Olhar Econômico

Jurisdição constitucional, mutações e a insegurança jurídica

Autor

  • João Grandino Rodas

    é sócio do Grandino Rodas Advogados ex-reitor da Universidade de São Paulo (USP) professor titular da Faculdade de Direito da USP mestre em Direito pela Harvard Law School e presidente do Centro de Estudos de Direito Econômico e Social (Cedes).

4 de outubro de 2018, 8h10

Spacca
A comunicação mais efetiva entre os seres humanos é feita por meio da linguagem falada e escrita. Uma pessoa codifica a mensagem que deseja transmitir, em frases formada por palavras, que é enviada, por meio da fala ou da escrita, a outro ser humano. Este, por sua vez, toma conhecimento das frases e procura decodificar a mensagem recebida. Como é sabido, as palavras possuem significado etimológico (significado das palavras, segundo sua origem histórica); que, entretanto, podem ser modificados pela semântica (evolução do significado original das palavras). A codificação e a decodificação acima descritas existem tanto na conversa coloquial quanto nos textos técnicos e eruditos.

Nos países que seguem a escola continental e, em menor escala, também nos países da common law, as leis, constitucionais ou não, são vazadas em textos articulados, que transmitem normas gerais a serem seguidas, obrigatoriamente. Para se chegar ao significado dessas leis — mens legis —, há a ciência hermenêutica, cujas diferentes abordagens podem levar a significados diversos. Mais ou menos emaranhado com a própria interpretação ocorre, por vezes, a mutação.

Mutação legal é o procedimento de mudança de interpretação de dispositivo legal, sem que ocorra mudança do seu texto. Lenta e gradualmente, o significado do texto modifica-se em razão de novas realidades circundantes. Essa evolução ocorre igualmente com relação às Constituições, permitindo que certas Constituições permaneçam formalmente inalteradas por longo tempo, como a dos Estados Unidos. Contudo, aquelas que sofrem mudanças constantes, como a brasileira, também estão sujeitas a esse fenômeno. Quando a mutação se refere à Constituição, o nome usual é mutação constitucional.

Por jurisdição constitucional ou controle jurisdicional de constitucionalidade, entende-se a verificação, por órgão jurisdicional, da conformidade de lei infraconstitucional e outros atos com a Constituição.

O Direito Internacional Público, embora possuindo traços bem distintos do Direito interno, apresenta figura não muito distante da mutação. Normalmente, as regras internacionais são expressas nos tratados internacionais, em articulados semelhantes aos das leis internas. Como é sabido, uma norma internacional somente obriga os Estados que a aceitaram (voluntarismo). Inobstante, vige no âmbito internacional o princípio da efetividade, segundo o qual, mesmo que não haja apoio na norma, tal qual ela se apresenta, em se fazendo uma interpretação evolutiva do texto e ela for posta em prática, passará a ser válida. O exemplo mais simples desse fato é o poder da Assembleia Geral da ONU, que se fortaleceu, pela interpretação feita, ao tempo da Guerra Fria, em razão de o real centro de poder da organização — o Conselho de Segurança — estar paralisado pelo poder de veto, concedido a cinco de seus membros.

Realizou-se, há poucos dias, em comemoração aos 30 anos da Constituição de 1988, o XXVII Encontro Nacional de Direito Constitucional, promovido pelo Instituto Pimenta Bueno e que teve lugar, na Faculdade de Direito de Ribeirão Preto da USP. O painel sobre Jurisdição Constitucional e as Mutações teve o concurso de três eminentes juristas, tendo sido por mim presidido.

