Observatório Constitucional

Controle de constitucionalidade por órgãos não jurisdicionais: o caso do TCU e do CNJ

Autor

  • Gilmar Mendes

    é professor do Instituto Brasileiro de Ensino Desenvolvimento e Pesquisa (IDP) doutor em Direito pela Universidade de Münster (Alemanha) e ministro do STF.

6 de outubro de 2018, 8h05

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Por ocasião dos 30 anos da Constituição de 1988, é oportuno refletir sobre a evolução do controle de constitucionalidade: de onde viemos e para onde estamos caminhando.

A Constituição de 1988 operou substancial reforma no sistema de controle de constitucionalidade até então vigente no país. Embora a nova Constituição tenha preservado o modelo tradicional de controle de constitucionalidade “incidental” ou “difuso”, é certo que a adoção de outros instrumentos, como o mandado de injunção, ação direta de inconstitucionalidade por omissão, o mandado de segurança coletivo e, sobretudo, a ação direta de inconstitucionalidade, conferiu um novo perfil ao nosso sistema de controle de constitucionalidade. O texto constitucional acabou por consagrar um modelo misto de controle de constitucionalidade, cujo ponto central reside não mais no sistema difuso, mas nas ações diretas, de perfil concentrado.

A complexidade do sistema de controle de constitucionalidade instituído em 1988, prolífico em vias processuais, não deixa de trazer consigo dificuldades várias. Dessa forma, muitos têm sido os esforços, doutrinários e jurisprudenciais, com vistas a solucionar o difícil problema de convivência entre os dois modelos de controle de constitucionalidade.

O reconhecimento da supremacia da Constituição e de sua força vinculante em relação aos poderes públicos torna inevitável a discussão sobre formas e modos de defesa da Constituição e sobre a necessidade de controle de constitucionalidade dos atos do poder público, especialmente das leis e atos normativos. Nesse contexto, ganha relevância a discussão relativa ao controle de constitucionalidade por órgãos não jurisdicionais.

Muito embora o assunto já tenha sido imensamente debatido, são incontáveis as discussões e polêmicas que continuam a permeá-lo. No ponto, controvérsia digna de destaque diz respeito à possibilidade de o Tribunal de Contas da União — e, por simetria, os tribunais de contas estaduais — ou o Conselho Nacional de Justiça realizarem controle de constitucionalidade das leis.

Entre nós, a jurisprudência antiga, encartada na Súmula 347 do Supremo Tribunal Federal, abria ensejo para que o Tribunal de Contas afastasse a aplicação de uma lei a um caso sob o seu exame, por julgá-la inconstitucional:

O Tribunal de Contas, no exercício de suas atribuições, pode apreciar a constitucionalidade das leis e dos atos do poder público.

Ocorre que o referido enunciado foi aprovado em sessão plenária de 13/12/1963, em contexto constitucional totalmente diferente do atual.

Com efeito, até o advento da Emenda Constitucional 16, de 1965, que introduziu em nosso sistema o controle abstrato de normas, admitia-se como legítima a recusa, por parte de órgãos não jurisdicionais, da aplicação de lei considerada inconstitucional.

Especificamente quanto ao Tribunal de Contas da União, essa controvérsia chegou ao STF em mandados de segurança, nos quais se impugnam decisões do TCU que consideram inconstitucional o Decreto 2.745/98, que aprova o Regulamento do Procedimento Licitatório Simplificado da Petrobras. O Supremo ainda não apreciou o mérito dos mandados. Contudo, nos últimos anos, o tribunal tem deferido liminares suspendendo as referidas decisões da corte de contas[1].

