Contas à Vista

Alheio às eleições, orçamento de castas ordena prioridades e insolvências

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9 de outubro de 2018, 8h10

Spacca
As eleições do último domingo merecem um bom tempo de reflexão. Talvez porque ali a população tenha – direta ou indiretamente – opinado também sobre os rumos do nosso pacto constitucional civilizatório.

O apreço à democracia formalmente parece elevado[1], mas nossa trintenária Constituição sofre questionamentos de vários espectros políticos[2]. Infelizmente nunca foi tão forte a tese de que seria necessária nova Constituinte ou uma “lipoaspiração”[3], com a desconstitucionalização das finanças públicas[4] – dentre outras matérias –, para assegurar sua sobrevivência.

Aqui há uma contradição paradoxal em nosso horizonte de debates para o 2º turno das eleições presidenciais, a se realizar no próximo dia 28. Isso porque democracia substantiva pressupõe constitucionalismo enraizado e vice-versa. Não há como caminhar democraticamente rumo às expectativas de vida justa e minimamente equilibrada em 2019, sem o nosso mais longevo e melhor pacto constitucional que ousamos construir em um amplo e plural esforço de diálogo social.

Flerta com soluções autoritárias quem rompe com as regras do jogo democrático inscritas em nosso pacto, repito, civilizatório. Urge dizer com ainda maior clareza e senso de responsabilidade histórica: nova Constituinte é ruptura democrática.

O que está por trás desse impasse é algo profundamente mais sutil e estrutural e implica três questões: quem paga a conta dos direitos que socialmente contratamos em condições de igual dignidade para todos os cidadãos brasileiros? Qual é a razão de ser do estado brasileiro, sobretudo em face das suas complexas inter-relações com a sociedade e o mercado? Qual é o nível de desigualdade real que suportamos em prol da livre iniciativa do mercado e livre organização da vida em sociedade, para que o pressuposto formal da igualdade de direitos não seja hipocrisia retórica?

Para responder a tais perguntas é preciso reconhecer, no âmbito das finanças públicas, que há sempre disputas entre maior ou menor endividamento público, maior ou menor tributação, maior ou menor leque de serviços públicos, maior ou menor financiamento inflacionário… Trata-se de sopesar equitativamente a equação sobre os meios disponíveis para assegurar universalidade, modicidade de custeio[5] (ou, por vezes, gratuidade) e continuidade de políticas públicas que operacionalizam nosso rol pactuado de direitos fundamentais.

O desafio é administrar os diversos conflitos distributivos entre perdedores e ganhadores em tempos de evidenciada escassez e de maior clareza sobre a desigualdade não só no Brasil, como no mundo, sobretudo, após a crise de 2008.

Wolfgang Streeck[6] leciona, a esse respeito, com lucidez rara:

“[…] enquanto se puder confiar na capacidade de os Estados pagarem aos seus credores, o financiamento parcial permanente da atividade dos Estados através do endividamento é mesmo do interesse dos proprietários dos recursos monetários. O triunfo dos vencedores na luta pela distribuição no mercado e na luta com a repartição de Finanças só será total quando puderem investir de forma segura e lucrativa o capital que ganharam ao Estado e à sociedade. Por isso, eles têm interesse num Estado que não só deixe o seu dinheiro na sua posse [mediante redução geral da carga tributária ou por meio de renúncias fiscais], mas também o absorva, depois, na forma de crédito, que o guarde de forma segura, que, ainda por cima, lhes pague juros pelo dinheiro emprestado (em vez de confiscado [pela via tributária]), e que, por fim, lhes proporcione a possibilidade de transferir este dinheiro para a próxima geração da sua família – pagando um imposto sucessório que há muito se tornou insignificante. Deste modo, o Estado, enquanto Estado endividado, contribui significativamente para a perpetuação da estratificação social e da desigualdade social daí decorrente, ao mesmo tempo que se submete, bem como à sua atividade, ao controle por parte dos seus credores, que aparecem sob a forma de “mercados”. Este controle associa-se ao controle democrático por parte dos cidadãos, podendo sobrepor-se a este ou até mesmo – como se anuncia atualmente, na transição do Estado endividado para o Estado de consolidação [tal como feito na Emenda 95/2016] – eliminá-lo progressivamente.”

