Diário de Classe

Entre a relativização da história e a relativização da Constituição

Autores

  • Danilo Pereira Lima

    é professor do curso de Direito do Centro Universitário Claretiano de Batatais (Ceuclar) doutor — com bolsa financiada pela Capes/Proex — e mestre — com bolsa financiada pelo CNPq — em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) e membro do grupo de pesquisa Hermenêutica Jurídica vinculado ao CNPq e do grupo Dasein — Núcleo de Estudos Hermenêuticos.

  • Isadora Ferreira Neves

    é doutoranda em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) como bolsista Capes/Proex e membro do Dasein – Núcleo de Estudos Hermenêuticos.

13 de outubro de 2018, 8h00

Ensinar direito constitucional no Brasil sempre foi uma tarefa muito árdua. É difícil explicar para os alunos a importância de uma Constituição, quando sua força normativa, tanto na limitação do exercício do poder, quanto na proteção das liberdades fundamentais, deixa de ser encarada com a devida seriedade por ministros do Supremo Tribunal Federal.

Numa Corte Constitucional, que em tese seria responsável por desempenhar o papel de guardião da Constituição, mas que na prática acabou por relativizar a presunção de inocência, não surpreende que o seu presidente, ministro Dias Toffoli, também contribua para a relativização da história constitucional do Brasil. Em evento sobre os 30 anos da Constituição de 1988, realizado pela Faculdade de Direito da USP, Toffoli preferiu redefinir o golpe civil-militar de 1964, designando-o agora como “movimento de 1964”. Faltou complementar que este movimento rasgou a Constituição de 1946, destituiu um presidente da República, cassou mandatos de parlamentares, desrespeitou a autonomia funcional do Judiciário, censurou a imprensa, prendeu, torturou, assassinou, desapareceu com os restos mortais de adversários políticos e restringiu direitos fundamentais, como no caso da suspensão do habeas corpus para crimes regidos pela Lei de Segurança Nacional.

É importante ressaltar que Toffoli não foi o único ministro a relativizar o declínio da Constituição de 1946. A respeito do golpe civil-militar de 1964, o ministro Marco Aurélio, em entrevista concedida em 2012 ao jornalista Kennedy Alencar, chegou a afirmar que o golpe havia sido um mal necessário diante dos riscos políticos que se avizinhavam[1]. Ou seja, de acordo com Marco Aurélio, diante de uma “ameaça” vermelha contra a ordem constitucional — que, por sinal, nunca se confirmou historicamente —, até um golpe de Estado e a instauração de uma ditadura militar por 21 anos tem a sua utilidade. Nesse aspecto, percebe-se que a declaração de Toffoli não é um ponto fora da curva dentro do STF. Na verdade, existe coerência na fala dos dois ministros. Numa Corte Constitucional onde se permite até mesmo obstaculizar o exercício de direitos fundamentais previstos na Constituição de 1988, não devemos ficar surpresos com a relativização da história a respeito do rompimento com a Constituição de 1946.

As posições dos ministros Toffoli e Marco Aurélio não são diferentes da posição adotada pelo ministro Álvaro Ribeiro da Costa em 1964, quando este era presidente do STF. No momento da destituição do presidente João Goulart, o ministro Ribeiro da Costa se fez presente na cerimônia de posse do presidente interino, o deputado Ranieri Mazzili. O presidente João Goulart ainda estava em território nacional quando a presidência da República foi declarada vaga pelo senador Auro de Moura Andrade. Mesmo assim, em clara discordância com a Constituição de 1946, o ministro Ribeiro da Costa prestou reconhecimento ao golpe de Estado. Em declaração feita à imprensa poucos dias após o golpe, Ribeiro da Costa afirmou que, “o desafio feito à democracia foi respondido vigorosamente. Sua recuperação tornou-se legítima através do movimento realizado pelas Forças Armadas, já estando restabelecido o poder de governo pela forma constitucional” [2].

