Observatório Constitucional

30 anos da Constituição Federal: entre passado e futuro

Autor

  • Marcelo Casseb Continentino

    é doutor em Direito pela UnB/Università degli Studi di Firenze professor adjunto da Faculdade de Direito da Universidade de Pernambuco e do Programa de Pós-Graduação em Direito da Ufersa procurador do estado de Pernambuco advogado e sócio efetivo do Instituto Arqueológico Histórico e Geográfico Pernambucano (IAHGP).

13 de outubro de 2018, 8h00

Spacca
Marcelo Casseb [Spacca]Já falamos aqui anteriormente: 5 de outubro é motivo de comemoração. Comemoramos a vida dos filhos e da Constituição Federal de 1988. Motivos de alegria? Certamente sim, no primeiro caso; no segundo, o da Constituição, achamos que sim, mas é preciso refletir.

E por quê?

A travessia que caracteriza a história constitucional brasileira pós-88, para alguns, já seria coisa do passado, eis que após 2016, com o impeachment da presidente Dilma Rousseff, a Constituição de 1988 teria perdido sua vigência. Para outros, a Constituição sustenta-se ainda no presente, pois, embora tenha sido frontalmente vilipendiada e permaneça vigorando, já teria chegado a hora de editar-se uma nova Constituição, mediante a convocação de Assembleia Constituinte. Por fim, há aqueles que acreditam ser necessário insistir em seu futuro, pois a Constituição de 1988 reflete uma conquista democrática dos direitos fundamentais dos cidadãos à igual consideração e respeito.

A Constituição tem história. Não é uma simples palavra; nem a Constituição de 1988 uma simples lei.

No tempo, o conceito semântico de Constituição envolve a ideia mais elementar de limitação do poder político. E o poder político seduz. Tende ao arbítrio, Montesquieu já o disse ao referir-se à tentação antropológica do homem (“quem exerce o poder tender a abusar do poder”). A Constituição foi a grande invenção dos modernos, dos revolucionários apoiados na razão iluminista, para tentar conter os excessos do poder e, ao mesmo tempo, legitimar seu exercício.

Não à toa a Declaração dos Direitos de 1789, em França, tem validade e integra o “bloco de constitucionalidade” do direito francês.

Tão forte é a presença da Constituição na cultura jurídica ocidental, que hoje não se reconhece governo legítimo que não conte com uma Lei Fundamental para regê-lo e limitá-lo. Poderíamos assim dizer, na esteira do grande filósofo contemporâneo, Jürgen Habermas[1], que não existe democracia sem Constituição.

A necessidade histórica de legitimar regimes políticos, bem ou mal, chegou ao Brasil, sendo inclusive o então príncipe regente, Pedro de Alcântara, antes mesmo de declarar a independência do Brasil, aconselhado a convocar uma Constituinte para preservar a integridade política e territorial do Reino do Brasil.

A história seguiu, e sabemos o sucesso dos eventos. Independência, convocação da Constituinte de 1823, dissolução da Constituinte e outorga da Constituição de 1824, que, após um período de intensa contestação (Frei Caneca e Pernambuco são testemunhas) e instabilidade política, vigorou por décadas, pelo tempo da Monarquia. Sobreveio para o povo a República, e, com ela em 1891, a nova Constituição, elaborada por uma comissão de notáveis e declaradamente embebida em valores e conceitos tão altamente anunciados à época, como progresso, desenvolvimento, civilização, liberdade, cidadania etc.

A história também mostrou as fragilidades de que essa Constituição padeceu e, de certa forma, como foi instrumentalizada pelas elites econômicas/políticas. A primeira Constituição, destarte, republicana mostrou-se pouco republicana aos brasileiros, bem servindo aos propósitos das elites econômicas e políticas do país.