Em nosso país, as escolhas centrais sobre (1) “quem paga a conta?”, (2) “qual a razão de ser do Estado?” e (3) “qual nível de desigualdade é admitido?” não foram especificamente submetidas ao crivo de todos os cidadãos nas eleições do último final de semana. Digo isso porque não fomos claramente perguntados sobre qual é a ordenação de prioridades do Estado brasileiro, o que, por sinal, é o eixo que deveria definir a própria essência e a sobrevivência do nosso pacto constitucional civilizatório.

É verdade que muito temos debatido em nossa sociedade sobre liberalismo econômico para fomentar individualmente a majoração da produtividade e o foco “meritocrático” no empreendedorismo, mas não é possível haver competição justa por oportunidades de chegada, sem igualdade efetiva nas condições de partida.

Desigualdades não só existem, como são ampliadas no nosso ciclo orçamentário estatal. Ouso provocar aqui que há no Brasil um verdadeiro orçamento de castas que bem instrumentaliza o que Wolfgang Streeck chamara de “Direito das Insolvências” no âmbito das finanças públicas. Ou seja, vemos, em nossa realidade fiscal, uma sistêmica ordenação de prioridades alocativas alheia ao processo democrático-deliberativo das eleições e ao nosso ordenamento (uma Constituição dirigente invertida[7]?), que admite e justifica a ausência de quaisquer limites para as dívidas consolidada e mobiliária da União (cuja impugnação de inconstitucionalidade por omissão[8] na falta de regulamentação é premente), bem como escolhe não fixar quaisquer freios consistentes na Emenda 95/2016 para as renúncias fiscais[9]. Tampouco podemos nos olvidar das desequilibradas interfaces entre política fiscal e políticas monetária, creditícia e cambial, decorrente da relação intertemporalmente incestuosa e pouco transparente entre Banco Central e Tesouro Nacional[10].

Streeck[11], mais uma vez, merece ser aqui invocado diante do frágil debate eleitoral brasileiro, que indica severo risco de recessão democrática e revisionismo histórico contra nosso pacto constitucional:

“O objetivo principal dos credores dos Estados no conflito com os seus cidadãos tem de consiste em garantir que, em caso de crise, é dada prioridade aos seus direitos sobre os direitos do povo do Estado – prioridade do serviço da dívida em relação à prestação de serviços de interesse geral. A melhor maneira de o conseguir consiste na criação de instrumentos – de preferência, consagrados na constituição –, como o “travão ao endividamento” [equivalente no Brasil ao teto global de despesas primárias da Emenda 95/2016], que restringem a soberania dos eleitores e dos futuros governos no que diz respeito às finanças públicas. A criação de instrumentos deste tipo pode ser forçada através de prêmios de risco de obrigações mais elevados, ou premiada, baixando estes prêmios de risco. Em princípio, está em causa um problema central do direito das insolvências, projetado para a política financeira estatal: que direitos têm prioridade em caso de falência?”

Precisamos, mais do que nunca, falar sobre ordenação de prioridades alocativas nas relações entre Estado, sociedade e mercado, para que nossa democracia e nosso pacto constitucional sobrevivam aos riscos de captura e autodestruição. Há de haver evidenciação e processamento legítimo das escolhas trágicas, sobre quem ganha e perde, a que custo e diante de qual ordem temporal de priorização, sob pena de fragmentação social profunda.

A crise econômica e política pela qual temos passado e, sobretudo, o nosso silêncio paralisante diante do discurso revisionista contra a Constituição de 1988 e contra o custeio dos direitos fundamentais me faz lembrar o debate da Ciência Política[12] sobre o como as classes médias são determinantes para o sucesso ou não de economias perfilhadas ao modelo de Welfare State:

“Em geral acredita-se que reações violentas ao welfare state e revoltas anti-taxação são detonadas quando os gastos sociais tornam-se grandes demais. Paradoxalmente, o oposto é que é verdade. Os sentimentos contrários ao welfare state durante a última década em geral foram mais fracos quando as despesas foram as maiores, e vice-versa. Por quê?

