Senso Incomum

Eleições: diálogo entre um professor e um estudante de Direito

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11 de outubro de 2018, 8h00

Spacca
Caricatura Lenio Luiz Streck (nova) [Spacca]Abstract: — Ô professor, será que não estamos indo longe demais? Não é meio perigoso? Por exemplo, eu sou filho de mãe solteira, estudo pelo Fies, fui criado por minha avó e sou mulato.

Nunca acreditei nessa história de que não há verdades. Gosto de news. Só news, sem fake. Por isso, não há qualquer razão para esconder: depois de domingo, é até difícil escrever essa coluna (como explicarei, já havia escrito outra).

De novo, a verdade: já sei que os mesmos comentaristas de sempre vão, de qualquer forma, atribuir a mim uma agenda política assumida a priori. Não importa o que eu diga. Nem surpreende: hoje, dizer algo como “tortura é ruim” é coisa de comunista-globalista-bolivariano-esquerdopata. Se eu disser “a terra é redonda”, alguém dirá: mentira. É plana.

Pois é. Em tempos em que se pode dizer qualquer coisa sobre qualquer coisa, onde x pode ser lido como y porque, bem, interpretar é um ato de vontade mesmo e não tem jeito… é isso que acontece. Nós ajudamos a criar esse monstro (embora, pelo que já escrevi, possa me incluir fora dessa!).

Estava sem assunto. Fiz uma coluna sobre O fator Julia Roberts e a Epistemologia dos Bolinhos de Chuva da Tia Lina (que pode ser acessada neste anexo, para não dizerem que é invenção minha). Explico: Viajando quarta pela manhã, com essa coluna (do Fator Julia Roberts) concluída, vou, lépido, tomar um café no hall da faculdade onde fui fazer um encontro de estudos. E assisto a um diálogo magnífico, algo como o opúsculo póstumo de Thomas Hobbes, A Dialogue Between a Philosopher and a Student of the Common Laws of England.

Aqueles que conhecem um pouco de teoria, vejam que um hermeneuta como eu pode fazer uso da analítica. Eis aqui o relato do que assisti. Descrevo (vejam, descrevo!), pois, um fato. Como observador externo (em linguagem analítica, é claro). Então, vamos à cena.

Próximo ao balcão onde me acotovelei, um aluno chega “no professor” e lhe dá uma tapinha nas costas (mostrando intimidade) e diz, provocativamente:

— E aí, Professor? Bolsonaro neles! Cansei desses comunas!

Eis que o professor (a quem conheço há alguns anos), para a surpresa do aluno, que via no reacionarismo a nova rebeldia, “embarca”:

— Pois você fez muito bem. Chega dessa esquerda. Tinha de ser ele já logo no primeiro turno! É ele quem fala a verdade. Os outros candidatos são todos esquerdistas também. Tinha-se que se dar resposta a essa vergonheira que foram as mulheres saindo às ruas com esse lema idiota “ele não”. Bem disse um procurador nas redes sociais: vadias incomíveis. E o filho do líder acertou na mosca: mulheres de direita são mais bonitas e higiênicas. Aliás, quem não sabe disso? Esse deputado é um gênio. Precisamos de gente assim. E digo mais: só o nosso candidato é que pode dar um jeito nesse país. Não vou nem esperar o resultado: já comecei por mim mesmo.

O aluno, meio surpreso ao ter a própria tese acolhida, perguntou, curioso:

— É mesmo, Professor? O que o senhor fez?

— Cada um tem de fazer sua parte. Eu comecei lá em casa: minha empregada já não mais vai levar 13º. Essa jabuticaba não tem o menor cabimento. Mourão já disse. E é bom que ela não reclame muito: esse país já tem direito trabalhista demais. E temos de acabar com a justiça do trabalho. Só julga a favor dessa gente. Esses pobres já estão incomodando há muito tempo. O empresário ou patrão faz favor dando o emprego e eles não entendem.

— Concordo! É isso mesmo, profi.

— Profi é o cacete. Senhor professor doutor. Já chega desse negócio de aluno pé-de-chinelo chegar por trás e dar tapinha nas costas do professor. Isso vai mudar. Respeito é bonito. E vai tirar esse boné de fanqueiro. Ah, e tem outra coisa: por falar em emprego, esse negócio de férias também é coisa de vagabundo. No campo principalmente. Chega de tantas férias. Isso é jabuticaba.

— Opa! Professor, acho que não é bem isso que ele falou…

— Claro que é! É só procurar. E ele está coberto de razão. Ô rapaz, esse país é uma Venezuela: onde já se viu policial tendo de dar explicação por ter atirado em alguém? Responder a processo por atirar em alguém? Finalmente tenho um candidato que fala a verdade. Enfim vou poder dizer aos alunos, nas aulas de direito penal, que excludente de ilicitude pressupõe autorização prévia para policial matar à vontade. E que não existe esse troço de progressão de regime. Vai pra jaula e deu. E não tem nada de melhorar as condições dos presídios. Isso é que nem coração de mãe: sempre cabe mais, já disse o líder.

— É, é verdade, o país está muito violento. Acho que, se for bandido, o policial pode atirar…

— É óbvio! Óbvio. E é bem fácil de perceber quem é quem. Se for filho de mãe solteira, já pode marcar: é desajustado. Se for meio pretinho-mulatinho então… o Mourão disse muitíssimo bem: o branqueamento da raça é importante. Aliás, você parece que não branqueou.

