Opinião

As alterações da Lindb e os desvios normativos na Teoria do Direito

Autor

  • Fernando Rodrigues Martins

    é professor da graduação e da pós-graduação da Universidade Federal de Uberlândia (UFU) mestre e doutor em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) membro do Ministério Público do Estado de Minas Gerais e presidente do Brasilcon.

4 de outubro de 2018, 10h31

A recente reforma na Lindb proporcionada pela Lei Federal 13.655/2018 (Lei de Segurança para a Inovação Pública)[1] tem o mérito em aperfeiçoar a sistematização e estruturação do Direito Administrativo brasileiro, que não é codificado. A ausência de macrossistema, ao inverso do que ocorre com o Direito Privado através do Código Civil[2], é contraproducente às decisões (judiciais ou administrativas) no campo da unidade e coerência.

Evidente que as leis federais que regulam o Direito Público — em especial ação popular (Lei 4.717/65), organização administrativa nacional (DL 200/67), improbidade administrativa (Lei 8.429/92), licitações (Lei 8.666/93), concessão e permissão do serviço público (Lei 8.987/95), processo administrativo (Lei 9.784/99), acesso às informações e transparência (Lei 12.527/11) — mesmo formando conjunto normativo com identidade de princípios e regras (por exemplo, legalidade, publicidade, moralidade etc.)[3], padecem de melhores critérios de unidade, sendo louvável a positivação de dispositivos normativos coordenadores para articular a integralidade desse ramo do direito.

Entretanto, a despeito do reconhecimento da importância de legislação unificadora, vale a nota que a experiência utilizada na construção da proposta normativa considerou bem mais premissas e conteúdos próprios ao Direito Administrativo e gestão pública do que de Teoria do Direito. Características da Lei de Introdução às Normas no Direito Brasileiro, com recente adequação da nomenclatura pela Lei Federal 12.376 de 2010 para evitar compreensões distorcidas de aplicação tão somente na seara do Direito Civil, notadamente são: i) atuação em complexidade sistêmica, enquanto metanorma; ii) fixação de conceitos gerais (vigência, revogação, vacância etc.); iii) solução de antinomias e lacunas normativas; iv) fixação de regras de interpretação e integração; e v) disposição de situações frente a lei no espaço tendo em vista as questões relativas ao Direito Internacional Privado). Nessas condições, a Lindb tem alcance para todas dogmáticas e legislações (civil, penal, tributário, consumidor, administrativo, constitucional, previdenciário etc.).

A Lei 13.655/18, muito embora trate de interpretação (consequencial, especialmente), o faz de forma fragmentada com vistas a tutelar unicamente interesses da gestão, gestor e administração pública, setorizando indevidamente a lei e o sentido das disposições introdutórias.

O Direito não é ciência meramente especulativa: é ciência problemática[4]. O Anteprojeto de Lei 7.448-A de 2017 que antecedeu a Lei Federal 13.655/18 embasou a edição de novos dispositivos na Lindb na percepção de problemas (controvérsias) na ambiência da administração pública. Destacam-se entre os pontos de irritação: a) ausência de compartilhamento e diálogo na composição do interesse público entre os Poderes; b) intensa responsabilização das autoridades administrativas pelo ordenamento e instituições; c) choque de funções dos Poderes do Estado e dos órgãos constitucionais autônomos (Ministério Público, Defensoria Pública, entre outros)[5]. Contudo, imersão cuidadosa à legislação em comento revela que atenção maior do legislador foi salvaguardar o "gestor" e "administrador" das consequências das respectivas ações e inações.

Nesse sentido, vale o exemplo de que a inovadora legislação descuidou de oportunidade ímpar: dispor integralmente sobre boa governança[6]. Dentre os princípios que norteiam a boa governança, a legislação em comento deu ênfase apenas aquele que respeita aos processos de decisão fundamentados e claros. A bem da democracia, a legitimidade e grandeza da gestão pública é alcançada quando se abandonam pretensos paradoxos (governo/oposição; maioria/minoria), adotando-se as melhores soluções legiferantes e éticas, independentemente da versão partidária ou institucional interna predominante. Insere-se no centro das decisões o princípio da condução responsável[7] dos assuntos do Estado, nele incluído a ampla participação do cidadão e as seguintes diretrizes: incessante respeito aos direitos humanos; aos princípios democráticos e ao Estado de Direito; respeito ao desenvolvimento sustentável e equitativo; gestões transparentes e responsáveis (accountability) com os recursos naturais, humanos, econômicos e financeiros; primado do Direito na gestão orçamentária; combate constante à corrupção[8].

A assunção e reconhecimento dos direitos humanos no âmbito da globalidade e a consequente positivação interna de referidos direitos em diversas Constituições[9], assim como a investigação do Direito a partir da perspectiva do julgador e não do legislador naqueles sistemas que podem ser considerados legitimados (Estado Democrático de Direito)[10], acarretaram sobressalto valorativo na ciência jurídica.

Quando do advento da Constituição Federal, seguida do Estatuto da Criança e do Adolescente, Código de Defesa do Consumidor e, mais recentemente, do Código Civil, consagrou-se a renovação da função jurisdicional, especialmente pelo papel do juiz na concretude da norma jurídica, através de princípios, cláusulas gerais e conceitos jurídicos indeterminados, reconhecendo-se a incompletude do sistema jurídico[11]. O método dedutivista encontraria a partir dali outras diretrizes metodológicas concorrentes, notadamente críticas (sapientia)[12] ou argumentativas (fronesis)[13].

