Opinião

O que temos a aprender com o sistema processual penal do Uruguai

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28 de novembro de 2018, 5h16

Em julho de 2016, estivemos eu e outros professores de Direito Processual Penal em Santiago do Chile. Foi uma grande experiência proporcionada pelo Centro de Estudios de Justicia de la Américas (Ceja), pelo Instituto Baiano de Direito Processual Penal (IBADPP), pelo Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim) e pelo Instituto Brasileiro de Direito Processual Penal (Ibraspp). Participamos do "Programa de Herramientas para la Implementación de un Sistema Acusatorio en Brasil". Grande oportunidade também o foi para aprendermos com os chilenos.

Neste ano, mais exatamente entre os dias 15 e 17 de novembro, voltamos a outro país da América Latina, desta vez o Uruguai, que recentemente inaugurou, desde a vigência de um novo Código de Processo Penal, um modelo processual do tipo adversarial ou acusatório. Desta vez, a iniciativa da visita coube ao Observatório da Mentalidade Inquisitória, desde a liderança do nosso comandante em chefe, o professor Jacinto Nelson de Miranda Coutinho. Foi uma experiência, tal como fora a do Chile, igualmente extraordinária.

Desde logo, assinale-se, que o antigo Código de Processo Penal uruguaio, vigente desde 1980 (Decreto-ley 15.032, de 7 de julho de 1980), deitava bases no princípio inquisitivo, predominando, a partir da fase investigatória, a figura do juiz, que participava ativamente da investigação preliminar e da gestão da prova. Era o verdadeiro juiz-inquisidor!

No dia 1º de novembro de 2017 entrava em vigor a Ley 19.293, de 19 de dezembro de 2014, alterando substancialmente o processo penal uruguaio, desde a fase da investigação criminal — agora a cargo exclusivamente do Ministério Público — até os julgamentos em primeiro e em segundo graus, privilegiando-se, dentre outros, o princípio da oralidade, cabendo a gestão da prova exclusivamente às partes, como tem que ser sob o princípio dispositivo.

Ficou perfeitamente demonstrado, de maneira teórica e na prática também, como se estrutura um processo penal acusatório/adversarial, a partir de três audiências, todas realizadas sempre sob o princípio da oralidade.

A primeira, chamada audiencia de formalización, ocorre após o Ministério Público solicitar ao juiz a “formalização” da investigação criminal, nos termos do artigo 45-g, do Código de Processo Penal uruguaio. Nessa audiência, ouvidas as partes e, eventualmente, a vítima (se ela compareceu), o juiz decidirá acerca da legalidade da prisão (se o imputado estiver preso, óbvio), da admissibilidade da investigação pelo Ministério Público, do pedido de eventuais medidas cautelares (inclusive a prisão preventiva, necessariamente, concebida como ultima ratio), além de quaisquer outros pedidos (artigo 266.6). Observa-se que o juiz não decide de ofício, inclusive acerca da prisão preventiva (artigos 216 e 230).

A segunda, trata-se da audiencia de control de acusación, realizada também na presença das partes e da vítima (se esteve presente àquela primeira audiência). Nesta etapa, a defesa poderá contestar a acusação (apontando-se-lhe defeitos formais), opor exceções, pedir a extinção do procedimento (sobreseimiento) e propor acordos (artigo 268.1).

A propósito, este sobreseimiento é pedido pelo Ministério Público em três hipóteses: a) quando, esgotadas todas as possibilidades probatórias, não surgiram provas plenas de que o fato imputado existiu ou que o imputado tenha sido o seu autor; b) quando o fato não constitua crime; e c) quando esteja comprovada categoricamente (de modo indudable) que o fato foi praticado sob o pálio de uma excludente de ilicitude, de culpabilidade, de punibilidade ou outra causa extintiva do delito ou da pretensão penal, nos termos da lei penal uruguaia. Aliás, segundo o Código de Processo Penal, esta extinção excepcional do processo (que poderíamos chamar de uma verdadeira crise de instância[1]) terá os mesmos efeitos de uma sentença absolutória (artigos 45-h, 129, 130 e 132).

Por fim, prevista está a denominada audiencia de juicio oral, que se realizará de forma ininterrupta, admitindo-se a sua suspensão apenas por razões de absoluta necessidade e, ainda assim, por um tempo mínimo não excedente de dez dias, salvo casos excepcionais e devidamente fundamentados. Nesta audiência serão realizados os debates orais, desde as primeiras alegações das partes (alegatos de apertura), a produção da prova, até as alegações finais (alegatos finales), além da sentença, por fim. Após as primeiras alegações (orais) e antes das alegações finais (também orais), as provas serão produzidas na própria audiência, sob os princípios dispositivo, da imediatidade e concentração dos atos processuais, da celeridade e da publicidade. Por último, ditar-se-á a sentença, salvo se a causa for complexa quando, então, a decisão será tomada, também em uma audiência especialmente designada, no prazo improrrogável de 15 dias (artigos 270 e 271).