— Ô Professor, será que não estamos indo longe demais? Não é meio perigoso? Por exemplo, eu sou filho de mãe solteira, estudo pelo fies, fui criado por minha avó e sou mulato.

— Rapaz, ainda bem que você não é uma bichona. Ou estaria muito pior. Abra seu olho. E que conversinha tipo bichice de que “estamos indo longe demais”? Temos de cortar o mal pela raiz. A ordem tem de ser restaurada na marra. Ordem e Progresso. Certo estava o agora deputado eleito pelo PSL, que arrancou a placa de rua homenageando a tal de Marielle lá no Rio. Ficar endeusando uma feminazis. O povo elegeu o cara que quebrou a placa. A massa vibrou. Que cara corajoso. Vai virar ministro. Está em todas as redes. Portanto, não podemos ter essa frescura toda. Na época da ditadura, era muito melhor. Aliás, meu jovem, os militares já erraram ao não matarem mais. O candidato disse: o erro deles foi só torturar e não matar! Você não acha? E tem de acabar com o ECA. Rasgar.

— Pois é, Professor… olhando assim, dito desse jeito meio brusco, assim, não sei se matar é a saída…E esse negócio de o senhor falar em bichice é meio ruim. Meu melhor amigo é gay.

— Então ‘peraí’: parece que você está fraquejando. Você não concorda que o 13º é uma jabuticaba? Acha que a ditadura não devia ter matado esse pessoal da esquerda? Não acha que policial pode matar discricionariamente na rua? Não acha que o seu amigo gay é gay por falta de porrada que o pai dele não deu? Acha que mulher tem de ganhar igual a homem? Não acha que direitos humanos são só para humanos direitos? Não acha que tem de terminar com esse negócio de homem sair com homem e coisas de gênero? Não acha que o processo penal é garantista demais e, portanto, comunista? Hein? Então vai votar no nosso candidato por quê? Você não está suficientemente convicto. Desconfio que você é um agente infiltrado. Você é esquerdopata!

– Professor, mas… quer dizer… quero ser advogado. Tem que ter um pouco de direito de defesa.

– Ah ah. Quer advogar ou fazer concurso? Ou quer dirigir Uber? Uma boa notícia: não vai ter mais exame de ordem. O candidato já até tinha esse projeto antes. Alguns deputados se elegeram com essa bandeira. Exame de ordem… Sai prá lá.

— Bem… é… eu… queria passar na OAB e depois fazer concurso.

— Bom, já não precisa estudar para a prova da OAB. Isso vai acabar. Uma coisa a menos para você se preocupar. Quanto aos concursos, com as privatizações em massa, e o fim da outra jabuticaba que é a estabilidade no serviço público, acho que você tem de procurar a iniciativa privada. Ou o Posto Ipiranga. Dirigir Uber é uma saída. Ou trabalhar na indústria da arma. Isso vai bombar. Meu lema, que vou passar para a campanha, é: si vis pacem parabellum (vou traduzir para você que é burro: se queres a paz, arma-te para a guerra). OK? Também vai acabar essa palhaçada de concurso. Pelo menos os concursos que enchem a máquina pública. Os cursinhos também devem abrir o olho. Muitos e muitos professores de cursinho estão conosco. Só não sei por que, mas, enfim… Mas a nação brasileira fala mais forte. Os evangélicos estão com a gente. Deus está conosco. Vi vários pastores na TV dizendo isso. Outra coisa, meu rapaz: essa moleza de cotas vai acabar. Vamos acabar com isso logo. E tolerância zero. Novo Código Penal vem aí. Mais: como disse o deputado Alexandre Frota, vamos terminar com a vagabundagem: pena de morte perpétua. Morte perpétua. Entendeu? O primeiro projeto dele será esse. No RS há dois deputados do mesmo nível que assinarão juntos. Estamos juntos. Mais: vamos acabar com a justiça eleitoral. Meu deputado eleito já disse que vai propor isso. Corretíssimo. Urnas eletrônicas são fraude.

– Poxa, Professor, o senhor não estaria exagerando? Não é bem isso. Poxa, eu sou mulatinho e pretendia entrar pelas cotas no serviço público.

– Deixa disso, bacharelando. Cotas, cotas… Direitos humanos… Minorias… Índios… Vai me fazer rir ou chorar?

E saiu bufando, não sem antes se virar para mim e dar uma piscadela.

De minha parte, não resisti e, engolindo o restinho do café expresso, fui até o aluno e perguntei, como quem não quer nada:

— E aí? E as eleições?

Deixo para o leitor adivinhar qual foi o desfecho:

#1: —Tá me achando com cara de comunista?!

#2: — Putz… pois é… esse professor me contou um monte de mentiras. Tudo fake news.

#3:— Me lasquei!

Paguei o café e sai caminhando, como um flaneur, uma pessoa que anda pelo lugar para interpretá-lo.

Nota: por telefone, o professor me ajudou, depois, a reconstruir o diálogo, é claro. Todo o conteúdo está baseado em fatos (isto é, frases e discursos proferidos por pessoas públicas). Além do mais, todas as frases e ideias reproduzidas pelo professor podem ser encontrados em jornais e internet. Nenhuma delas — reproduzidas pelo professor — é fake news. As frases não ditas (ainda) por candidatos são: si vis pacem parabellum (assim, explicitamente) e… acho que é só essa, mesmo. A do fim do exame da OAB é um projeto de lei antigo que tramita na Câmara. Portanto, o professor nada inventou.

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