No âmbito privado, o Código Civil de 2002 fixou clara preocupação em preservar acertos da codificação anterior, no entanto, debruçou-se igualmente sobre novos institutos, observando: a legitimação dos efeitos das relações jurídicas privadas no âmbito comunitário (função social); a efetividade dos institutos jurídicos mediante a abertura sistêmica e mobilidade do julgador (concretude); a exigência inarredável dos valores éticos (boa-fé, bons costumes e equidade). Daí dizer sobre os inerentes postulados fundantes: socialidade, operabilidade e eticidade[14]. Essa maior participação dos operadores também foi vindicada na efetividade das legislações inerentes ao regime de direito público, como no caso da Lei de Improbidade Administrativa (artigo 11), Estatuto da Cidade, Serviço Único de Saúde, Lei de Transparência (por exemplo).

Apesar disso, a legislação ora tratada tem viés de maior contenção no exercício de decidibilidade dos diversos agentes jurídicos (administradores, controladores e juízes), obstaculizando juízos lastreados em "valores abstratos" e não comprometidos com a análise consequencial. Essas precipitações demonstram o Direito como movimento[15], em constante dualismo pendular[16]: do Direito humanista-solidário ao Direito financista-reservado (e, que na verdade, deveriam atuar harmonicamente).


[1] SUNDFELD, Carlos Ari; MARQUES NETO, Floriano de Azevedo. Uma nova lei para aumentar a qualidade jurídica as decisões públicas e de seu controle. In: Contratações públicas e seu controle. Carlos Ari Sundfeld (Org.) São Paulo: Malheiros, 2013, p. 277-285. Os passos iniciais da presente alteração legislativa derivam de pesquisa da Sociedade Brasileira de Direito Público e de Grupo Público da FGV–SP.
[2] NEVES, Gustavo Kloh Muller. Os princípios entre a teoria geral do direito e o direito civil constitucional. In: RAMOS, Cármen Lúcia Silveira; TEPEDINO, Gustavo; BARBOZA, Heloisa Helena; GEDIEL, José Antônio Peres; FACHIN, Luiz Edson; MORAES, Maria Celina Bodin de. (Org.). Diálogos sobre Direito Civil: construindo a racionalidade contemporânea. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 18.
[3] CAETANO, Marcello. Princípios fundamentais do direito administrativo. Coimbra: Almedina, 2010, p. 20. Vale dizer: “possibilidade de elaboração de uma teoria geral do Direito Administrativo, independente de qualquer direito positivo determinado, mas tendo em conta o maior número possível de sistemas nacionais”.
[4] LORENZETTI, Ricardo Luis. Fundamentos de derecho privado: Código Civil y Comercial de la Nación Argentina. Buenos Aires: La Ley, 2016, p. 22.
[5] SUNDFELD, Carlos Ari. Administração e justiça: um novo equilíbrio? In: Direito administrativo para céticos. São Paulo: Malheiros, 2014, p. 317-340.
[6] BENTO, Leonardo Valles. Governança e governabilidade na reforma do Estado: entre eficiência e democratização. Barueri: Manole, 2003.
[7] CANOTILHO, José Joaquim Gomes. ‘Brancosos’ e interconstitucionalidade: itinerários dos discursos sobre a historicidade constitucional. 2ª ed. Coimbra: Almedina, 2008, p. 329.
[8] MARTINS, Fernando Rodrigues Martins. Os lugares do direito do consumidor na pauta humanitária: em busca do modelo nomo-global de promoção aos vulneráveis. In: Novas tendências do direito do consumidor. Rede Alemanha-Brasil em Direito do Consumidor. Cláudia Lima Marques e Beate Gsell (org.). São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015, p. 88-119.
[9] Bobbio, Norberto. A era dos direitos. Trad. Carlos Nelson Coutinho. 7ª reimp. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004.
[10] DWORKIN, Ronald. A matter of principles. Harvad University Press. 1985.
[11] ENGISH, Karl. Introdução ao pensamento jurídico. 8ª ed. Trad. João Baptista Machado. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2008, p. 188.
[12] ARNAUD, André-Jean. O direito traído pela filosofia. Trad. de Wanda de Lemos Capeller e Luciano Oliveira. Porto Alegre: Fabris, 1991.
[13] ADEODATO, João Maurício. Filosofia do direito: uma crítica à verdade na ética e na ciência (em contraposição à teoria de Nicolai Hartmann). São Paulo: Saraiva, 2013, p. 309.
[14] REALE, Miguel. Exposição de motivos apresentada do Supervisor da Comissão Revisora e Elaboradora do Código Civil, 16 de janeiro de 1975.
[15] BARBOZA, Heloísa Helena. Prefácio. In: Impactos do novo CPC e do EPD no direito civil brasileiro. Marcos Ehrhardt Jr (Coord.). Belo Horizonte: Fórum, 2016.
[16] COMPARATO, Fábio Konder. O dualismo pendular do direito brasileiro. In: Aspectos jurídicos da macroempresa. São Paulo: Ed. RT, 1970. p. 95-105.

Autores

  • Brave

    é promotor de Justiça em Minas Gerais, professor na Universidade Federal de Uberlândia (UFU), doutor e mestre em Direito das Relações Sociais pela PUC-SP e pesquisador científico no Instituto Max Planck Institute for Comparative and International Private Law (Alemanha). Diretor do Brasilcon, membro do Instituto Brasileiro de Direito Civil, associado fundador do Instituto de Direito Privado e coordenador regional do Procon-MG.

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