Mundo globalizado

"Movimentos nacionalistas não afetam concorrência fiscal entre países"

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14 de outubro de 2018, 6h33

Spacca
Movimentos nacionalistas vêm crescendo no mundo. No Reino Unido, isso gerou no Brexit, a saída da União Europeia. Nos EUA, Donald Trump, alegando proteger a indústria nacional, tem aumentado tributos de importação. Porém, a popularização de medidas protecionistas não deve ter grande impacto na concorrência entre países, afirma o português João Ricardo Catarino, professor de Finanças Públicas e Tributação da Universidade de Lisboa.

“O problema da concorrência fiscal internacional está acima desses movimentos nacionalistas porque o problema é transversal a qualquer corrente econômica. Quer os Estados estejam enquadrados em espaços de integração econômica (como a UE), quer não, sentem do mesmo o esses problema da concorrência fiscal internacional prejudicial, pelo que este tema mantém todo o interesse da parte dos Estados soberanos”.

Tributaristas avaliam que a “guerra fiscal” é um dos grandes problemas tributários do Brasil. Para Catarino, não há como vencer esse combate, apenas reduzir seus efeitos negativos. Uma maneira de fazer isso é deixar de basear o desenvolvimento de estados mais pobres em medidas fiscais agressivas, e investir mais em políticas integradas, que gerem menos distorções na federação.

Muito mencionado em discussões sobre a desigualdade, o imposto sobre grandes fortunas não resolve esse problema, opina o professor. Segundo ele, o tributo impulsiona a fuga de capitais e acaba penalizando a classe média-alta, e não os ricos, os verdadeiros alvos do imposto.

Embora concorde com o diagnóstico do economista francês Thomas Piketty de que a desigualdade vem aumentando, Catarino é cético quanto à proposta dele de instituir um imposto global sobre a riqueza. De acordo com o docente, falta uma “vontade integrada dos Estados” para combater esse problema.

Em entrevista à ConJur, João Ricardo Catarino também explicou as especificidades e dificuldades tributárias da União Europeia, analisou os prós e contras de benefícios fiscais e comentou sobre a recuperação econômica de Portugal após anos aplicando medidas de austeridade.

Leia a entrevista:

ConJur — Como descreveria os maiores problemas dos sistemas tributários na justa repartição dos encargos fiscais?
João Catarino
— Podemos identificar, desde logo, dois problemas, entre outros. O primeiro é que os sistemas ficais, num modelo de Estado social, foram chamados a dar respostas gerais para os quais não estão dogmaticamente preparados. Como sabe, os impostos são, muitas vezes chamados a cumprir tarefas ou fins sociais gerais, e isso é, sobretudo, evidente no imposto de renda, em especial das pessoas físicas, onde se incentivam ou protegem certos gastos, como é o caso da saúde, da educação, da aquisição de casa própria etc. Estes fins são socialmente muito relevantes, que poderiam perfeitamente ser continuados fora dos sistemas fiscais. Sendo continuados dentro deles, o efeito imediato é que tornam muito mais complexos os modelos impositivos, gerando fenômenos de evitação que são melhor aproveitados por umas classes sociais do que por outras. E sendo mais complexos, fica menos claro quem efetivamente suporta o quê.

O outro problema é que embora os sistemas tributários estejam hoje dotados de princípios que deveriam garantir uma justa repartição dos encargos tributários, desde logo através do conhecido princípio da capacidade contributiva, aplicável ao imposto e, da equivalência ou do benefício, aplicável às taxas públicas, eles realmente não garantem essa justiça efetiva. Em parte o problema é o de que nem todos os tipos de renda são apanhados na malha do Fisco. Ou seja, há rendas em que é muito difícil sonegar (como é o caso dos salários devidos por trabalho assalariado) e outras em que sucede o oposto (como é o caso das rendas de capitais), que são facilmente deslocalizáveis para outras jurisdições onde não há tributação ou onde ela é reduzida. Além disso, o que já não é pouco, tem-se retirado do princípio tributário da capacidade contributiva um conteúdo que ele não tem: arvora-se nele a justificativa da tributação segundo alíquotas progressivas em nome de uma ideia de redistribuição tributária da riqueza e da renda que, na prática, ninguém realmente sabe como funciona, se realmente funciona e se está (ou não) dando um contributo sério, real e significativo à melhoria da distribuição de renda num mundo onde a desigualdade de renda se tem agravado.

