Constituição 30 anos

"Devemos à Constituição o fato de não ter havido golpes de Estado nestes 30 anos"

Autor

12 de outubro de 2018, 9h14

Spacca
Não são poucos os que criticam a Constituição Federal. Chamada de detalhista, ela é acusada de ter sido feita “com os olhos no retrovisor” e ter feito promessas impossíveis de ser cumpridas por qualquer governo, não importa quão competente. O resultado foi que ela produziu crises de representatividade e de governabilidade.

Para o ex-senador pelo Amazonas Bernardo Cabral, no entanto, são críticas injustas. Relator da Assembleia Constituinte que elaborou a Constituição, o parlamentar credita à Constituição de 1988 o fato de não ter havido golpes de Estado desde que ela foi promulgada, há 30 anos. “As Cassandras que diziam que a Constituição não duraria seis meses devem estar se revirando no túmulo”, afirma, em entrevista à ConJur.

Alguns constituintes costumam lembrar de Cabral como o relator que trabalhou para as lideranças partidárias, e não para os constituintes. Mas ele lembra que, quando recebeu as propostas das comissões temáticas, o texto final reunia 2,5 mil artigos. E o texto constitucional foi aprovado com 245.

“Você pode imaginar a guerra que foi feita contra o relator e seus adjuntos para poder amputar o excesso que havia. Cada um que perdia a sua emenda era um adversário, porque achava que você estava lhe tirando a oportunidade de mostrar o trabalho para a sua aldeia”, ele se defende.

A principal crítica que o relator da Constituinte faz da Constituição é à medida provisória. Segundo ele, foi uma “sobra” da reviravolta que o então presidente José Sarney e o então presidente do Senado Humberto Lucena capitanearam: a Constituição, lembra Cabral, foi feita para um sistema parlamentar de governo, usada apenas para casos em que o presidente precisasse de soluções não previstas no seu plano original de governo. Num sistema presidencialista, o presidente passa a ter “um poder que ditador nenhum teve”, diz Cabral.

Mas ele garante: “A nossa Constituição, no capítulo dos direitos e garantias fundamentais, é a melhor constituição do mundo”.

Leia a entrevista:

ConJur — 30 anos depois, o que sobreviveu da Constituição?
Bernardo Cabral —
Ninguém esperava que a Constituição sobrevivesse com a dignidade que ela está sobrevivendo. As aves agourentas diziam que o Brasil com ela ficaria ingovernável, que ela não duraria seis meses e que era absolutamente impraticável. Essas críticas foram passando, sendo soterradas.

ConJur — Por que ela sobrevive dessa forma?
Bernardo Cabral —
As pessoas se esquecem disso, mas a Assembleia Constituinte foi o local que se deu para o reencontro daqueles que tinham sido afastados, exilados, cassados, punidos com a aposentadoria compulsória, presos. É claro que esse reencontro só poderia ser numa Assembleia Nacional Constituinte.

ConJur — Uma crítica comum à Constituição é que ela é muito detalhista e trata de muitos temas.
Bernardo Cabral —
Todas as assembleias constituintes anteriores tiveram um esboço previamente preparado para as constituições que desse esboço resultassem. Ou seja, foi absolutamente fácil que tivesse um desenrolar simplesmente 'correndo solto'. Quando era candidato, Tancredo havia se comprometido a convocar uma assembleia nacional constituinte, e para isso ele convocou uma comissão de notáveis, que era presidida pelo professor Afonso Arinos. O secretário-geral era o professor Ney Prado. Ao cabo de seus trabalhos, a comissão mandou o esboço para a Presidência da República, concluindo pelo parlamentarismo. Mas Tancredo morreu antes de tomar posse, e seu vice, Sarney, era presidencialista. Ele recebeu o trabalho, publicou no Diário Oficial e mandou arquivar. Portanto, Ulysses quando começou os trabalhos, realmente não tinha nada pronto. Essa Constituição começou do nada, foi tijolo sobre tijolo.

ConJur — Mas ela tem coisas que não deveriam estar lá?
Bernardo Cabral —
Tem, tem muita matéria que é infraconstitucional, como a licença maternidade, remanejamento de verbas, coisas que poderiam ser tratadas por decreto. Mas é preciso relembrar quem construiu, quem ajudou a compor e quem escreveu a Constituição. As pessoas que estavam lá tinham receio de que se pudesse voltar à situação de 1964, e cada um queria pôr a sua marca E havia uma dicotomia no mundo. Quem poderia imaginar que dois anos depois da promulgação da Constituição o Muro de Berlim cairia? O regime comunista dominava o leste inteiro e ninguém poderia prever o que aconteceu. Se tudo isso tivesse acontecido antes da Constituição, talvez ela tivesse outra formatação.

