Opinião

Para o CNJ, achado não é roubado — mas não é o que diz a lei

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13 de outubro de 2018, 6h43

Em 22 de agosto, o Conselho Nacional de Justiça publicou em sua página no Facebook um post a propósito da norma do artigo 1.234 do Código Civil, que estipula uma recompensa a quem devolve coisas alheias achadas. Tal publicação é ilustrada por uma figura com os seguintes dizeres: “Achado não é roubado, mas quem devolve é recompensado. Aquele que devolve o bem achado tem direito a uma recompensa de 5% do seu valor”.

O dito “achado não é roubado”, como se sabe, é bastante utilizado popularmente para justificar a conduta de quem não cuida de devolver coisas alheias achadas. Ao contrário da atitude do roubador, por todos repudiada, a atitude de não devolver não seria ilícita, de acordo com a sabedoria popular. Todavia, esse dito popular não está conforme o ordenamento jurídico brasileiro, pois tanto o roubo como a não restituição de coisas alheias são igualmente ilícitos, tipificados inclusive penalmente, muito embora variem as sanções previstas.

O roubo, tipificado no artigo 157 do Código Penal como “subtrair coisa alheia móvel, para si ou para outrem, mediante grave ameaça ou violência a pessoa, ou depois de havê-la, por qualquer meio, reduzido à impossibilidade de resistência”, tem como sanção a severa pena de reclusão, de 4 a 10 anos, e multa, na hipótese de não ocorrência de causas de aumento de pena. Já “quem acha coisa alheia perdida e dela se apropria, total ou parcialmente, deixando de restituí-la ao dono ou legítimo possuidor ou de entrega-la à autoridade competente, dentro do prazo de 15 (quinze) dias”, comete o crime de “apropriação de coisa achada”, cuja pena cominada pelo artigo 169 do CP é de detenção, de 1 mês a 1 ano, ou multa.

Evidentemente, quem acha e não devolve bem alheio não comete o crime de roubo. Comete outro crime. Mas isso não significa que o dito popular esteja conforme com o ordenamento jurídico, pois seus termos não são interpretados literalmente na sociedade.

A disposição do artigo 169 do CP guarda consonância com os mandamentos do artigo 1.233, caput, e parágrafo único, do CC, que igualmente encerram uma norma que determina a quem acha a coisa alheia o dever de diligenciar sua devolução. A conferir:

“Art. 1.233. Quem quer que ache coisa alheia perdida há de restituí-la ao dono ou legítimo possuidor.
Parágrafo único. Não o conhecendo, o descobridor fará por encontrá-lo, e, se não o encontrar, entregará a coisa achada à autoridade competente”.

Em comentário sobre o tema, Carlos Roberto Gonçalves pontua que:

“Em nenhuma hipótese permite a lei que o descobridor se aproprie do bem. É dever de quem o encontra tudo fazer para localizar seu dono. Não o conseguindo, deve procurar a autoridade policial quem entregará a coisa achada”[1].

Nessa mesma linha, Fábio Ulhoa Coelho destaca que o dito popular “o achado não é roubado” encerra uma mentira:

“Um brocardo popular de larga difusão no Brasil afirma que ‘achado não é roubado’. Ele é mentiroso. Quem acha coisa perdida por alguém tem o dever legal de a restituir ao proprietário ou legítimo possuidor. Se fica com ela, comete ilícito penal (CP, art. 1.69, parágrafo único, II). Apenas se as circunstancias que cercam a coisa permitirem concluir que houve abandono ou renúncia poderá que a encontrou tornar-se seu dono por ocupação[2]”.

Portanto, ao se utilizar do dito popular mentiroso, corroborando-o, o post do CNJ de 22 de agosto traz a impropriedade de afirmar que não é ilícita a conduta de quem não cuida de devolver o que acha a seus donos. Tratando-se o CNJ de um órgão do Poder Judiciário, essa impropriedade de tomar um dito popular como verdadeiro é ainda mais grave, tendo em vista que, em função da credibilidade de que dispõe no meio jurídico, seus seguidores tendem a achar que as mensagens divulgadas correspondem mesmo com o direito.

Certamente os responsáveis pelo post não pretenderam fomentar a prática do crime do artigo 169, parágrafo único, II, do CP, mas analisando a mensagem, tal como publicada pelo CNJ, dúvida não pode existir de que contém mensagem que objetivamente fomenta a prática desse ilícito, muito embora, em sua segunda assertiva, esteja em perfeita consonância com a norma que prevê o direito de recompensa a quem devolve o achado (artigo 1.234).

Na prática, ao enfatizar apenas o direito de recompensa em prol do descobridor, e ao utilizar um ditado popular que encerra uma ilicitude, o post do CNJ ignorou a norma do artigo 1.233 do CC e do artigo 169 do CP, que impõem o dever de devolução a quem acha o alheio. Em poucas palavras: irrefletidamente, o CNJ confundiu seus leitores, em vez de informá-los, como costumeiramente faz por meio de suas publicações no Facebook.