ConJur — O que a UE nos pode apresentar como experiências exitosas no combate aos problemas?
João Catarino
— A UE procura estar na vanguarda dos modelos financeiros e tributários, no quadro do Direito Financeiro e Tributário. Não só por conta dela, mas também por conta de uma outra organização internacional, que tem sede na Europa, que é a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). As duas organizações trabalham muito em conjunto, no sentido de promover a estabilidade, a modernidade e a mudança contínua nos sistemas tributários e financeiros, tendo em vista as boas práticas no estado, sistemas tributários mais justos, equitativos e bem repartidos. Procura-se assim a constante mudança e melhoramento.

A UE é um caso à parte porque, no fundo, acaba por ser um grupo de Estados que se uniram para um projeto econômico e financeiro. Centremo-nos mais na OCDE, que não tem um projeto de união de Estados em sentido econômico. O que tem são estados membros: cerca de trinta e poucos estados membros. No fundo, a OCDE produz relatórios, trabalhos de fundo, sobre como agir em cima destes fenômenos. Vários relatórios da OCDE têm alertado para o problema das desigualdades na distribuição de renda e dos mecanismos que, conjuntamente, podem ser implementados para os minorar, como é caso do relatório Divided we stand, de 2011, Income inequality and poverty; Growing Unequal?; Income Distribution and Poverty in OECD Countries, ou ainda, no campo específico da tributação, o Relatório BEPS (2011), que trata de dois problemas que estão afetando estruturalmente a justiça na tributação, e que são: a erosão das bases tributárias (base erosion), em que a produção da renda, sobretudo por parte das pessoas jurídicas, é desviada para jurisdições onde a tributação é menor; e a alteração da natureza da renda, o chamado profit shifting, que é a mudança artificial da natureza da renda obtida (falamos, em especial, das rendas de capitais), exatamente para conseguir o mesmo efeito, ou seja, níveis de tributação inferiores aos que normalmente seriam devidos.

ConJur — Qual o maior desafio hoje dos sistemas tributários?
João Catarino
— Para além da eterna questão da promoção da confiança na estrutura social, da justa repartição do imposto por todos, segundo as reais capacidades contributivas, hoje é claramente mais difícil para os estados soberanos controlarem os fatos econômicos quando eles são produzidos pelas pessoas jurídicas, do que pelas pessoas físicas. Muitas pessoas jurídicas conseguem deslocalizar a sua produção, isto é, conseguem deslocalizar a jurisdição onde vão produzir as suas rendas e, se são grupos internacionais, conseguem aproveitar as diferenças de fundo que existem nos sistemas tributários para minimizar ou eliminar essa tributação. Essa circunstância, aliada ao fato de os sistemas tributários não serem iguais, e ao fato de o mundo estar muito aberto por efeito da chamada globalização, que gerou a economia aberta, a livre circulação de capitais, de pessoas, bens e mercadorias, ampliou as possibilidades de planeamento tributário. Isso faz com que para os estados soberanos seja hoje mais difícil tributar fatos tributários, pois eles são desviados (muitas vezes artificialmente) para jurisdições diferentes daquelas onde, substancialmente, ocorreram, porque as empresas se ajustam, para que tenham o máximo de proveito possível, o máximo de benefício possível, a troco do menor imposto possível.

O resultado é que uns estão pagando menos do que deveriam, ao passo que outros estão sendo agravados de forma a compensar a perda de receita tributária ocasionada pelas práticas de planejamento tributário (muitas vezes abusivo). Assim, é a justa repartição por todos do encargo do imposto que é afetada e, com ela, a própria crença no contrato social que suporta o funcionamento de nossas sociedades.

ConJur — E qual o impacto na soberania dos Estados dos esforços de coordenação internacional (OCDE, UE) para conter a erosão das bases tributárias e os fenômenos de planeamento tributário abusivo?
João Catarino
— A ideia de Estado dito “soberano” trouxe consigo afirmação do conceito de que nenhum outro poder lhe estaria acima. Esta tese, reafirmada na cena internacional em inúmeros tratados e convenções, tem vindo a dar lugar à crença de que problemas globais requerem soluções cada vez mais globais. Surgiram, assim, ao longo de todo o século XX, instituições de diversas ordem e natureza com o intuito de regular os interesses transversais da denominada “ordem internacional”, como o caso mais evidente da ONU ou da Organização Mundial do Comércio (OMC).

No domínio da tributação, a resposta sobre a importante questão de como tributar os lucros, proveitos, rendas ou outros ganhos derivados de operações econômicas internacionais, aquelas que colocaram em contato mais do que uma jurisdição fiscal, começou por ser a da celebração de tratados para evitar as importantes questões de dupla ou bitributação. Para o efeito, tanto a ONU, numa primeira fase, como, depois a OCDE, desenvolveram um modelo de convenção (o modelo de convenção da OCDE) para evitar a dupla ou bitributação, que estabelece critérios gerais de repartição do poder de tributar e que serviu de modelo inspirador para a generalidade dos acordos ou convenções para evitar a dupla tributação que foram sendo celebrados (aos milhares) pelos Estados na ordem internacional.