Nova revolução se seguiu, a de 1930. O remédio tardio, vindo por pressão social e política, foi a breve mas promissora Constituição de 1934, que, antes de completar seu terceiro aniversário de vida, saiu de cena para dar lugar à Carta de 1937, escrita por Francisco Campos, forjada à luz dos “novos tempos” que demandavam um Estado forte e eficiente. O Estado Novo, respaldado na “Constituição” de 1937, iniciou obscuro ciclo de autoritarismo e centralização do poder político, cujo fim seria simbolicamente marcado pela redemocratização com a Constituição de 1946.

Marcada por intensas convulsões sociais e econômicas, além de permanente instabilidade política, com o suicídio de um presidente, deposições presidenciais e mudanças de regime de governo (parlamentarismo e presidencialismo), a redemocratização buscada pela Constituição de 1946, na prática, não teve vida longa. A Constituição esteve a reboque dos ventos da política. Daí, Paulo Bonavides[2] haver acentuado que “as comoções políticas de raiz social fizeram-na desembocar, por obra da corrupção do regime presidencial”.

Curvou-se a Constituição de 1946 à força do Ato Institucional 1, de 9 de abril de 1964, que cristalizou o golpe civil-militar, iniciando novo ciclo de autoritarismo político no país.

Sob a justificativa de eliminar os dispositivos obsoletos, de amoldar as instituições constitucionais aos fatores reais do poder e de consolidar a democracia, impôs-se nova Constituição, cujo projeto foi submetido ao Congresso, que mal teve a chance de apreciar e aprová-lo, dada a exiguidade do prazo (de 12 de dezembro a 24 de janeiro de 1967) previsto no Ato Institucional 4, de 1966. A Constituição de 1967 revestiu-se das características próprias do regime político autoritário subjacente, sendo suficiente recordar a supressão do voto direto para eleição do presidente da república, que atingiu um pilar fundamental da democracia. Pouco tempo depois, foi substancialmente modificada pela Emenda Constitucional 1, de 1969, que manteve com mais rigor ainda o estreitamento do exercício do poder político e dos direitos dos cidadãos.

1985 representa o marco histórico do início do regresso à democracia, cujos primeiros passos para a “abertura lenta, gradual e segura” foram dados com o Presidente Ernesto Geisel, embora retrocessos tenham dificultado a caminhada, a exemplo da edição do “Pacote de Abril”. Assumindo a Presidência da República em 1979, o general João Batista Figueiredo deu continuidade ao processo de distensionamento rumo à democracia.

Mesmo com a derrota da emenda Dante Oliveira, em 1984, que buscava restaurar integralmente o direito ao voto da população, realizaram-se eleições presidenciais. Elegeu-se indiretamente o presidenciável Tancredo Neves, mas foi empossado José Sarney.

A retomada da democracia constitucional, por sua vez, passava pela ruptura político-jurídica com o regime autoritário iniciado em 1964 e com a vigente Constituição de 1967/69, o que significava a adoção de uma nova Constituição, a ser elaborada por uma Assembleia Nacional Constituinte, não obstante opiniões dissidentes. O percurso da Constituinte estava trilhado: a questão não seria mais se deveria haver ou não haver a convocação de Constituinte Nacional para nova Constituição, mas sim “como” convocá-la, compô-la e organizá-la.

José Sarney honrou o compromisso firmado pelo presidente eleito, Tancredo Neves. Pelo Decreto 91.450, de 18 de julho de 1985, instituiu a “Comissão Provisória de Estudos Constitucionais” (conhecida como “Comissão Arinos”), presidida por Afonso Arinos de Melo Franco e composta por intelectuais dos mais diversos campos (por exemplo: o sociólogo Gilberto Freyre, o escritor Jorge Amado, o economista Celso Furtado, o jurista Miguel Reale e os constitucionalistas Pinto Ferreira e Raul Machado Horta), responsável pela elaboração de um Anteprojeto de Constituição, que serviria de base para a Constituinte. Pelo encaminhamento da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 43, de 1985, convertida na Emenda Constitucional 26, de 1985, convocou a Assembleia Nacional Constituinte para reunir-se a partir de 1º de fevereiro de 1987. Em 15 de novembro de 1986, vieram as eleições para a Constituinte.

