Opinião

Candidatura de Jair Bolsonaro à Presidência não cabe na Constituição

Autores

  • Vitor Marques

    é secretário municipal de assuntos jurídicos e da Justiça de Cotia/SP e mestre e doutorando em Filosofia do Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).

  • Bruno César de Caires

    é sócio do escritório Caires Marques e Mazzaro Advogados mestre em Direito Constitucional na Universidade de Lisboa e pós-graduando em Direito Eleitoral pela Escola Judiciária Eleitoral Paulista (EJEP-TRE/SP).

5 de outubro de 2018, 14h08

Há um jargão no Direito que diz que, ao se produzir um texto constitucional, de regra, ele deve tratar das conquistas mais avançadas do ideário político da época, pelo menos daquelas que se incorporam como um patrimônio cultural da humanidade.[1] Entretanto, basta um olhar histórico mais apurado para percebermos com facilidade que, em tempos de crise, como a vivenciada nestas eleições, o Direito Constitucional é a primeira trincheira a ser sucumbida. As Constituições, nestas circunstâncias, seguem sendo acusadas de serem “tendencialmente holísticas” e “utopicamente demiúrgicas” e continuam seguindo sua sina ora sobrevivendo como “mito”, ora como “utopia”. [2]

Em que se pese o trocadilho com o “mito”, a tensão social deste momento político esbarra, sobretudo, na vigência de um texto constitucional prolixo, que se pretende modificador da ordem social e interventor da ordem econômica, que dirige o Estado na busca por dar efetividade aos seus fundamentos.

A colisão dos conflitos eleitorais postos pela candidatura do deputado Jair Bolsonaro (PSL), lamentavelmente, não encontra viável ponderação dentro da ordem constitucional vigente. Tal afirmação vai muito além dos valores morais questionáveis assumidos pelo candidato, e firma verdadeira colisão frontal à força normativa da Constituição.

Os conceitos de Estado e sociedade são fixados, no plano jurídico, no momento em que se atribui normatividade ao texto constitucional, por meio de uma expressão de linguagem que como tal – um texto escrito – carrega uma forte carga axiológica em sua semântica.[3] Deste modo, os valores inexoráveis da sociedade se fixam no texto constitucional de modo tão intrínseco que, por vezes, sua própria alteração ou restrição é retirada da arena política, vinculando as gerações futuras com o objetivo de preservar o pacto constitucional.[4] São valores fundamentais, porque contém os “eixos normativos vertebrantes da ordem política e jurídica” fundada pelo povo, na sua vontade constituinte – e indisponível porque sua depreciação implica na perda de substancialidade da Constituição. [5]

Correndo o risco de ser alarmista, esses valores básicos imbuídos no texto constitucional parecem ameaçados pela candidatura do “Capitão”. Foram diversas as manifestações em que ele se recusa a assumir compromissos mínimos pactuados na Constituição, refutando desta forma certo consenso estabelecido sobre as áreas em que há margem para discricionariedade e aquelas que, por caracterizarem o Estado, devem ser preservadas na exata forma anuída pelo Poder Constituinte soberano, sob risco de deslegitimação política da ordem. [6]

A Constituição brasileira carrega em seu cerne uma promessa de modernidade[7] que aponta, ao mesmo tempo, para vinculações positivas (caracterizada pelos direitos prestacionais) e negativas (como os gerados pelos direitos às liberdades que não podem ser violados) e traz consigo em seu cerne uma dupla garantia: uma garantia contra retrocessos sociais e uma garantia de avanço na busca por um Estado mais igualitário. [8] A Constituição brasileira de 1988 é enfaticamente voltada a ser instrumento de transformação da realidade social desigual de nosso país.

Os princípios fundamentais da Constituição, consagrados, sobretudo, nos seus artigos 1º (soberania; cidadania; dignidade da pessoa humana; valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; pluralismo político) e 3º (construir uma sociedade livre, justa e solidária; garantir o desenvolvimento nacional; erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação); constituem o “cerne constitucional” e devem servir, por meio do princípio da unidade da Constituição, de diretriz interpretativa, irradiando seus efeitos para todo ordenamento. [9]

Por isso, as falas e propostas do candidato Jair Bolsonaro como “as minorias têm que se curvar às maiorias”, “se eu assumir, índio não terá mais 1cm de terra”, “mais do que privatizar, extinguir a maioria das estatais”, “violência se combate com violência, e não com bandeiras de direitos humanos”, “carteira de trabalho verde e amarela – na qual o contrato individual prevalece sobre a CLT”, e, sobretudo, “não aceito resultado diferente da minha eleição”; externando apenas algumas questões mais atinentes aos fundamentos da República, sem menosprezar as falas discriminatórias e preconceituosas, deixam inequívoca a posição outsider do candidato no que diz respeito ao plano constitucional.