O fenômeno da erosão das bases tributárias e do planeamento tributário abusivo surgiu na vida dos Estados, por assim dizer, um pouco de uma forma inesperada. Durante várias décadas ao longo do século XX, os Estados procuram resolver estes problemas da não tributação das situações jurídicas internacionais ou até da sua dupla tributação através dos chamados acordos de bitributação. Por exemplo, entre Portugal e o Brasil existe um acordo de bitributação, e o mesmo se passa entre o Brasil e a Argentina etc. Esses acordos têm uma limitação de base: são acordos meramente bilaterais, isto é, resolvem o problema apenas entre dois Estados.

Assim, quando este ambiente aberto sobreveio, em resultado da ampla abertura econômica que chamamos de globalização, nem os Estados, nem as estruturas internacionais próprias dedicadas às questões econômicas internacionais estavam preparadas para tanta desregulação em tão pouco tempo. Os Estados não dispuseram de meios que permitissem continuar a controlar a produção de riqueza nos mais diversos locais do mundo e conseguir fazê-la afluir ao Estado da verdadeira fonte do fato econômico ou da sede do titular da renda, para efeitos de tributação, que é isso que se quer. Portanto, hoje em dia não há, por assim dizer, nem fóruns internacionais, nem leis internacionais, nem instrumentos internacionais, nem organismos internacionais que permitam disciplinar toda esta desregulação e os seus efeitos em matéria tributária. Neste sentido, quando me pergunta o que está sendo feito eu digo que em especial a OCDE, UE e algumas outras instituições estão fazendo alguma coisa.

Hoje em dia um problema é o da dupla tributação jurídica internacional, mas também, é muito mais a dupla não tributação, ou seja, disciplinar os casos em que o titular da renda não paga imposto nem no Estado da fonte, nem paga imposto no Estado da sede. A OCDE tem trabalhado nisso e talvez seja interessante relembrar que há pouco tempo, em 2013/2014, divulgou dois estudos muito importantes em que propõe, num deles, o chamado relatório BEPS: Base erosion and profit shifting, com medidas concretas para atacar o problema. Neste relatório aponta medidas que ela entende que deveriam ser tomadas pelos Estados no sentido de limitar estes fenômenos de que estamos falando. O outro, o plano de ação para o BEPS, propõe-se que os Estados adotem nas suas legislações internas, medidas eu dificultem ou impeçam os casos de não tributação de rendas em especial dos grupos econômicos internacionais.

ConJur — Como é que a UE consegue gerir a concorrência fiscal, uma vez que não tem um bloco econômico monolítico — existem Estados com maiores dificuldades econômicas que outros. Como é que é vista e gerida essa possível “guerra fiscal”?
João Catarino
— São 28 Estados membros que não têm nem níveis de desenvolvimento econômico nem desempenho econômico idênticos e provavelmente não o vão ter. Não obstante, tem havido um grande esforço estrutural de aproximação desses níveis através dos chamados fundos europeus estruturais. Digamos que são uma alocação de recursos aos estados menos desenvolvidos, no sentido de os permitir criar infraestruturas para que se desenvolvam. O desenvolvimento econômico é uma questão de médio e longo prazo. Os Estados que aderiram mais recentemente, recebem ajudas de pré-adesão, isto é, antes de antes de aderirem já estão recebendo quantidades massivas de dinheiro para construírem infraestruturas, enfim, para se modernizarem.

Todavia, um desenvolvimento econômico mais idêntico não significa que os Estados membros da União Europeia estejam obrigados a adotar sempre as mesmas soluções globais para problemas idênticos. No campo tributário não há, nem nunca haverá um sistema comum. Serão sempre diferentes as opções de política interna, são sempre da soberania de cada Estado.

Ora, sendo assim, o objetivo é fazer com que os sistemas tributários, não sendo iguais e não se esperando que alguma vez venham a sê-lo, sejam compatíveis. Vou dar um exemplo, o imposto sobre o valor acrescentado (IVA) em cada país. Quando olhamos para ele, assim à distância, parece igual em todos os Estados membros, mas na verdade ele não é exatamente igual. Existem questões de ordem técnica, pormenores que têm que ver com a mecânica do imposto que variam entre Estados membros, para além de que as próprias alíquotas do imposto não são iguais em todos os estados-membros e aí é um exemplo acabado. A alíquota em Espanha é de 21%, em Portugal é de 23%, na Alemanha, penso que é de 21 % também, na França, cerca de 23%. Então, na verdade, as alíquotas não são iguais. Isto na verdade pode gerar o quê? Gera fenômenos de desvio de consumo. Ora, se eu moro na fronteira com Espanha, vou a Espanha fazer as compras do supermercado, porque a taxa lá são 19%, aqui são 23%, tenho ali um ganho no imposto, mas isso faz parte do jogo. Até porque, por outro lado, você não viaja 200 km para fazer compras de supermercado, já não compensa.

