Inversão de valores

"Enquanto juízes têm destaque, advogados são colocados em xeque"

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1 de outubro de 2018, 17h51

Spacca
O advogado vive atualmente numa situação de fragilidade. Enquanto juízes estão em destaque, a advocacia é posta em xeque como raramente o foi. Por isso, o recém-eleito presidente do Instituto dos Advogados de São Paulo (Iasp), Renato de Mello Jorge Silveira, considera que um de seus encargos será garantir a preservação dos direitos e prerrogativas dos advogados.

“Vivemos num mundo que está se judicializando demais. Esse firmar de posição do advogado em relação às prerrogativas, aos interesses que ele defende, ao múnus que ele desempenha são fundamentais”, afirma em entrevista à ConJur.

Silveira é um crítico da importação de institutos jurídicos estrangeiros sem maiores reflexões e debates públicos. É o que ele diz que aconteceu com a delação premiada, diretamente trazida dos Estados Unidos. 

“Tínhamos um Direito Penal mais clássico e atualmente há um Direito Penal com forte influência de institutos norte-americanos, que são estranhos à advocacia e a defesa tradicional. Não significa criticar a ideia anticorrupção, significa um retrato de como instrumentos jurídicos estão sendo utilizados”, afirma.

Aos 49 anos, Silveira acaba de ser eleito para comandar o Iasp até 2021. Ele é conhecido pela discrição e por seu entusiasmo pela pesquisa acadêmica. É advogado, doutor e livre-docente em Direito Penal pela Faculdade de Direito da USP, onde também foi vice-diretor.

Leia a entrevista:

ConJur — O senhor assume a presidência do Iasp após uma gestão que durou seis anos. O que pretende fazer?
Renato Silveira —
O Iasp tem uma preocupação cultural muito forte e tem que se colocar ainda mais à frente, tem que oferecer cursos a distância, tem de disponibilizar outras coisas não só aos sócios, como também à comunidade jurídica. Ao lado disso, é muito importante que o instituto esteja, junto da Ordem dos Advogados e da Associação dos Advogados de São Paulo, ombreado na defesa de alguns pontos essenciais à advocacia e a própria democracia. Questões que provavelmente vão ser bastante suscitadas nestes próximos anos.

ConJur — Qual é a expectativa para a próxima gestão da OAB-SP?
Renato Silveira —  
A OAB historicamente tem um papel que vai além do interesse de proteção dos advogados. Tem uma função de destaque na sociedade e devia ser ainda mais aproveitada. Há um movimento que busca rediscutir a Ordem dos Advogados do Brasil e isso provavelmente vai acontecer. Mas me preocupa um pouco o clima belicoso que isso pode gerar num momento político delicado que vivemos. A ideia de valorização da democracia e, mais do que tudo, a ideia de defesa das prerrogativas dos advogados deverão ser temas de pauta.

ConJur — Como o senhor vê o crescente movimento de criminalização da advocacia?
Renato Silveira — Existe uma inegável confusão de clientes com seus advogados. A função do advogado não se mistura com o que fez o cliente, pelo contrário, o advogado está ali para exercer sua profissão e, mais do que tudo, para ofertar ao cliente um julgamento justo, ponto. 

ConJur — O que causou isso?
Renato Silveira —
Em primeiro lugar, o momento está judicializado demais. Os juízes estão tendo um destaque que nunca tiveram e estão proporcionando um ativismo judicial que nunca houve. O Ministério Público também tem um destaque que raramente teve e a advocacia é posta em xeque como raramente foi. Nessa inversão de valores que vivemos atualmente, me parece que as instituições devem alinhar cada vez mais para tentar minimamente colocar uma ordem nesse campo de jogo.