Durante a ditadura militar, o Direito foi a área de formação que mais cedeu quadros para a composição dos ministérios nos governos militares. Dos 85 ministros da ditadura, 30 tinham formação em Direito, 26 em Engenharia, 7 em Medicina, 6 em Economia e 16 eram militares [3]. Essa participação foi fundamental para a construção da nova ordem política, já que o pacto constitucional de 1946 tinha sido rompido pelo golpe civil-militar e a ditadura militar precisava se institucionalizar. Perante a consumação deste ato, os juristas da ditadura assumiram a tarefa de organizar uma racionalidade jurídica destituída dos princípios que orientavam o funcionamento do Estado de Direito, como a limitação do poder e a proteção das liberdades civis, políticas e sociais. No lugar de uma Constituição comprometida com o constitucionalismo, os juristas da ditadura ajudaram a implantar uma engenharia constitucional fundamentada na doutrina de segurança nacional.

Outro importante segmento jurídico que não só apoiou o golpe de 1964, como também ajudou a sustentar a ditadura militar, foi a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). Além do entusiasmo com que o golpe foi recebido pelo seu presidente, o advogado Povina Cavalcanti, boa parte dos seus ex-presidentes também assumiu cargos relevantes durante os 21 anos de ditadura militar. O então presidente Povina Cavalcanti rapidamente passou a integrar a Comissão Geral de Investigações (CGI), órgão responsável por acompanhar a depuração do Estado contra possíveis opositores do regime. Levi Carneiro, presidente do Conselho Federal entre os anos de 1933 e 1938, integrou a comissão de juristas responsável por elaborar o anteprojeto da Constituição de 1967 durante o governo Castello Branco. Haroldo Valladão, presidente do Conselho Federal entre os anos de 1950 e 1952, ocupou o cargo de procurador-geral da República durante o governo Costa e Silva. Nehemias Gueiros, presidente do Conselho Federal entre os anos de 1956 e 1958, foi responsável pela redação do Ato Institucional nº 2 durante o governo Castello Branco. Alcino de Paula Salazar, presidente do Conselho Federal durante os anos de 1958 e 1960, ocupou o cargo de procurador-geral da República durante o governo Castello Branco. José Eduardo Prado Kelly, presidente do Conselho Federal durante os anos de 1960 e 1962, foi indicado ministro do STF pelo marechal Castello Branco após o Ato Institucional nº 2. Caio Mário da Silva Pereira, presidente do Conselho Federal entre os anos de 1975 e 1977, atuou no governo Castello Branco como chefe de gabinete de dois ministros.

Diante desses fatos, percebemos que Toffoli presta um enorme desserviço à nação ao tratar um golpe de Estado como um simples movimento. Essa relativização da história constitucional impacta negativamente sobre a democracia brasileira. Como é possível perceber, a mesma concepção jurídica instrumental — que um dia serviu para implodir a Constituição de 1946 e institucionalizar a ditadura militar —, continua fazendo-se presente nos dias atuais dentro do STF. É por esse motivo que começamos a coluna de hoje afirmando que ensinar direito constitucional no Brasil é uma tarefa muito árdua. Enquanto os bons livros de direito constitucional nos ensinam que, em países democráticos, todo poder encontra-se subordinado à Constituição; em terras brasileiras um ministro do STF nos ensina que o esfacelamento de uma Constituição democrática — como foi o caso da Constituição de 1946 — é um mero movimento. E assim, de movimento em movimento, vamos assistindo ao esfacelamento da Constituição de 1988 por meio de ações e omissões de agentes públicos que continuam a atuar sem qualquer senso de responsabilidade institucional.


[1] A entrevista foi concedida em 2012. Para ouvir o trecho em que o ministro se manifesta em relação à ditadura militar, ver: <https://www.youtube.com/watch?v=83tscv7ucCI>. Acesso em: 21 de set. 2015.

[2] Jornal do Brasil. STF vê o governo restaurado. Rio de Janeiro, 4 de abril de 1964.

[3] NAPOLITANO, Marcos. 1964: histórias do Regime Militar. São Paulo: Editora Contexto, pp. 72-73, 2014.

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    é professor de Ciência Política e Teoria Geral do Estado, doutor em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) e membro do Dasein – Núcleo de Estudos Hermenêuticos.

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    é doutoranda em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), como bolsista CAPES/PROEX. Membro do Dasein – Núcleo de Estudos Hermenêuticos.

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