Na verdade, a harmonização integral nunca haverá. A solução é manter o comportamento dos Estados segundo regras de jogo que sejam aceitáveis, que o chamado level playing field seja justo, que seja aceitável.

A União Europeia acordou num texto político, essencialmente ao nível das pessoas da renda das pessoas jurídicas, ou seja, das empresas, no sentido da adoção de um código de conduta para a fiscalidade/ tributação das empresas, para que estas adotem práticas concorrenciais fiscais saudáveis.

O que estava sucedendo é que os Estados estavam oferecendo um sistema tributário para a generalidade dos cidadãos e estavam oferecendo, depois por via particular, por via da negociação concreta, oferecendo regimes tributários mais favoráveis para as empresas que investissem e por aí vai. E estas práticas, até certo ponto, foram consideradas inaceitáveis. Ou seja, os Estados podem ter diferenças nas alíquotas de imposto que estabelecem, por exemplo, a alíquota do imposto de renda das pessoas jurídicas na Irlanda é incomparavelmente mais baixa que a taxa do mesmo imposto em qualquer outro Estado membro da UE. Na Irlanda é de 10%, em Portugal, 19%, em Espanha é 21%, portanto, na generalidade, a alíquota na Irlanda é metade. O que é que se pode fazer contra isto? Nada. A Irlanda é um Estado soberano, pode ter a alíquota que ela quiser, desde que não seja uma alíquota zero e desde que não adote práticas que sejam consideradas nefastas para a concorrência tributária no seio da UE. Mais recentemente, outros pacotes legislativos estão sendo discutidos e adotados, como é o caso da proposta de diretiva antielisão ou, de modo amplo, da proposta de diretiva para o estabelecimento de um imposto sobre transações financeiras comum.

No fundo, a concorrência tributária internacional, mesmo dentro da UE, é vista como um fato incontornável. Contudo, é aceitável dentro de certos parâmetros. Este código de conduta para a fiscalidade das empresas veio estabelecer estes parâmetros, pelo que se pode dizer que a “guerra fiscal” está, assim, contida. Tais parâmetros vêm definir que práticas nacionais são consideradas aceitáveis e as que têm que ser desmanteladas ou desarticuladas.

A OCDE também fez o mesmo. Na verdade, ela emitiu em 1988 um primeiro relatório abrangente, estruturante, que se chama Harmful Tax Competition e falava exatamente da concorrência fiscal, da guerra fiscal internacional, prejudicial. Ela tratou de qualificar aquilo que deveriam ser vulgarmente designados de paraísos fiscais, das zonas de baixa tributação. Assim, a OCDE tem hoje tipificado o que é um paraíso fiscal, tem critérios que permitem dizer se esta jurisdição é ou não um paraíso fiscal, ou seja, se as suas práticas são aceitáveis à luz das regras da boa concorrência fiscal internacional. Define também se tal jurisdição não é um paraíso fiscal, mas sim, uma zona de baixa tributação, onde as condições de tributação são mais baixas e mais favoráveis para as empresas, mas onde se situa, essencialmente, na esfera da liberdade dos Estados. Eu posso dar um exemplo concreto: O que é que seria um paraíso fiscal? Uma jurisdição cujo sistema tributário está vedado aos nacionais do próprio estado ou, por exemplo, uma jurisdição que não troca informações com ninguém, ou seja, não sabe quantas empresas lá estão, não se sabe o valor dos lucros que são lá sediados, como é que se processa a tributação. No fundo, uma jurisdição opaca, é um paraíso fiscal.