Os perigos de reações violentas contra o welfare state não dependem dos gastos, mas do caráter de classe dos welfare states. Aqueles de classe média, sejam eles social-democratas (como na Escandinávia) ou corporativistas (como na Alemanha), forjam lealdades por parte da classe média. Os welfare states residuais, liberais, como os Estados Unidos, Canadá e, cada vez mais, a Grã-Bretanha, dependem da lealdade de uma camada social numericamente pequena e muitas vezes politicamente residual. Neste sentido, as coalizões de classe em que se baseiam os três tipos de regime do welfare state não explicam apenas a sua evolução passada, mas também suas perspectivas futuras.”

No excerto acima lemos que, em todo o mundo, o que está em discussão não é o volume alto dos nossos gastos sociais, mas sim o nível da nossa sensação isonômica e leal de pertencimento a uma sociedade socialmente mais justa, aqui simplesmente chamada de pacto constitucional civilizatório (ou mesmo Welfare State). A grosso modo, é no caldo cultural das classes médias, historicamente consolidadas em seus laços de fraternidade ou fragmentação, que se extrai a fronteira entre o que é direito universal de cidadania e o que é mercadoria consumida em caráter excludente no mercado.

Nestas eleições, somos chamados não só ao exercício da democracia, mas primordialmente somos conclamados a defender o regime constitucional de 88 em prol da primazia de custeio dos direitos fundamentais, sem prejuízo do necessário e concomitante esforço de contenção da corrupção e dos manejos patrimonialistas do orçamento público.

Na dúvida entre, de um lado, manter os pisos para saúde e educação, bem como o orçamento da seguridade social, com suas receitas vinculadas e, do outro, manter o orçamento de castas que se nega historicamente a impor filtros mínimos de controle às despesas financeiras e aos gastos tributários, eu pessoalmente opto pela defesa inconteste das prioridades constitucionais fixadas por nossa Constituição Cidadã há três décadas.


[5] Interessante é o caso recente de decisão judicial que determinou o afastamento da exclusividade na comercialização de medicamento destinado ao tratamento da hepatite C, cujo custo para o Sistema Único de Saúde alcançaria mais de R$1 bilhão, caso não houvesse tal decisão judicial contra o registro da patente pelo INPI (https://g1.globo.com/ciencia-e-saude/noticia/2018/09/24/justica-do-distrito-federal-anula-patente-de-remedio-contra-hepatite-c-no-pais.ghtml)

[6] STREECK, Wolfgang. Tempo Comprado: a crise adiada do capitalismo democrático. Coimbra: Actual, 2013, p. 126-127.

[7] Tal como suscitado por Bercovici, Gilberto e Massonetto, Fernando. A Constituição dirigente invertida: a blindagem da Constituição financeira e a agonia da Constituição econômica. Boletim de Ciências Econômicas XLIX, p. 2/23, Coimbra: Universidade de Coimbra, 2006.

[8] Como debatemos José Roberto Afonso, Lais Khaled Porto e eu em artigo publicado nesta coluna Contas à Vista, que se encontra disponível em https://www.conjur.com.br/2017-dez-05/contas-vista-inconstitucional-omissao-limitar-divida-publica-federal

[10] Notadamente na interface entre as políticas fiscal, monetária, creditícia e cambial, tal como decorre das intricadas e ainda insuficientemente avaliadas relações entre Tesouro Nacional e Banco Central, como debatido em https://www.conjur.com.br/2018-fev-27/contas-vista-precisamos-debater-custos-riscos-regime-juridico-bc e https://www.conjur.com.br/2017-jun-16/opiniao-ldo-estimar-riscos-fiscais-relacao-entre-tesouro-bc

[11] STREECK, Wolfgang. Tempo Comprado: a crise adiada do capitalismo democrático. Coimbra: Actual, 2013, p. 137.

[12] ESPING-ANDERSEN, Gosta. As três economias políticas do welfare state. Lua Nova. N. 24. São Paulo, set. 1991. Disponível em http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-64451991000200006

Autores

  • é procuradora do Ministério Público de Contas do Estado de São Paulo, pós-doutora em Administração pela Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas da Fundação Getulio Vargas (FGV/RJ) e doutora em Direito Administrativo pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

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