ConJur — E a Constituição é de fato muito longa?
Bernardo Cabral —
 É, mas a portuguesa também é, a espanhola é, várias são. As pessoas se fixam nisso por causa da Constituição dos Estados Unidos, que tem 200 anos e 16 artigos. Mas se esquecem dos cinco volumes de decisões da Suprema Corte. Lá, a Suprema Corte legisla em Direito Constitucional. Aqui, o Supremo é o guardião da interpretação constitucional — já está saindo de seu caminho diante da omissão do Congresso, mas não quero entrar nesse assunto. Reclamam que a Constituição Federal tem mais de 200 artigos, mas quando terminaram os trabalhos das comissões temáticas e suas subcomissões, o trabalho que foi para o relator e seus adjuntos tinha 2,5 mil artigos. E ainda assim posso lhe garantir: a nossa Constituição, no capítulo dos direitos e garantias fundamentais, é a melhor constituição do mundo.

ConJur — Mesmo assim, há quase 100 emendas.
Bernardo Cabral — 
A Constituição precisa de algumas alterações, mas o que posso dizer como relator é que nesses 30 anos nenhuma das emendas foi feita em benefício da população ou de uma maioria jurídica, mas sim a reboque de interesses meramente circunstanciais. E não se faz uma constituição para que a toda hora ela seja remendada.

ConJur — O que acha da ideia de nova constituinte, que tem ganhado importância nos últimos anos?
Bernardo Cabral —
 Ela tem que ser alterada, mas não como se diz por aí, por meio de uma miniconstituinte ou de uma nova assembleia constituinte. Só se convoca uma assembleia constituinte quando há uma ruptura da ordem constitucional. Para mim o discurso mais bonito que Ulysses fez foi em julho de 1988, diante dos boatos de que a Constituinte seria fechada pelos militares. Ele foi à Tribuna e falou 'a Constituição terá cheiro de amanhã, não cheiro de mofo'.

ConJur — Nesses 30 anos, o que acha que deveria ter sido diferente?
Bernardo Cabral —
 Tenho uma profunda tristeza de que tenham derrubado o sistema parlamentarista, que saiu pronto da Comissão de Sistematização. Outro dia o José Fogaça me lembrou disso: um dia durante os trabalhos da Constituinte encontrei o Humberto Lucena, que era presidente do Senado e havia comandado a vitória do presidencialismo. Falei pra ele 'vai lá correndo e diz ao seu pessoal que tire imediatamente a medida provisória do texto constitucional, porque ela só convive com regimes parlamentaristas de governo. Se vocês deixarem a medida provisória lá, o que vai acontecer é que vão dar ao presidente poderes que ditador nenhum jamais teve'. Num regime parlamentarista, o presidente vai ao Congresso e apresenta seu plano de governo. Se for aprovado, muito bem. E se houver qualquer problema no meio do caminho, ele apresenta uma medida provisória. Tanto assim que o texto original previa que a MP deveria ser convolada, convertida em lei, em até 30 dias.

ConJur — Que balanço o senhor faz desses 30 anos?
Bernardo Cabral — 
As Cassandras que diziam que a Constituição não duraria seis meses devem estar se revirando no túmulo. O que precisamos sentir nesses 30 anos é que se deve à Constituição não ter havido nenhuma crise política de ordem que mantivesse ou propiciasse uma ditadura. Digo isso porque, quando Costa e Silva sofreu o AVC, quem assumiu não foi o vice-presidente, um dos homens mais sérios que este país já viu, Pedro Aleixo, professor de direito constitucional. Foram os ministros do Exército, da Marinha e da Aeronáutica, e o trio ficou até o final do mandato. Quando o senhor Collor foi apeado do poder, quem assumiu não foi uma junta, foi seu vice, Itamar Franco, que assumiu com a Constituição debaixo do braço. Quando a Dilma sofreu o impeachment, foi seu vice, Michel Temer, quem assumiu. Esta Constituição, com todos os seus defeitos, foi o que não permitiu que não houvesse um golpe de Estado.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!