Lembro, por exemplo, que em meados de 2004 existiu algo parecido com a invasão dos escritórios de advocacia. Também naquele momento existiu uma dúvida e uma confusão do advogado com a figura do cliente. Foi criticada a própria atuação dos advogados e, na situação específica, as entidades de classe fizeram frente a isso. O próprio ministro da Justiça à época [Márcio Thomaz Bastos] percebeu que algo estava errado e começou a disciplinar quando, onde e de que forma poderiam se dar busca e apreensões em escritórios de advocacia. O momento hoje é até mais grave do que aquele e requer mais do que tudo a união e a preocupação conjunta das associações, dos institutos e da OAB.

ConJur — Como avalia a atuação do juiz Sergio Moro?
Renato Silveira —
A grande questão em torno de vários julgamentos que se dão em Curitiba é sobre a mudança de abordagem do Direito Penal. Tínhamos um Direito Penal mais clássico e atualmente há um Direito Penal com forte influência de institutos norte-americanos, que são estranhos à advocacia e a defesa tradicional. Isso acontece em relação a prova, dolo, cegueira deliberada, colaboração premiada, entre outros. Do ponto de vista do advogado, essa mudança gerou efeitos sem dúvida nenhuma.

ConJur — Efeitos positivos ou negativos?
Renato Silveira —
Não sei se necessariamente efeitos corretos, porque várias decisões são, no mínimo, criticáveis ou duvidosas. De qualquer forma, não é uma tendência isolada no Brasil já que esse mesmo cenário é visto em diversos países da Europa. Há juízes que usam esses instrumentos em vários grandes casos mundo afora. Tenho críticas e já debati com o próprio Sergio Moro há alguns anos, porque tenho críticas bastantes severas sobre várias questões por ele tratadas. Não significa criticar a ideia anticorrupção, significa um retrato de como instrumentos jurídicos estão sendo utilizados.  

A cegueira deliberada e a delação premiada, por exemplo, me incomodam. A delação foi colocada na lei em 2013 de forma aberta demais, possibilitando interpretações muito grandes. É preciso estreitar o foco e pontuar, definir o que pode ou não ser feito, de que forma isso pode ser feito, como deve ser tratado etc. Não acho que sou eu o dono da verdade, só que esses instrumentos e institutos precisam ser mais discutidos e precisam de limites em determinadas atuações, principalmente em como isto repercute no próprio julgamento. 

ConJur — É preciso reformar o Código Penal e a Lei de Execuções Penais?
Renato Silveira —
Nosso processo penal já está aí de anos com uma série de alterações. É preciso muito debate e já existe um projeto de reforma do Código de Processo Penal que contou com a participação de inúmeros professores, inclusive da faculdade de Direito da USP. Temos um número bastante excessivo de prisões preventivas, é verdade. Mas há dificuldade em mudar a mentalidade do próprio aplicador da lei, isto é, não é uma penada legislativa que resolve para mudar o rumo do trânsito judicial.

Há duas linhas de pensamento, da reforma global e reformas pontuais. A ideia da reforma global tem uma inegável vantagem que é fazer uma alteração harmônica, onde as coisas se encaixam e se sucedem de uma forma adequada. Já com reformas pontuais voltamos ao caso da delação premiada, em que um instituto entra em choque com o próprio sistema.

ConJur — O Ministério Público tem atuado da melhor maneira no campo do Direito Penal Econômico?
Renato Silveira —
Há quase 20 anos, advogados, juízes e promotores tinham sido alfabetizados em Direito Penal clássico, que é o do furto e do roubo. Este novo instrumental, que a gente está chamando de Direito Penal Econômico é diferente em vários sentidos, em relação ao dano, ao prejuízo, aos agentes, o dolo. E os advogados daquela época sabiam explorar muito bem essa diferença de planos. Ao avançar quase duas décadas, o que podemos perceber é que o Ministério Público e também o Judiciário foram buscar aperfeiçoamento, com cursos e especializações sobre essas diferenças.