ConJur — O fenômeno dos paraísos fiscais, que abrigam os ganhos da corrupção internacional, a lavagem de dinheiro de organizações criminosas internacionais, está contido? São essas as maiores preocupações nesta matéria?
João Catarino
— Esta realidade deixou de ser um buraco escuro, e isso aconteceu muito em resultado do trabalho da OCDE. Aquele primeiro relatório de que já falei, surgido em 1998, o Harmful Tax Competition, veio demarcar estas duas realidades e dizer o seguinte: os Estados membros da OCDE e os Estados do mundo só tem um jeito de lidar com este problema: é isolar estas jurisdições. Neste sentido, se um grupo econômico nacional tem uma empresa sediada num paraíso fiscal, as relações da empresa nacional com a empresa do paraíso fiscal são indesejadas e sujeitas a mecanismos tributários específicos. Estes são as chamadas normas fiscais antiabuso, que, na verdade, tornam muito penalizadora a utilização destas jurisdições. Assim, desestimula o seu uso e, quando há crime internacional. Hoje em dia, essas jurisdições são de tal pressionadas que já trocam informações. Por isso, é hoje possível saber quando uma pessoa tem um problema de crime de lavagem de dinheiro ou outra coisa, como tráfico de pessoas, tráfico de armas, que valores estão envolvidos, foram sonegados etc. É possível a pressionar a jurisdição pra que ela forneça a informação, aliás, é isso que se vê hoje em dia. O ponto frágil é que isso não é feito de forma sistemática, pelo que nunca se chegam a conhecer todos os valores envolvidos, sendo de crer que muitas situações acabem por escapar à tributação.

ConJur — Como acha que esses movimentos mais nacionalistas, com medidas mais protecionistas, que têm vindo a crescer nos EUA, na França nas últimas eleições e no Reino Unido, levando ao Brexit, podem vir a afetar estas últimas questões relativas à concorrência fiscal?
João Catarino
— Não me parece. O problema da concorrência fiscal internacional está acima desses movimentos nacionalistas porque o problema é transversal a qualquer corrente econômica. Quer os Estados estejam enquadrados em espaços de integração econômica (como a UE), quer não, sentem do mesmo o esses problema da concorrência fiscal internacional prejudicial, pelo que este tema mantém todo o interesse da parte dos Estados soberanos.

Bem, é preciso verificar que na cidade de Londres passa muito do dinheiro do mundo. Os ingleses não têm um sistema desenvolvido ou agressivo de tributação dos movimentos financeiros. E não têm por quê? Porque têm uma cidade muito desenvolvida e não têm interesse tributar as operações financeiras. Um dos assuntos em pauta é precisamente a proposta europeia de tributação das operações financeiras. Então o que se nota? Nota-se que países que têm sistemas financeiros muito desenvolvidos, como Luxemburgo, França, Alemanha ou Bélgica, por exemplo, nomeadamente os ingleses, não têm grande interesse em ter esses sistemas tributários. Sistemas que tributem aquilo que é a sua fonte de produção de renda: o sistema financeiro.

Agora, a proposta de diretiva nessa matéria almejava criar um imposto que visasse a tributação do sistema financeiro através do estabelecimento de uma alíquota muito baixa de tributação das operações financeiras no sistema. Não seria uma espécie de bit tax, mas alguma coisa parecida. São impostos que rendem muito, mesmo com uma alíquota ínfima, porque os movimentos financeiros são muito frequentes. Contudo, levantam sempre questões da seguinte ordem: até que ponto é que é o banco ou o ente financeiro que pagará o imposto e até que ponto é que ele não repassa o imposto para o consumidor?

Por outro lado, também pode fazer com que quem quer fazer alguns movimentos de capitais os passe a fazer em dinheiro vivo, evitando o sistema. Enfim, hoje não há soluções milagrosas, nem soluções que sejam completamente boas. Essa proposta de diretiva da tributação das operações financeiras visava o estabelecimento de um imposto comum e, veja só, dos 28 Estados membros, apenas 11 apoiaram a proposta da comissão, dizendo que estariam interessados no estabelecimento um imposto europeu que tributa de igual modo as operações financeiras na União Europeia, porque isso garantia homogeneidade ao imposto, igualdade de aplicação em todos os Estados. Portanto, não haveria, como consequência do imposto, desvio de fundos financeiros de um Estado para outro – eles continuam sendo feitos onde estão. Como só 11 Estados estão interessados na medida, os outros não estão interessados, nomeadamente o Reino Unido. Isto significa que levantam dúvidas sobre se, uma vez implementado o imposto, mesmo por muito pequeno, como são volumes extraordinários financeiros em causa, significa que aquela jurisdição que faz a tributação fica numa situação de desvantagem face a outra do lado. Por exemplo, no caso do Reino Unido, é só atravessar o Canal da Mancha e tem logo outro que não a faz. Isto permite questionar até que ponto é que isto não iria retirar os equilíbrios que existem no sistema financeiro europeu, até que ponto é que os Estados vão conseguir arrancar e até que ponto é que a medida será uma boa medida. Só para ter uma ideia, há pouco o próprio Estado francês veio a dizer, relativamente a esta proposta, em relação à qual somos apoiantes, a França gostaria de ter um imposto sobre transações financeiras. Contudo, a própria França veio estabelecer reservas, dizendo o seguinte: “Achamos que o imposto é uma boa medida, é preciso taxar mais o sistema financeiro, por duas razões: 1) porque ele paga pouco imposto de renda; 2) porque, na opinião de muitos, a crise econômica foi uma resultante da crise do sistema financeiro.” Portanto, os Estados tiveram de acorrer ao sistema financeiro. É por isso justo que ele também pague mais por força disso, mas a verdade é que se levantam questões de saber se a proposta, tal como ela está, não vai gerar desvios, emendas no fluxo financeiro e, por isso, prejudicar os Estados que lançaram o imposto.

