandro Cavalcanti Lins e Silva era um homem independente e fiel a seus ideais. Quando ministro das Relações Exteriores, não se curvou às pretensões norte-americanas, que, a pretexto de evitar a expansão do comunismo, estimularam a instituição de regimes ditatoriais. Ministro do Supremo Tribunal Federal, foi injustamente aposentado, sem arredar um milímetro daquilo que acreditava ser necessário à postura de um magistrado.

Foi enquanto advogado, é verdade, que manifestou com maior força a sua grandeza. É tido hoje como o advogado do século. Nessa posição, defendeu milhares de presos políticos, todos sem receber um único centavo. Era um inveterado defensor da liberdade, da racionalidade e da compreensão humana dos problemas da vida[1], além de um ácido crítico à prisão[2].

Aos 80 anos de idade, passava noites em claro, estudando casos difíceis de competência do Tribunal do Júri. Estava em “estado de Júri”, como diziam os seus familiares. Não conseguia nem mesmo ver passarinho preso na gaiola. Tudo isso sempre em nome da liberdade!

De outro lado, Heráclito Fontoura Sobral Pinto possuía uma bravura capaz de impor respeito em qualquer general que ousasse desafiar os direitos humanos. Autor de cartas duríssimas, as direcionava ao ministro da Justiça, ao presidente da República, a magistrados, ou a quem quer que fosse. Desafiou o nazismo, para salvar Anita Leocádia, filha de Olga Benário e de Luís Carlos Prestes. Nas palavras de quem o conheceu, “ele não foi um animal domesticado”.

Criativo, salvou Herry Berger da morte com base na Lei de Proteção dos Animais. Seu cliente, até então, estava preso nos porões da ditadura varguista, sem acesso a advogado e sendo diuturnamente torturado.

Contam que certa feita Sobral foi visitar Herry Berger, um coronel da cavalaria, ao vê-lo na sala de espera[3], partiu para agredi-lo. Sobral se desvencilhou do militar e, em seguida, recebeu uma ordem de prisão. O advogado, então, respondeu com firmeza e destemor: “Preso coisa nenhuma!”. A razão venceu e Berger foi salvo. Sobral não chegou a ser preso na ocasião.

Só veio, efetivamente, a ser detido aos 75 anos de idade, já na ditadura de 1964. Levado a um batalhão em Brasília, discursou para os outros presos, contra o regime militar e sem nenhum medo. Pouco após sua prisão, foi a um congresso em que um militar defendia os motivos para as Forças Armadas governarem o país[4] e a necessidade de se fazer “uma democracia à brasileira”. Sobral ironizou: “Tenha paciência. Não existe democracia à brasileira. O que existe é peru à brasileira. A democracia é universal”. Sua frase foi capa de O Pasquim, renomado periódico da época.

Bravura, firmeza, força de caráter e destemor são adjetivos que, sem dúvida, qualificam Heráclito Fontoura Sobral Pinto. É interessante que Sobral chegou a ter substancial dificuldade financeira em sua casa, pois não cobrava de muitos de seus clientes.

Jamais se negou a defender uma causa justa. Apesar de ser fortemente católico e conservador, defendeu Luís Carlos Prestes, ateu e comunista. Defendeu o golpe de 1964, é verdade. Isso por acreditar que, à época, existia o risco de os comunistas tomarem o poder. Tão logo se deu conta de que os militares não largariam o governo, escreveu uma carta duríssima a Castelo Branco, exigindo a devolução do poder ao povo brasileiro. Desde então, foi um ferrenho opositor à ditadura militar de 1964 e teve concreta e efetiva participação nas Diretas Já.

Evandro Lins e Silva e Sobral Pinto são dois grandes homens de sua época, lutaram firmemente pelo restabelecimento do Estado Democrático de Direito e sofreram, na própria pele, os revés de um poder punitivo sem limites. Não tenham dúvida, a independência, a coragem e a intransigência com os valores democráticos custam caro em tempos sombrios. A história desses homens e de tantas outras pessoas demonstra esse fato.

