Consultor Jurídico

Opinião: 30 anos de promulgação e 28 anos de vigência da CF

5 de outubro de 2018, 6h19

Por Martonio Mont'Alverne Barreto Lima, Jorge Bheron Rocha

imprimir

A partir das Constituições mexicana de 1917 e alemã de 1919, o “Estado assumiu completamente, pelo menos no papel, a responsabilidade social para garantir uma existência digna a cada um de seus cidadãos”[1] e, ao par de garantias nitidamente liberais, passaram a conter dispositivos que impunham uma conduta positiva do Estado para a consecução dos direitos fundamentais de que os indivíduos eram titulares.

Inicialmente transplantadas essas ideias para a Constituição de 1934 e, com a promulgação da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, passou a dignidade humana a significar e a fundamentar a própria República, exprimindo a busca pelo exercício pleno dos direitos fundamentais, liberdades e garantias previstos no texto constitucional e, eventualmente, disciplinados ou regulamentados pela legislação inferior.

Preocupa-se a Carta de 1988 com a proteção dos direitos e garantias fundamentais e com efetivos instrumentos colocados à sua disposição, de forma a superar a mera igualdade jurídica prometida pelo Estado liberal e com o enfrentamento de seus obstáculos de forma mais efetiva[2], diante da máxima de que o Estado deve propor mudanças que viabilizem a concreção da dignidade humana dos membros da sociedade em sua integralidade, e não apenas uma parte desta[3].

A Constituição brasileira de 1988 se caracteriza como uma constituição dirigente que busca a implementação do Wellfare State em um país de modernidade tardia e carente de socialização de direitos, configurando a declaração dos direitos sociais e a previsão dos instrumentos de sua implementação, inclusive de natureza organizacional (artigo 23, II e 196, caput) e orçamentário (artigo 198, parágrafo 2º), um se seus pilares.

Entretanto, com a aprovação da Emenda Constitucional 95, publicada em 16 de dezembro de 2016, originada da Proposta de Emenda à Constituição 241/2016, de iniciativa do Poder Executivo, encaminhada ao Congresso Nacional em 21 de junho do mesmo ano pelo vice-presidente Michel Temer, que ocupava interinamente a Presidência desde 12 de maio de 2016, materializa-se a ruptura constitucional, com o esgarçamento da tessitura do centro de proteção social conferido pelas normas constitucionais.

A EC 95/2016 estabelece o congelamento dos gastos públicos por 20 anos, a serem corrigidos apenas pela inflação, o que compromete todo o núcleo duro da Constituição de 1988, impedindo o exercício dos direitos sociais e individuais, conduzindo a luta contra a luta contra a desigualdade a um patamar secundário, de forma a impor ao Estado a desconstrução das instituições dotadas de instrumentos organizacionais, financeiros e estruturais que buscavam garantir minimamente a consecução da cidadania e da dignidade à parcela da sociedade que sofre um inaceitável processo de exclusão, perpetuando a negativa histórica às grandes conquistas jurídicas e sociais[4].

Os direitos sociais, especialmente presentes no texto originário da Constituição de 1988, são o núcleo duro da Constituição, simbolicamente colocados como cláusulas pétreas, ou seja, que nem mesmo o constituinte revisor ou o constituinte reformador podem abolir ou mitigar. São normas constitucionais por excelência, ao lado da organização dos poderes e do estado, podendo quase todo o resto ser classificado como “leis constitucionais”, na acepção que dava a Constituição de 1824.

Com a advento da EC 95/2016, a implementação destes direitos sociais fora suspensa, e com eles a própria Constituição, enterra-se quaisquer perspectivas positivas em reação ao dirigismo e intervencionismo, além de projetar-se desdobramentos devastadores, entre outros, na saúde e educação.

Estudo técnico que analisa os impactos deste novo regime fiscal sobre as políticas educacionais conclui que a limitação da despesa primária total à despesa realizada em 2016 e corrigida pelo Índice de Preços ao Consumidor (IPCA) compromete a execução das políticas educacionais previstas na Constituição, no Plano Nacional de Educação e no Plano Plurianual[5].