ConJur — O que se pode esperar, a longo prazo, da resposta internacional a estes fenômenos perniciosos de erosão das bases tributárias, da fuga para paraísos fiscais e de evidente dificuldade/impossibilidade de os Estados controlarem os fenômenos geradores de riqueza e, assim, de alcançarem uma repartição adequada dos encargos por todos os que podem pagar?
João Catarino
— A prazo, penso que é de esperar uma intensificação contínua do controle, exatamente porque os instrumentos estão a reforçados. É o caso da MLI – convenção multilateral para prevenir a erosão das bases tributáveis e a transferência de lucros, recentemente acordada no âmbito da OCDE e do G-20. Esta vem reforçar muito a troca de informações entres os Estados. Esta troca vai intensificar-se e tornar-se cada vez mais ampla e automática. Não devem haver grandes problemas no seu desenvolvimento, pois se trata de um problema que afeta todos os Estados no mundo.

ConJur — As regras fiscais e cambiais da UE não dificultam a recuperação de países em crise econômica, como a Grécia?
João Catarino
— A Grécia, tal como todos os Estados da zona do euro, perdeu, no todo ou em parte, algumas das suas políticas financeiras, como a política monetária, de taxa de juro, cambial, entre outras. Mas isso faz parte das regras do jogo. A terceira fase da União Econômica e Monetária (UEM), a que os Estados europeus aderiram livremente, assim o ditou. Tais políticas tiveram que passar a ser comuns para que passassem a ser estabelecidas para todos os Estados membros. De modo que a resposta a esta questão é positiva, mas não é nada que não fosse conhecido antes. Por outro lado, para ajudar os países em dificuldades para cumprir os critérios da UEM, a União Europeia estabeleceu mecanismos de ajuda, que foram reforçados pelo denominado Tratado Orçamental e seus vários pacotes legislativos, nas suas componentes preventiva, corretiva e sancionatória. Além disso, foi instituído um mecanismo político, econômico e financeiro de ajuda permanente, o mecanismo europeu de estabilidade (MEE). Este assegura a estabilidade da zona do euro e faz parte do conjunto das medidas elaboradas para o resgate do euro. O MEE deve impedir os estados da euro área a entrarem em dificuldades por causa dos défices orçamentais excessivos, com consequências negativas para o euro, a moeda comum.

ConJur — Portugal desafiou a política de austeridade da UE e voltou a crescer. Como o senhor avalia esse processo? E como Portugal conseguiu tomar esse caminho sem desrespeitar as regras da UE para sua ajuda financeira?
João Catarino
— Bom, do meu ponto de vista, há uma conjugação de fatores: de um lado, o ambiente econômico muito favorável, a que não é alheia a conjuntura econômica mais favorável, e, internamente, os elevados níveis de segurança interna, a existência de muita mão-de-obra qualificada e de infraestruturas de alto nível; de outro, foram tomadas muitas políticas de austeridade que colocaram a política orçamental nos eixos. É claro que isto exigiu uma forte contenção da despesa pública, da qualidade de vida das pessoas e da baixa real de salários, que, entretanto já estão sendo retomados.

Mas há ainda muito trabalho a fazer par uma sustentabilidade financeira e orçamental de longo prazo.

ConJur — Uma das medidas que, segundo especialistas, têm ajudado Portugal a se recuperar é a concessão de benefícios fiscais. No Brasil, especialmente no Rio de Janeiro, muitos culpam esses incentivos pela atual crise econômica. Como o senhor avalia os impactos dos benefícios fiscais e como eles são tratados na UE?
João Catarino
— Os benefícios fiscais são um pau de dois gumes. De um lado incentivam atividades ou opções econômicas e, por isso, podem ser fonte de desenvolvimento estimulado; de outro geram perda de receita, por isso é preciso ter muito cuidado com a sua utilização. No caso português, a crise econômica deveu-se a políticas erradas de gastos excessivos, que desequilibraram as contas públicas e geraram a desconfiança dos mercados financeiros, abrigando o Estado a conceder avultadas ajudas ao sistema financeiro.