Paulo Adib Casseb tratou da jurisdição constitucional na interpretação das normas constitucionais de Direito Militar feita pelo STF. Destacou ele ter a Constituição de 1988 sido inovadora ao prever a competência originária dos tribunais estaduais (Tribunal de Justiça Militar, onde houver, ou Tribunal de Justiça) para determinar a perda da graduação das praças e perda do posto e da patente dos oficiais (artigo 125, parágrafo 4º, CF). Em 1990, o STF firmou entendimento no sentido da eficácia plena e aplicabilidade imediata da citada norma constitucional. Desde então, após condenação criminal transitada em julgado envolvendo praça, o Ministério Público oferece representação ao tribunal competente (TJM ou TJ), que avaliará se referida condenação atinge o decoro militar, para fins de decretação, ou não, da perda da graduação da praça. Segundo a evolução jurisprudencial do STF, os praças não possuem vitaliciedade, mas, sim, estabilidade, o que significa que a competência do Judiciário, prevista no artigo 125, parágrafo 4º, da Constituição não impede a instauração de processo administrativo disciplinar pelo mesmo fato.

Quanto aos oficiais, estes, sim, gozam de vitaliciedade, o que impõe decisão judicial para que possa haver a perda do posto e da patente. Foram apresentados dados concretos, demonstrando que nos estados em que há Tribunal de Justiça Militar o exercício do controle judicial dos atos dos policiais militares, inclusive dos oficiais, tem sido efetivo, o que revela a importância da Justiça especializada.

José Levi Mello do Amaral Júnior abordou a linha divisória entre o poder constituinte originário e o poder constituinte de reforma. Iniciou sua exposição apresentando as modificações formais e informais da constituição dos Estados Unidos, a começar pelo debate Madison v. Jefferson, no referente à possibilidade ou não de modificação da Constituição. Demonstrou que, embora a citada Constituição tenha sido emendada poucas vezes (27 emendas desde 1787), teve seu sentido cambiado, por força da interpretação e das práticas constitucionais. Referiu-se, a seguir, a outras Constituições do mundo ocidental, também bastante modificadas por força de emendas. É exceção a Espanha, cuja Constituição sofreu apenas duas emendas. Logo, a Constituição brasileira não merece tantas críticas unicamente pelo fato de ter sido muito emendada.

Passando ao exame da relação entre poder constituinte originário e poder constituinte instituído, demonstrou que o Poder Judiciário deve defender a linha de separação entre um e outro, não a eliminando, para, de certa maneira, passar a exercer ele o poder constituinte originário. Por fim, a exposição examinou sete casos de modificações constitucionais informais do texto constitucional de 1988, entre os quais a reedição de medidas provisórias, a fidelidade partidária e a cisão da pena do impeachment.

Terminou afirmando que as mutações constitucionais causam profunda insegurança jurídica, sobretudo quando há idas e vindas nas decisões, em curto espaço de tempo.

Roger Stiefelmann Leal tratou da ideologização da Constituição, por meio da interpretação judicial, tendo alertado para os respectivos riscos. Segundo ele, para que uma Constituição seja democrática, é necessário haver modelo juspolítico que possibilite a convivência de políticas distintas, bem como a possibilidade da implementação da plataforma escolhida pela maioria. Assim, é nocivo, por representar um estreitamento, a interpretação com conteúdo ideológico específico eventualmente feita por juízes constitucionais. É impróprio que modelo constitucional democrático bloqueie, com excessivas premissas, o espaço necessário ao debate entre distintas plataformas e correntes políticas.

As ideologias políticas divergem também pela valorização de certos bens fundamentais em detrimento de outros que apoiem teorias de significados específicos. Recentes decisões do STF sobre financiamento de campanha de empresas e a vedação do nepotismo exemplificam as concepções diversas sobre determinados bens fundamentais, que embasam posições políticas divergentes com relação a questões relevantes para a sociedade.

Não cabe aos órgãos de jurisdição constitucional entender bens fundamentais como igualdade, liberdade, segurança ou propriedade, concepções amplas e completas, sob pena de engajar a Constituição em determinada corrente ideológica, negando seu caráter democrático. Na verdade, compete ao juiz constitucional vislumbrar na positivação desses bens fundamentais: (i) seu conteúdo essencial constitucionalmente assegurado; e (ii) a gama de concepções distintas que proporciona.

Em conclusão da fala dos três expositores, pode-se inferir que as mutações constitucionais, levadas a cabo pelo STF, figuram entre as principais causas da grande insegurança jurídica no Brasil.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!