Outro exemplo claro desta agenda de estagnação das conquistas mínimas civilizatórias da sociedade envolve a impossibilidade de implementação da dimensão organizacional do acesso à Justiça pela Defensoria Pública, cuja imposição de instalação em todas as unidades judiciárias num prazo de oito anos, conforme a Emenda Constitucional 80/2014, resta agora completamente inviabilizada. Corre-se, ainda, o sério risco de reduzir o serviço hoje prestado pela Defensoria Pública, em decorrência do fechamento de unidades em todo o Brasil, um claro retrocesso na garantia do acesso à Justiça[6].

Não se trata apenas de paralisar a implantação efetiva dos direitos e garantias fundamentais, mas de fazê-los retroagir para níveis anteriores à redemocratização do país, o que tornará qualquer reinvestimento social e financeiro nas áreas sociais muito mais oneroso, em razão de refazer muito do que já fora feito nestes últimos 30 anos.

A EC 95/2016 a um só tempo se revela inconstitucional por (i) suspender por 20 anos a implementação dos direitos sociais; (ii) fazer retroceder à realidades econômica e social anteriores à Constituição de 1988, e que esta mesma Constituição procurou superar. Aqui, equivale a dizer que a EC 95/2016 obriga a Constituição a dar um salto para trás.

A falta de concretização dos direitos e garantias fundamentais em decorrência da EC 95/2016 transfere para um futuro incerto as responsabilidades e respostas sociais esperadas e intensifica o grau de desconfiança e descrédito no Estado[7]. Não se mostra admissível a esterilização do poder público, principalmente no que se refere à sua missão de gerir as relações com a sociedade[8], fazendo morrer jovem um país de modernidade tardia e prenhe de desigualdades. Não podemos ter ingenuidades: qualquer um razoavelmente informado bem sabe dos objetivos da EC 95/2016. Trata-se do privilégio do capital financeiro, isto é, de lucros para os bancos e investidores especuladores. Desde os tempos de Rudolf Hilferding, enquanto ministro das finanças na República de Weimar, sabe-se também que não há o menor compromisso do capitalismo financeiro com desenvolvimento, criação de empregos e renda mínima para todos. O discurso hegemônico da mídia brasileira main stream de elogios à EC 95/2016 serve apenas para confirmar o quanto ruim para a Constituição e para a democracia é essa emenda.

A Constituição de 1988, em seu pilar principal, a consubstanciação dos direitos sociais, foi suspensa sine die na data de 16 de dezembro de 2016, e por isso, na data de hoje, 5 de outubro de 2018, não se pode comemorar seus 30 anos de vigência.


[1] LOEWENSTEIN, Karl. Teoria de la Constitución. 2. ed. Barcelona: Ariel, 1970.
[2] CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à Justiça. Tradução Ellen Gracie. Northfleet. Porto Alegre: Fabris, 1988.
[3] MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Desafios Institucionais Brasileiros. In: MARTINS, Ives Gandra (org.). Desafios do Século XXI. São Paulo: Pioneira/Academia Internacional de Direito e Economia, 1997.
[4] KETTERMANN, Patrícia. Defensoria Pública. São Paulo: Estúdio Editores, 2015.
[5] TANNO, Claudio Riyudi. Estudo Técnico nº 18/2016. Novo Regime Fiscal Constante da Pec nº 241/2016: Análise dos Impactos nas Políticas Educacionais. Disponível em <http://www2.camara.leg.br/orcamento-da-uniao/estudos/2016/et-18-2016-novo-regime-fiscal-constante-da-pec-no-241-2016-analise-dos-impactos-nas-politicas-educacionais>. Acesso em 30/8/2017.
[6] ANADEF. Associação Nacional dos Defensores Públicos Federais. Petição Inicial Ação Direta de Inconstitucionalidade 5.988. 42f. Brasil. 2018.
[7] NEVES, Marcelo. Constitucionalização Simbólica e Desconstitucionalização Fática: mudança simbólica da Constituição e Permanência dos fatores reais de poder. RTDP. n.12. São Paulo: Malheiros, 1995.
[8] BUCCI, Maria Paula Dallari. O conceito de política pública em direito. In: BUCCI, Maria Paula Dallari (Org.). Políticas Públicas: reflexões sobre o conceito jurídico. São Paulo: Saraiva, 2006