ConJur — No Brasil, há dúvidas sobre como combater a guerra fiscal sem prejudicar os estados mais pobres. Há quem argumente que, se os estados não pudessem conceder benefícios fiscais, as empresas só ficariam nos estados mais ricos, como São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais. Esse problema existe na UE? Há quem argumente que a União é muito mais favorável aos países mais ricos, como Alemanha e França.
João Catarino
— A guerra fiscal existe em todos os espaços integrados e certamente existe também na União Europeia. O importante não é procurar matá-la, mas conter o fenômeno dentro de parâmetros razoáveis. Como disse acima, os Estados, soberanos ou federados, devem poder manter certa medida de liberdade em matéria de políticas fiscais, ou outras. No caso europeu, o problema está contido com as regras gerais criadas pelo código de conduta para a fiscalidade das empresas, acima referido, e outros preceitos regulamentares, que disciplinam essa liberdade sem, todavia, a fazer desaparecer. E deve ser combatida, eventualmente, com fundos da federação, com taxas bonificadas, linhas de crédito para investimentos estruturantes, para ajudar os Estados menos desenvolvidos. Por outro lado, o desenvolvimento dos estados mais pobres não deve se assentar apenas em políticas fiscais muito agressivas, mas em políticas integradas, articuladas, que concorram de forma eficaz para o mesmo objetivo comum: o desenvolvimento harmonioso da federação brasileira.

A UE tem alguns desequilíbrios em matéria das vantagens e desvantagens para os estados do centro, do sul, do leste ou do norte europeu. Todavia, elas não são tão evidentes que tornem desinteressante o projeto europeu, como se vê do número dos Estados que aderiu ou saiu da união, desde que se formou (1952). São sete alargamentos no total. Nessa medida, não me parece correto ou fundado afirmar que ela beneficia os estados do centro, uma vez que todos os demais obtiveram ajudas de pré e pós-adesão, para a modernização das infraestruturas, das estruturas produtivas e das respostas sociais no quadro da UE, entre outras.

ConJur — Dentro do contexto mundial de desigualdade, a proposta do economista Thomas Piketty de instituir um imposto global sobre a riqueza é viável?
João Catarino
— Há um enorme consenso em torno do fato de que existe um problema real de distribuição de renda e riqueza no mundo e de que essa desigualdade se tem agravado. Do meu ponto de vista, isso deve ser enfrentado com políticas públicas integradas, de variada natureza. E não apenas com políticas de índole tributária, porque a capacidade (e a vontade) de tributar dos Estados é variável consoante o tipo de renda obtida e o momento político. Ao Luxemburgo, à Suíça ou ao Reino Unido, por exemplo, não interessam políticas fiscais muito agressivas de tributação dos rendimentos de capitais ou das rendas financeiras e da riqueza, exatamente porque possuem sistemas financeiros muito desenvolvidos, que são centros importantes da sua economia, ao passo que, para outros Estados, uma opção mais agravada dessas rendas poderá ser mais ou menos indiferente.

Um imposto global sobre a riqueza funcionará se houverem instrumentos globais que possam medir essa riqueza ou controlar o seu gasto, o que não é o caso. Por outro lado, mesmo que houvessem instrumentos globais, não existem soluções transnacionais, globais, que garantam uma aplicação desse imposto. Há, ainda, que contar com as diferenças políticas e técnicas entre os Estados para concretizar essa tributação, e realmente parece que ninguém está disposto a dar o primeiro passo, porque isso pode significar a fuga de capitais para jurisdições mais amigáveis da renda e da riqueza. As ideias do economista francês são muito estimulantes, e os problemas a que ele se refere são reais e estão crescendo. A desigualdade e as assimetrias de renda e riqueza estão se agravando sem que haja sequer uma proposta mais global, integrada, para o enfrentar, mas um imposto global funcionará se for mesmo global na sua concepção e aplicação, e não parece que haja consenso e instrumentos internacionais para o fazer. Faltando uma vontade integrada dos Estados, será difícil combater esses desequilíbrios de forma global.

A União Europeia tem em cima da mesa uma proposta de tributação das transações financeiras que pode ser parte de uma resposta para a sub-tributação que se verifica ao nível do sistema financeiro, mas está longe de constituir uma solução global.