Nossa sociedade convive, ainda e lamentavelmente, com uma massa de subcidadãos não integrados ao sistema político pelo fato de não atingirem condições mínimas de cidadania. [10] A promessa de modernidade garantida pelo pleno constitucional visa, justamente, a integrar estes brasileiros, na medida em que a Constituição atribui ao Estado a função de ser a ferramenta de inserção deste verdadeiro exército de excluídos.

É, sobretudo, nestes termos, que se consubstancia nosso pacto social, é o consenso que harmoniza nossa sociedade. Doutro modo, seria a barbárie. Infelizmente, ao se colocar como candidato defensor de pautas atentatória às minorias excluídas, Jair Bolsonaro se posiciona fora de nosso Common Law, não restando alternativa que entoar o canto de ordem: ou Constituição ou Barbárie. [11]


[1] BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Poder constituinte. Revista de Direito Constitucional e Ciências Políticas, São Paulo, v. 4, p. 69-104. jan./jun.1985

[2] CANOTILHO, Gomes. Mal estar da Constituição e pessimismo pós-moderno. Lisboa. Vértice n. 7, 1988, p. 9.

[3] “A confrontação de ideologias na discussão dos problemas constitucionais é ineliminável, dado que a interpretação constitucional remete para uma teoria de constituição que, por sua vez, vai terminar em teorias do Estado e da sociedade.” CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Constituição dirigente e vinculação do legislador – contributo para a compreensão das normas constitucionais programáticas. Coimbra: Coimbra, 1982, p. 8.

[4]. ELSTER, Jon. Ulisses unbound, Cambridge: Cambridge University Press, 2000, p.115

[5] MORAIS, Carlos Blanco. Justiça Constitucional. Tomo I: Garantia da Constituição e Controle de Constitucionalidade, Coimbra, p. 54.

“Esse compromisso básico assume no plano normativo constitucional, a forma de um compromisso de regime, o qual define pelas regras do jogo que presidem à ordem política instituída na sua dimensão institucional e garantística”. MORAIS, Carlos Blanco. Justiça Constitucional. Tomo I: Garantia da Constituição e Controle de Constitucionalidade, Coimbra, p. 62-63.

[7] Compreende-se por modernidade a conceituação de Alexis de Tocqueville, para quem a modernidade foi caracterizada como um interrupto processo de afirmação da democracia e da universalização da igualdade. A distinção entre modernidade central e periférica (tardia), pretende essencialmente destacar que: “enquanto nas sociedades centrais esse percurso desenvolveu-se com êxito e logrou estender-se gradualmente a todos os estratos sociais, nas sociedades ditas periféricas, ao contrário, esse caminho foi explorado de forma deficiente, incompleta, inacabada, ou nem sequer chegou a ser trilhado.” MOREIRA, Nelson Camatta. Fundamentos de uma teoria da Constituição dirigente. Coleção Lenio Luiz Streck. Editora Conceito. p. 127.

[8] MARTINS, Ricardo Marcondes. Regulação administrativa à luz da constituição. p.74

[9] BERCOVICI, Gilberto. A problemática da Constituição Dirigente: algumas considerações sobre o caso brasileiro. Revista de Informação Legislativa. Brasília, v. 36, n. 142, abr./jun. de 1999, p. 46.

[10] Sobre o conceito de subcidadania: SOUZA, Jesse. A Construção social da subcidadania: Para uma sociologia política da modernidade periférica, p. 101-49.

[11] Direta referência à obra de Lenio Streck: Constituição ou barbárie? A lei como possibilidade emancipatória a partir do estado democrático de direito: a resistência constitucional como compromisso ético Rio de Janeiro : Lumen Juris , 2002.

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    é sócio do escritório Caires, Marques e Mazzaro Advogados, mestrando e professor assistente em Direito Administrativo na PUC de São Paulo.

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    é sócio do escritório Caires, Marques e Mazzaro Advogados, mestrando em Direito Constitucional na Universidade de Lisboa e professor assistente de Direito Constitucional na PUC de São Paulo.

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