Finalizado o anteprojeto e formalmente encaminhado ao Presidente da República em setembro de 1986, notória a insatisfação do governo com o teor da proposta, em particular pela previsão do regime parlamentar e do (curto) prazo para mandato presidencial de quatro anos. A Constituinte, por seu turno, iniciou seus trabalhos “do zero”, adotando após intensa disputa interna uma metodologia de trabalho descentralizada, com comissões e subcomissões temáticas responsáveis pela elaboração dos títulos e capítulos da futura Constituição, além das propostas e sugestões enviadas pela população em geral.

É de ressaltar-se, na Constituinte de 1987-88, a intensa participação do povo. A sociedade civil teve presença efetiva. Mulheres, índios, trabalhadores, quilombolas, dentre tantos outros grupos de interesses das mais diversas classes sociais acompanharam, participaram, influenciaram e pressionaram os constituintes. O professor Gilmar Ferreira Mendes[3] costuma lembrar conversa do então constituinte, ex-senador Marco Maciel, com taxista durante a fase final da Constituinte:

“Dizia o Senador Marco Maciel que, já no momento final do processo constituinte, teve que sair do Congresso Nacional para ir até o Ministério da Justiça; e, diante do retardo do seu motorista, tomou um táxi. E o taxista, então, procurou entabular com ele uma conversa que envolvia uma análise do processo constituinte. E disse, então, o taxista ao Senador:

— Senador, esta Constituição – cujo processo de deliberação já estava na sua fase final -, está toda errada.

E o Senador quis saber por quê. E o taxista disse algo mais ou menos assim:

— Esta Constituição está tratando de todo mundo, do índio, do garimpeiro e do seringueiro, mas ainda não tratou do taxista.”

O sentimento de injustiça do taxista, em verdade, revela-nos um dos muitos indícios existentes de como a participação da população na elaboração do texto constitucional foi intensa e determinante para o resultado final do Texto da Constituição de 1988, sendo lugar comum hoje dizer que a de 1988 foi a mais democrática das Constituições promulgadas no Brasil. Afora o sofisticado sistema de garantias constitucionais e o amplo leque de direitos fundamentais, que, como ela própria reconhece em seu artigo 5º, § 2º, não esgota outros direitos implícitos no sistema constitucional ou recepcionados por força de tratados internacionais.

Esse é um aprendizado histórico que tivemos e, talvez, somente 1988 tenha podido nos ter legado: a democracia constitucional. Nossa jornada até a Constituição de 1988 foi longa e tortuosa.

Não obstante, presidentes brasileiros, desde Fernando Henrique Cardoso[4] até o atual, defenderam seja a convocação de uma “mini Constituinte” para reforma substancial da Constituição de 1988, seja a convocação de uma Assembleia Constituinte originária para uma nova Constituição. Mesmo hoje, os atuais candidatos à Presidência da República, embora tenham relativizado as propostas e/ou declarações, sustentaram a convocação de Constituinte para nova Constituição.

Esse breve exercício histórico conduz-nos a um diagnóstico e uma conclusão.

Por sobre a superfície da aparente positividade dos textos legais ao longo da nossa história, o Brasil foi marcado pela existência de diversas Constituições. Mas, nas camadas subterrâneas, nas estruturas do pensamento e da ação política e jurídica, parece haver uma história constitucional distinta. É que, em cada novo governo, a cada ruptura política que se seguiu, conflagrou-se a luta em torno da apropriação e da ressignificação semântica da Constituição em prol de projetos dos novos grupos políticos hegemônicos nem sempre republicanos e democráticos, de modo que, até hoje, a Constituição ainda não logrou verdadeiramente plena força normativa, o que seria próprio de sua história semântica.