ConJur — Como o senhor avalia o imposto sobre grandes fortunas? Ele é uma boa solução para combater a desigualdade ou gera a fuga de capitais?
João Catarino
— Sou crítico a adoção de impostos sobre as grandes fortunas porque há uma incapacidade estrutural para atacar o problema. Isto é, o imposto, por si só, nada resolveria. Embora reconheça que existe um problema mundial de desigualdade de riqueza e de renda, não me parece que ele seja a solução. Como tenho dito (e escrito), há problemas conceituais de fundo para resolver (o que é uma grande fortuna?) e problemas de modelo – como tributar. Para além deles, num mundo desregulado, as grandes fortunas mobiliárias escapariam facilmente à tributação, ficando apenas à mercê dos Estados a possibilidade de tributação de fortunas imobiliárias, o que geraria novas desigualdades. O imposto geraria facilmente fugas de capitais, com prejuízo econômico para os Estados que os instituíssem e acabaria tributando os meios de vida da classe média-alta, sem realmente atingir as classes verdadeiramente ricas. As dificuldades de concepção e implementação são imensas, como se vê.

Alguns Estados ensaiaram modelos de tributação das grandes fortunas, como é o caso da Espanha ou da França, mas tenho as maiores dúvidas que as realmente “grandes fortunas” estejam sendo tributadas. No caso da Espanha, a tributação dos meios de riqueza acima de um milhão de euros deixa dúvidas se para o padrão europeu esta cifra se pode considerar um “grande fortuna”. Basta lembrar que o ator francês Gerard Depardieu tornou-se um cidadão russo, ao passo que Bernard Arnault, o homem mais rico de França, se naturalizou Belga.

No caso de Portugal, a Constituição política não prevê a tributação das grandes fortunas por opção, embora expresse opções redistributivas. Na verdade, ele até poderia existir, contudo, a questão é mais esta: foi uma opção na reforma de 2004 tributar o patrimônio das pessoas com três impostos muito simples: as transmissões do patrimônio imobiliário; a posse do patrimônio (o IPTU no Brasil) e um denominado imposto do selo, que tributa várias operações avulsas. E foi também uma opção de fundo não tributar as transmissões mortis causa, pelo que não temos hoje um imposto que tribute as transmissões por morte de pais para filhos. Aliás, mesmo nas transmissões em vida, ou seja, nas doações de pais para filhos, o imposto é apenas de 0,8%, sobre o valor fiscal ou tributável do prédio, não é o valor de mercado do prédio, o que significa que o imposto é relativamente baixo. Qual é a filosofia que subjaz a uma opção destas? Entendemos, na altura, quem fez parte da comissão da reforma, e eu fiz, que quando você paga impostos em vida, na verdade você, quando morre, já ajustou as suas contas com o Estado, já pagou. Mas, a rigor, o inverso também pode ser defendido: quem recebe passa a deter bens para os quais não obteve qualquer esforço.

Importa também dizer que a tributação do patrimônio em Portugal, hoje, subiu bastante por comparação com o regime anterior. Na verdade, se virmos isto na perspetiva dos municípios, a receita dos impostos sobre o patrimônio é total e diretamente afeta ao município em cuja jurisdição se encontra o prédio. Isso faz com que os municípios sejam hoje autossuficientes em termos de receita em cerca de 70%, em média. Ou seja, o financiamento municipal faz-se, hoje, com impostos municipais, e não com transferências orçamentárias, o que quer dizer que os municípios não dependem tanto assim do Estado para ter a sua própria receita.

No caso português, a alíquota dos impostos sobre o patrimônio varia entre 0,3% e 0,45%. O que então fizemos foi criar um sistema de apuração do valor do prédio mais eficiente, mais exato, isso é, ele hoje tende a aproximar-se do valor de mercado. O que significa que o valor patrimonial tributário do prédio é mais elevado agora do que era há alguns anos. Mas houve essa atualização forte e, por consequência, as alíquotas baixaram muito. Mas, em contrapartida, a receita também aumentou muito, porque o contribuinte paga mais. Assim, introduziu-se mais mobilidade no sistema, pois o que acontecia era isto: um imóvel antigo no centro de Lisboa com 200 anos, um palacete, imagine do tempo de Eça de Queiroz, valendo 5 ou 6 milhões de euros ou mais, tinha um valor tributário para efeitos tributários muito baixo, porque tinha sido avaliado muito tempo atrás. Porém, um imóvel comum na periferia da cidade, com 4 cômodos, tinha um valor patrimonial, para efeitos fiscais, bastante mais elevado que o primeiro. Assim, enquanto se tinha na periferia um casal jovem, morando endividado porque foi no banco pedir um empréstimo para comprar um apartamento, no centro da cidade se tinha uma pessoa estabelecida na vida, se calhar já com 70 ou 80 anos. Era uma injustiça, e este modelo nivelou muito isto, pois todos os imóveis foram avaliados: 17 milhões de imóveis foram avaliados. Mais, criaram-se critérios muito objetivos, são tão objetivos que qualquer cidadão antes comprar um imóvel pode fazer a simulação de quanto imposto terá de pagar, o que é uma segurança para o comprador.

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