Na liminar deferida no âmbito do MS 29.123-MC/DF, considerei que, diante da ampliação do rol de legitimados para a propositura de ação direta de inconstitucionalidade operada na Constituição de 1988, seria questionável a sobrevida da súmula na nova ordem constitucional. Em minha decisão, assentei que:

“Parece quase intuitivo que, ao ampliar, de forma significativa, o círculo de entes e órgãos legitimados a provocar o Supremo Tribunal Federal, no processo de controle abstrato de normas, acabou o constituinte por restringir, de maneira radical, a amplitude do controle difuso de constitucionalidade. A amplitude do direito de propositura faz com que até mesmo pleitos tipicamente individuais sejam submetidos ao Supremo Tribunal Federal mediante ação direta de inconstitucionalidade. Assim, o processo de controle abstrato de normas cumpre entre nós uma dupla função: atua tanto como instrumento de defesa da ordem objetiva, quanto como instrumento de defesa de posições subjetivas. Assim, a própria evolução do sistema de controle de constitucionalidade no Brasil, verificada desde então, está a demonstrar a necessidade de se reavaliar a subsistência da Súmula 347 em face da ordem constitucional instaurada com a Constituição de 1988”[2].

Semelhante divergência também envolve a possibilidade de o Conselho Nacional de Justiça, com fundamento no artigo 103-B, parágrafo 4º, da Constituição de 1988, avaliar a compatibilidade de leis com o texto constitucional.

Embora o Supremo Tribunal Federal ainda não se tenha manifestado de forma terminativa sobre a matéria, em pelo menos duas oportunidades o tema foi enfrentado pelo Plenário do tribunal.

Em sessão realizada no dia 19 de agosto de 2010, a corte desconstituiu decisão do CNJ que determinara que o Tribunal de Justiça da Paraíba exonerasse servidores recém-nomeados para cargos em comissão, diante de “indícios de inconstitucionalidade material” na lei que criou referidos cargos. O acórdão firmou o entendimento de que “a Lei n. 8.223/2007, decretada e sancionada pelos Poderes Legislativo e Executivo do Estado da Paraíba, não pode ter o controle de constitucionalidade realizado pelo Conselho Nacional de Justiça, pois a Constituição da República confere essa competência, com exclusividade, ao Supremo Tribunal Federal”[3].

No mesmo sentido, em 24 de fevereiro de 2011, o tribunal manteve decisão do CNJ, impugnada em sede de mandado de segurança, destacando que “o Conselho Nacional de Justiça, embora seja órgão do Poder Judiciário, nos termos do art. 103-B, § 4º, II, da Constituição Federal, possui, tão somente, atribuições de natureza administrativa e, nesse sentido, não lhe é permitido apreciar a constitucionalidade dos atos administrativos, mas somente sua legalidade”[4].

Ressalta-se ainda que, em 4 de fevereiro de 2014, o ministro Celso de Mello deferiu pedido de medida cautelar em sede de mandado de segurança, a fim de suspender decisão do CNJ que determinara que o presidente do Tribunal de Justiça do Amazonas se abstivesse de adotar providências necessárias à execução da Lei Complementar amazonense 126/2013, tendo em vista aparente vício de inconstitucionalidade no referido diploma legislativo. Essa decisão, mais uma vez, reforçou a tese de que a competência constitucional do CNJ assume perfil estrita e exclusivamente administrativo, não sendo, por isso, possível que este ente realize controle de constitucionalidade das leis[5].

No entanto, ao julgar o MS 26.739/DF, o Supremo Tribunal Federal discutiu a possibilidade de o Conselho Nacional de Justiça afastar a aplicação de determinado ato normativo tido por inconstitucional, quando existir jurisprudência pacífica do STF que ateste a referida inconstitucionalidade.

O caso versava sobre o afastamento, pelo CNJ, da aplicação de ato do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, que fixara férias em 60 dias para servidores de segunda instância da Justiça estadual mineira. A edição do ato impugnado, com efeito, contrariava frontalmente a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, que pacificamente julga inconstitucional a ocorrência de férias coletivas nos juízos e tribunais de segundo grau.

Em face do afastamento pelo CNJ da aplicação do ato do TJ-MG, o Sindicato dos Servidores da Justiça de Segunda Instância de Minas Gerais (Sinjus-MG) impetrou mandado de segurança coletivo, com pedido de liminar, sob o argumento de suposta incompetência do CNJ para prolação de decisão daquela natureza. Defendeu o Sinjus-MG ser atribuição exclusiva do STF a análise de compatibilidade entre norma que prevê o direito a férias dos servidores mineiros e o que está disposto na Constituição Federal, razão pela qual deveria ser anulada a decisão do CNJ que afastara o ato editado pelo TJ-MG.