Os ensinamentos deixados por esses dois grandes sujeitos nos dão força para, como profissionais, passar pelo desafio que a nossa jovem e tão sofrida democracia poderá enfrentar nos próximos quatro anos. Enquanto advogados, julgadores, membros do Ministério Público, muitos precisarão de nós. Que tenhamos a firmeza de convicção de Evandro e a bravura de Sobral. As duas ditaduras militares passaram, os ideais democráticos, pregados por esses advogados, permaneceram.

Com bravura, firmeza de caráter e intransigência com os valores protetores da pessoa humana, o crepúsculo do Direito passará, a ordem constitucional e a democracia, passarinho.


[1] Vou fazer aqui uma confissão que nunca fiz publicamente: minha maior derrota profissional foi uma vitória no júri, quando acusei um casal de médicos. Eles moravam na Tijuca, estavam dentro de casa reclamando do barulho que um grupo de pessoas fazia na rua e, afinal, o marido teria dado tiros e matado um rapaz. Fiz essa acusação, por volta de 1958, 59, a pedido da família da vítima. E, de fato, os réus foram condenados. No dia seguinte, recebi a notícia de que o médico tinha se suicidado na prisão. Até hoje sofro com isso. Deveria ter aceito aquela acusação? Por isso, quando me perguntam se já acusei, digo: “Cometi alguns pecados na minha vida. Um deles foi o de acusar”.
Acho que todos devemos ter um vigilante de compreensão humana dos dramas da vida, do infortúnio do desespero com que as pessoas agem. Isso é muito importante. Eu tenho realmente uma formação liberal. Está dentro de mim, nas minhas entranhas, o sentido da compreensão dos erros alheios, a capacidade de perdoar, de compreender, de entender, de ajudar aquele que sofre um infortúnio, que está num momento de desgraça, de aflição, de angústia, de padecimento. Acho que esse foi o norte, o caminho, o rumo da minha vida. Ninguém me procura para contar uma coisa alegre, uma amenidade, sobretudo na advocacia penal, trata-se sempre de uma desgraça, de uma infelicidade. E aí, eu tenho que atuar (O Salão dos Passos Perdidos, Fl. 219).
[2] No livro O Salão dos Passos Perdidos, registrou: “Nos casos em que a prisão é desnecessária a recuperação do indivíduo, o justo, o correto, o inteligente, o racional é que não haja prisão. Encontraremos outras fórmulas: suspensão de direitos, proibição de morar em determinado lugares necessidade de prestar de prestar contas à Justiça do que se está fazendo… Mesmo porque essa criminalidade que aumenta, que é motivo de revolta, de indignação pública, é resultado de quê? Do desemprego, da fome, da miséria. Na medida em que isso aumenta, aumenta a criminalidade. Não se pense que a criminalidade vai acabar se se introduzir a pena de morte, a pena mais grave. Absolutamente! Isso é uma ilusão, é uma fantasia, é uma falácia! Na realidade, que está desejando punir demais, no fundo, no fundo, está querendo fazer o mal, se equipara um pouco ao próprio delinquente” (Fl. 215).
[3] Sobral conta que fez da sala de espera a sua sala de leitura. Ficava por horas aguardando para falar com seu cliente. Muitas vezes a sua espera era infrutífera, mas sempre cumpriu com sua missão de advogado e não arredava o pé do local até conseguir uma mensagem de seu cliente.
[4] Contam os relatos que o militar defendia a necessidade de os militares governarem porque eles eram honestos e preparados, pois haviam frequentado a escola superior de guerra. Nas palavras de Sobral Pinto, ele respondeu que o palestrante estava inteiramente enganado e que ele não sabia de nada. Afirmou que a Escola Superior de Guerra trabalhava com apostilas e que quem fosse estudar os problemas do país por meio daquelas apostilas estaria perdido.

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    é advogado criminalista em Brasília, professor voluntário de Direito Penal na UnB, especialista em Direito Penal e Processo Penal pelo IDP, especialista em Direito Penal Econômico e em Parte Geral pelo IBCCRIM.

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