Diante de tal quadro, protocolizei, em 12 de setembro, junto à Ouvidoria do CNJ, uma solicitação de retirada do Facebook do post em questão, na esperança de que o órgão judiciário, num gesto de grandeza, reconhecesse seu erro. Eis os termos da solicitação:

“Em 22/08/2018, o CNJ divulgou em sua página no Facebook um post a propósito da norma do art. 1.234 do Código Civil, que estipula uma recompensa a quem devolve o achado. Tal post é ilustrado por uma figura com os seguintes dizeres: 'Achado não é roubado, mas quem devolve é recompensado. Aquele que devolve o bem achado tem direito a uma recompensa de 5% do seu valor'.
Conquanto baseado na norma do art. 1.234 do Código Civil, referido post desconsidera a norma do art. 1.233, segundo a qual é dever de quem acha envidar esforços para localizar o dono e devolver-lhe o achado. Enfatiza o 'direito' a uma recompensa, esquecendo-se o dever primordial de devolver. Pior: ao utilizar o dito popular 'achado não é roubado', o post induz a sociedade a achar que é normal ou legal não devolver o que foi achado, pois esse ditado é usado exatamente como desculpa retórica por quem não quer devolver o que achou.
Assim, a fim de evitar maiores danos, solicita-se que o CNJ retire o mais rapidamente do Facebook o post em questão”.

Essa solicitação, cadastrada sob o número 227.559, foi respondida evasivamente pela Secretaria de Comunicação Social do CNJ em 19 de setembro, sem deferimento ou indeferimento do que fora pedido, do seguinte modo, verbis:

“Prezado Pablo,
Agradecemos pelo seu feedback e informamos que em breve serão publicados posts sobre o citado artigo 1.233 do Código Civil e ainda sobre o artigo 169 do Código Penal, que trata da apropriação da coisa achada. Nosso objetivo ao publicar conteúdos como o citado pelo senhor é dar visibilidade a marcos regulatórios de utilidade pública, que sejam de interesse dos cidadãos”.

Tendo em vista que na solicitação eu não havia pedido a publicação de posts sobre o artigo 1.233 do CC ou sobre o artigo 169 do CP, e que, de todo modo, a Secretaria de Comunicação Social do CNJ não apreciara o que fora objetivamente pedido, preferindo utilizar-se de uma retórica fraca para deixar de reconhecer o grave equívoco cometido, protocolizei reclamação em 25 de setembro, que veio a ser cadastrada com o número 228.149, na qual, após sumariar todo o ocorrido, argumentei:

“Pois bem. A resposta da Secretaria de Comunicação Social do CNJ informa que serão publicados posts sobre o art. 1.233 do CC e sobre o art. 169 do Código Penal. Mas isso não consta no objeto da minha solicitação. Nela eu pedi a retirada do ar do post do Facebook de 22/08/2018, de modo que qualquer resposta, para ter um mínimo de referibilidade com o que foi pedido, deveria se limitar a deferir ou a indeferir o que foi pedido, apresentando, evidentemente, a devida fundamentação para tanto.
A resposta da Secretaria de Comunicação Social do CNJ, portanto, é evasiva. Não respondeu ao que foi solicitado e tampouco teceu comentários sobre a fundamentação que lancei.
No mais, a resposta da Secretaria de Comunicação Social do CNJ informa que ‘nosso objetivo ao publicar conteúdos como o citado pelo senhor é dar visibilidade a marcos regulatórios de utilidade pública’, o que igualmente não estava em debate na minha solicitação. Eu não discuto, nem discuti, qual foi o intuito do CNJ ao publicar o que publicou no Facebook em 22/08/2018. A intenção do CNJ é completamente irrelevante. O que me preocupou foi o que efetivamente foi dito pelo CNJ, muito embora as intenções possam ter sido as melhores possíveis. E volto a dizer, para ficar bem claro: difundir no Facebook que ‘o achado não é roubado’ significa disseminar uma mensagem ilícita; significa dizer que juridicamente não há nenhum problema em não envidar esforços para devolver ao dono a coisa achada.
Ante o exposto, deixo registrada minha insatisfação com a resposta dada à solicitação 227559 pela Secretaria de Comunicação Social do CNJ, e informo que denunciarei ao Facebook o post de 22/08/2018 por disseminação de mensagem ilícita”.

A resposta da Secretaria de Comunicação Social do CNJ, tão ou mais insatisfatória que a anterior, pois escrita apenas por meio de termos protocolares e estandardizados que poderiam ser lançados em todas as reclamações já protocolizadas, veio em 2 de outubro, verbis:

“Prezado Pablo Bezerra,
Agradecemos mais uma vez pelo seu retorno e lamentamos pelo descontentamento causado”.

Mais do que a Secretaria de Comunicação Social do CNJ, quem mais lamenta sou eu pela manutenção de um post que significa adesão por um órgão do Poder Judiciário a um dito popular mentiroso e pelo tratamento evasivo dado à solicitação nº 227.559 e à reclamação nº 228.149.

O cidadão, quando faz uma solicitação a uma Ouvidoria, cuidando de apresentar a devida fundamentação, espera que o órgão deliberante não somente analise a fundamentação ofertada como também o que foi efetivamente pedido, deferindo-o ou indeferindo. E, no caso específico, nem uma coisa nem outra foi feita pela Secretaria de Comunicação Social do CNJ no âmbito da solicitação nº 227.559. E, no âmbito da reclamação nº 228.149, a resposta dada, por seu caráter genérico, equivale ao cidadão a resposta nenhuma.

Ora, a abertura de espaços destinados à participação dos cidadãos, como as Ouvidorias, não deve se dar de modo a cumprir apenas a uma formalidade. Tais canais só afirmam sua razão de existir quando tiverem o propósito não somente de receber, mas também de tratar, sem evasivas, detida e concretamente, sugestões, elogios, solicitações, reclamações e denúncias dos cidadãos.


[1] In Direito Civil Brasileiro. V. 5. 7 ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 252.
[2] In Curso de Direito Civil. 4 v. 3 ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 132.

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