O MP se aperfeiçoou bastante nesse período de forma invejável para trabalhar com cenários específicos. É evidentemente que existem críticas, o embate quase que institucional é equivocado, a gente tem muito mais é que pregar a harmonia entre Ministério Público, advocacia e magistratura.

ConJur — O senhor é um crítico à judicialização desses conflitos.
Renato Silveira —
A judicialização é muito complicada porque de repente tudo é chamado ao campo do Direito. E eu tenho muitas dúvidas se isso deve ser feito, se o ativismo judicial que a gente encontra hoje está de fato correto. Sei que já escapamos há algum tempo da ideia do positivismo, ou seja, da obediência cega à lei. Hoje a interpretação das normas é mais principiológica. Mas deve haver alguns limites a essa interpretação tão elástica para não possibilitar subjetivismos e evitar que alguns magistrados causem injustiças significativas.

ConJur — Os presidenciáveis estão propondo alterações no Judiciário, como mandato para ministros do Supremo Tribunal Federal e o fim ou diminuição dos “penduricalhos”. O senhor acha necessário?
Renato Silveira —
A alteração no número de ministros do Supremo não é exatamente novidade no Brasil, já tivemos vários momentos em que isso aconteceu, e não necessariamente de boa lembrança. Não acredito que isso tenha que ser feito, não seria uma medida saudável.

Outras medidas, como racionalizar alguns direitos ou algumas expectativas de direitos das carreiras jurídicas podem ser pensadas, como mandatos fixos para os ministros ou as formas de escolha dos ministros. Acontece que isso de modo algum pode ser dito ou pensado de inopino, isso aqui requer uma racionalidade. É importante inclusive espelhar em vários exemplos estrangeiros para saber exatamente o que é melhor ou o que queremos e qual Judiciário queremos.

ConJur — Quais são as dificuldades da nova geração que entra na faculdade de Direito?
Renato Silveira —
A grande dificuldade da ideia formacional do Direito hoje, nas mil e tantas faculdade de Direito que existem, é muito mais uma questão do aluno que chega na faculdade com um certo déficit de leitura e de base para poder acompanhar o curso, do que outra coisa qualquer. Talvez isso e, é óbvio, a mercantilização do ensino — que me é muito duro dizer —, prejudicam esse universo de pessoas que saem da faculdade. Isso explica, em parte, o altíssimo número de pessoas que não passam no Exame de Ordem. As razões da criação do Exame, no começo dos anos 1970, quando o universo de faculdades era mínimo, já era no sentido de que precisava depurar um pouco os advogados que entrariam no mercado. Ou seja, não se podia aceitar pessoas com uma formação deficitária. Isso hoje é algo ainda mais grave, o número de faculdades que nós temos e de pessoas que não são aprovadas no exame de Ordem é muito preocupante.

ConJur — Por que a quantidade de faculdades de Direito influencia nisso?
Renato Silveira —  
O advogado tem uma missão, tem o papel de defesa de interesses, não só individuais, como da própria sociedade, que não pode se ver afrontada ou colocada em perigo por profissionais mal preparados. Melhorar o ensino de base ajudaria sem dúvida. Não sei se faz sentido esse número de faculdade de Direito que nós temos, não é? Eu sei que a profissão é apaixonante, é a mais bela das profissões… mas nós formamos um número excessivo, é preocupante o número de pessoas que são colocadas no mercado, ou que tentam ir ao mercado e não conseguem habilitação para tanto.

ConJur — Quem deve fiscalizar os cursos de Direito, a OAB ou o Ministério da Educação?
Renato Silveira —
A participação da OAB é muito interessante. Para a criação dos cursos, a Ordem já dá uma opinião ao Ministério da Educação, que talvez seja uma situação que possa ser ainda mais aprimorada. A OAB também dá selos de excelência para determinados cursos e isso pode ser aquilatado, não no papel de fiscalização, mas sim de contribuição mais efetiva com os órgãos oficiais para que haja maior excelência dos cursos.

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