Todavia, no julgamento da demanda, prevaleceu, entre os membros da 2ª Turma do STF, o entendimento no sentido de que o Conselho Nacional de Justiça não era incompetente para a prolação da decisão então impugnada, não havendo, portando, qualquer usurpação de competência da corte constitucional pelo CNJ. Entenderam os magistrados que é possível que órgãos autônomos — como CNJ, CNMP, conselho dos contribuintes, dentre outros — profiram decisão no sentido de afastar a aplicação de determinado ato normativo por vício de inconstitucionalidade, desde que a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal seja pacífica em já reconhecer a inconstitucionalidade da matéria.

Desse modo, vale salientar que a decisão proferida no julgamento do MS 26.739/DF não autoriza a realização de controle difuso de constitucionalidade por órgãos não jurisdicionais. Na verdade, nas hipóteses como a que se verificava no referido processo, a jurisprudência do STF deve ser pacífica no sentido de reconhecer a inconstitucionalidade de um tema, para que os órgãos não jurisdicionais possam decidir afastar a aplicação de determinado ato normativo que diga respeito àquele assunto, por inconstitucionalidade. Em conformidade com a decisão, na verdade, o que podem fazer os órgãos não jurisdicionais é apenas aplicar a jurisprudência uniforme da corte constitucional ao caso concreto e concluir pelo afastamento ou pela aplicação de determinado ato normativo, tendo em vista a sua (in)compatibilidade com o texto constitucional, segundo a interpretação do próprio Supremo Tribunal Federal.

Com as devidas vênias aos entendimentos jurisprudenciais destacados, pensamos que, tanto em relação ao controle de constitucionalidade exercido pelo TCU quanto pelo CNJ, cabe fazer um distinguishing das situações enfrentadas. Não parece desarrazoado entender pela possibilidade de essas entidades negarem aplicação a determinada lei no caso concreto, quando já houver entendimento pacificado do STF acerca da inconstitucionalidade chapada, notória ou evidente, da solução normativa em questão em questão.

Externei minha posição no julgamento do Mandado de Segurança 31.667-AgR, de relatoria do ministro Dias Toffoli, julgado pela 2ª Turma do STF em setembro. Na oportunidade, ressaltei não haver empecilho para que a administração pública deixe de aplicar solução normativa inconstitucional, assim entendida como aquela em confronto com a Lei Maior ou baseada em interpretação tida como incompatível pela suprema corte, em jurisprudência solidificada.

Quando o STF, no papel do intérprete constitucional, procede a determinada leitura da norma constitucional, não podem os demais órgãos públicos lato sensu, no exercício de atividade administrativa típica ou atípica, simplesmente desprezá-la e passarem a contorná-la com artimanhas jurídicas.

Dito de outro modo, se ao Supremo Tribunal Federal compete, precipuamente, a guarda da Constituição Federal, é certo que a sua interpretação do texto constitucional deve ser acompanhada pelos demais entes federativos, em decorrência do efeito definitivo absoluto outorgado à sua decisão. Igualmente, tal interpretação deve ser entendida pelos órgãos da administração pública como indicativa do sentido normativo-constitucional, no caso de se tratar de jurisprudência firmada sem eficácia erga omnes e efeito vinculante. Isso porque, na hipótese contrária (de efeitos erga omnes e vinculante), já há obrigatoriedade na sua observância, na forma do parágrafo 2º do artigo 102 da CF.

É bem verdade que, ao ampliar o círculo de entes e órgãos legitimados a provocar o Supremo Tribunal Federal, nos processos de controle abstrato de normas, bem como daqueles que podem participar efetivamente do processo constitucional, por meio de audiências públicas e intervenções como amicus curiae, acabou o Constituinte de 87/88 por, em certa medida, restringir a amplitude do controle difuso de constitucionalidade de leis e atos normativos. Além disso, a própria criação da ação declaratória de constitucionalidade revela a preocupação da Carta Magna em prestigiar a presunção de constitucionalidade de leis e atos normativos.