É como se houvesse algo de constitucional faltando em nossa experiência jurídica. Mas, o que seria essa ausência? Qual a razão possível a explicar tantas Constituições em curto espaço de tempo?

A nosso ver, tem a ver com a “ética constitucional”, isto é, com a nossa atitude em torno da aplicabilidade da Constituição voltada à realização do interesse geral da sociedade. Nos últimos 200 anos, as Constituições no Brasil foram surpreendidas com tentativas de serem conformadas à força da política e das necessidades governamentais do momento. Contudo, a Constituição deve precisamente ser o esteio normativo de racionalidade a restringir a vontade política nas horas mais sensíveis e de maior dificuldade, quando a “crise” quer forçar decisões extremadas.

A história da Constituição de 1988 mostrou-nos a travessia e superação de desafios delicados, nem sempre devidamente neutralizados. O Supremo Tribunal Federal tem sua parcela de responsabilidade nessa fragmentação da ética constitucional, já que, não raro, tem ampliado a insegurança jurídica com decisões contraditórias e dissensos internos.

Celebrar os 30 anos da Constituição de 1988 importa, pois, defender um percurso constitucional mais que secular, o qual nos trouxe até aqui. Mas, também, é uma atitude voltada para o futuro.

Se a Constituição como norma jurídica nos possibilita um diálogo em cuja dimensão temporal passado, presente e futuro perdem seus contornos, uma conclusão é certa: o futuro da Constituição de 1988 depende visceralmente da consolidação de uma ética constitucional, isto é, do firme compromisso de todos os atores políticos e dos cidadãos com o cumprimento de suas regras e princípios em prol do interesse de toda a sociedade. Do contrário, estaremos arriscados a sofrer o fracasso constitucional, tão bem destacado por Nelson Saldanha[5] quando denunciou a tentativa de abuso constitucional pelo então imperador do Brasil, dom Pedro I: “aquele Guilherme de Orange às avessas pretendia adequar a ele o nosso Bill”.

E, se assim for, isto é, se nossos governantes e agentes públicos insistirem na ideia de moldar a Constituição a seus interesses governamentais, vinculando-se apenas formalmente a seu texto, o futuro do Brasil certamente estará em xeque, como já cantou o poeta ao perguntar-se “Que país é este?”: “Ninguém respeita a Constituição, mas todos acreditam no futuro da nação”.

A democracia constitucional no Brasil, portanto, depende da longa vida da Constituição de 1988.


[1] HABERMAS, Jürgen. Facticidad y validez. Sobre el derecho y el estado democrático derecho en términos de teoría del discurso. 3. ed. Trad. Manuel Jimenez Redondo. Madrid: Trotta, 2001, p. 61. Na verdade, Habermas afirma que “não há Estado de Direito sem democracia”, mas a noção de “Estado de Direito” (Rule of Law) de que parte pressupõe uma Constituição.

[2] BONAVIDES, Paulo. A evolução constitucional do Brasil. Estudos Avançados: v. 14, n. 40, 2000, p. 155-176, p. 174.

[3] Vide discurso proferido por ocasião da realização da solenidade dos 20 anos da Constituição: (http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=91856&sigServico=noticiaArtigoDiscurso&caixaBusca=N).

[4] Dentre outras, vide: PEC 447, de 2005, PEC 157, de 2003, e a PEC 554, de 1997. Todas têm comum os inconvenientes e a ingovernabilidade que a Constituição de 1988 teria acarretado.

[5] SALDANHA, Nelson Nogueira. História das idéias políticas no Brasil. Brasilia, Senado Federal, 2001, p. 105.

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    é procurador do estado de Pernambuco, professor da Faculdade de Direito da Universidade de Pernambuco (UPE) e doutor em Direito, Estado e Constituição pela Universidade de Brasília (UnB)/Università degli Studi di Firenze.

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