Todavia, também é inegável que o ordenamento jurídico vigente confere eficácia ampla e expansiva às decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal, mesmo em sede de controle incidental de constitucionalidade. A esse respeito, destaca-se a nossa tese, adotada no julgamento das ADIs 3.406/RJ e 3.470/RJ, no sentido de que a fórmula relativa à suspensão de execução da lei pelo Senado há de ter simples efeito de publicidade. Ou seja, se o Supremo, em sede de controle incidental, declarar definitivamente que determinada lei é inconstitucional, essa decisão terá eficácia erga omnes, fazendo-se a comunicação àquela Casa legislativa apenas para que publique a decisão no Diário do Congresso.

Admitida a possibilidade de as decisões do Supremo, ainda que proferidas na via incidental, ostentarem força cogente, é possível defender que mesmo órgãos administrativos podem, ou mesmo devem, vincular-se ao entendimento jurisprudencial da corte quanto à inconstitucionalidade de dado ato normativo[6]. Como dito, sobretudo nas hipóteses de inconstitucionalidade chapada — reconhecida com uniformidade pela jurisprudência do STF —, o entendimento da impossibilidade de entidades como TCU ou CNJ declararem lei inconstitucional no caso concreto apenas conduzirá a sucessivas reformas judiciais das suas decisões administrativas, em sede de mandado de segurança.

Diante de todos esses argumentos, reconhece-se porque a questão ainda permanece parcialmente em aberto, sendo inegável a complexidade que envolve a matéria.


[1] Nesse sentido, conferem-se as seguintes decisões monocráticas: MS 29.123-MC/DF, rel. Min. Gilmar Mendes, DJe de 8-9-2010; MS 28.745-MC/DF, rel. Min. Ellen Gracie, DJ de 13-5-2010; MS 28.626-MC/DF, rel. Min. Dias Toffoli, DJ de 5-3-2010; MS 28.252-MC/DF, rel. Min. Eros Grau, DJ de 29-9-2009; MS 27.796-MC/DF, rel. Min. Ayres Britto, DJ de 9-2-2009; MS 27.344-MC/DF, rel. Min. Eros Grau, DJ de 2-6-2008; MS 27.337-MC/DF, rel. Min. Eros Grau, DJ de 28-5-2008; MS 27.232-MC/DF, rel. Min. Eros Grau, DJ de 20-5-2008; MS 26.808-MC/DF, rel. Min. Ellen Gracie, DJ de 2-8-2007; MS 26.783-MC/DF, rel. Min. Marco Aurélio, DJ de 1º-8-2007; MS 25.986-ED-MC/DF, rel. Min. Celso de Mello, DJ de 30-6-2006; MS 27.743-MC/DF, rel. Min. Cármen Lúcia, DJe de 15-12-2008; MS 28.897-MC/DF, rel. Min. Cármen Lúcia, DJe de 2-8-2010.
[2] MS 29.123-MC/DF, rel. Min. Gilmar Mendes, DJe de 8-9-2010.
[3] AC 2390 MC-REF, rel. Min. Cármen Lúcia, Tribunal Pleno, DJe de 2-5-2011.
[4] MS 28872 AgR, rel. Min. Ricardo Lewandowski, Tribunal Pleno, DJe de 18-3-2011.
[5] MS 32582 MC, rel. Min. Celso de Mello, DJe de 11-2-2014.
[6] Nesse sentido, exemplo de vinculação expressa da administração pública às decisões proferidas pelo tribunal encontra-se no artigo 103-A da CF/88, nas hipóteses de edição de súmulas vinculantes.

Autores

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    é doutor em Direito pela Universidade de Münster, Alemanha. Professor de Direito Constitucional nos cursos de graduação e pós-graduação do Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP). Ministro do Supremo Tribunal Federal (STF).

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