Observa-se que o Código de Processo Penal do Uruguai prevê um processo abreviado a ser observado exclusivamente para determinados crimes, caso em que poderá ser celebrado um acordo entre o Ministério Público e o imputado (obrigatoriamente assistido pelo seu defensor, público ou privado), resultando, acaso exitoso, na obrigação do imputado cumprir determinada pena privativa de liberdade ou de liberdade vigiada, ou ambas, uma após a outra (artigos 272 e 273). Importante salientar que esta forma consensual de resolução de conflitos encontra no Uruguai uma aplicação muito ampla, diferentemente do que ocorre em outros países da América do Sul e da América Central[2]. Aqui no Brasil, evidentemente, que a barganha penal precisa ser vista com muitíssimas cautelas, exatamente para evitar que alguém cumpra uma pena sem que haja prova de que tenha sido, efetivamente, o autor do crime. A nossa (desastrosa e desanimadora) experiência com a transação penal, prevista no artigo 76 da Lei 9.099/95, impõe que vejamos experiências estrangeiras tais como esta com todas as cautelas! Estamos por aqui, afinal de contas, com o nosso Ministério Público e o nosso Poder Judiciário. “É preciso estar atento!”

De toda maneira, neste curto — porém proveitoso — período de convívio com os magistrados uruguaios, revelou-se, mais uma vez, que não basta apenas a substituição de um código por outro, mas necessária se faz uma verdadeira mudança jurídico-cultural, para que, efetivamente, tenhamos uma reforma substancial do processo penal.

A mudança legislativa é apenas um (necessário) começo, mas não um fim em si mesma, pois ela não basta. Sem essa visão, torna-se impossível que magistrados, membros do Ministério Público e defensores assumam as novas funções exigidas pela reforma de um código.

Pode-se discordar de um ponto ou de outro, como alguns o fizeram (no caso, por exemplo, da ampla possibilidade de acordos penais), mas a compreensão de todos (eu arrisco afirmar) é que o Brasil está muitíssimo atrasado no que concerne ao processo penal, não somente em razão de um Código de Processo Penal caduco e com ares inquisitivos, mas também por força de uma mentalidade inquisitorial da qual os participantes do processo penal brasileiro não conseguem se libertar.

Assim como ocorrera no Chile há poucos anos (e, de resto, em toda a América Latina e a Central, a começar pela Guatemala), os uruguaios foram muito corajosos: passaram de uma estrutura inquisitorial, como a nossa, e hoje atuam sob as bases de um sistema acusatório. Nada obstante alguma resistência, souberam, com inteligência e estratégia, transpor os naturais obstáculos. Os processos já iniciados sob a velha ordem seguiram assim, observando-se os antigos dispositivos processuais. Já os vindouros obedeceram ao novo Código de Processo Penal.

Ao final e ao cabo, sucedeu em mim a mesma conclusão a que cheguei quando há dois anos estivemos (eu e meus colegas) no Chile: no Brasil, antes mesmo da reforma (e, fundamentalmente, depois dela), o magistrado brasileiro precisa se imbuir do seu papel no processo penal adversarial. Aqui (neste sistema), o juiz é juiz e ponto. Isso foi dito para nós muito claramente algumas vezes. Se algum magistrado tem o pendor para acusar, produzir prova, investigar, buscar a tal "verdade real", que largue a magistratura e siga a carreira do Ministério Público. Como diz Alberto Binder, “os juízes que conheço me dizem que os sistemas acusatórios são muito mais divertidos”[3].

Aliás, eles nem entendem como pode ser diferente em um sistema acusatório. Não conseguiam nem sequer compreender algumas perguntas que eram feitas por nós brasileiros, simplesmente porque soavam incompreensíveis.

O juiz brasileiro precisa passar umas férias no Uruguai. Mas aproveitar uns dias que sejam e estudar (na teoria e na prática) como funciona a Justiça criminal e como se lida quando alguém comete um crime e o Estado tem que o punir, desde o início da persecução penal. Tudo muito natural, "dentro da lei", sem ódio, com imparcialidade, sabendo o papel do Ministério Público e respeitando a defesa.

O Ministério Público tem a responsabilidade de comandar a investigação criminal (artigo 45-a), atender e proteger as vítimas e testemunhas (artigo 45-i). O ônus da prova no juicio oral cabe a ele. Só a ele e à defesa. O juiz nem quer saber disso. Acusação e defesa ocupam o mesmo espaço, inclusive nas salas das três audiências, em primeiro e no segundo grau. Não há essa coisa de se pôr ao lado do magistrado. Como? Ele não é parte, tal qual a defesa? Ah, lá também não se usa toga ou beca e todos, nada obstante, respeitam-se. O pronome de tratamento é muito cortês. Não é esnobe, como aqui.

A oralidade é algo especialmente privilegiado. Os debates dão-se imediatamente entre o Ministério Público e a defesa, sem deslealdades e frente aos juízes. Tudo é decidido na mesma audiência. Todos estão preparados para resolverem quaisquer questões jurídicas surgidas durante as audiências. O contraditório estabelece-se de maneira muito transparente. O Ministério Público respeita a defesa e vice-versa. Não há ocultação de provas, tampouco espaço para vaidades. Tudo é muito sereno e respeitoso. Cada um cumpre o seu dever. O acusado é muitíssimo respeitado, aliás.

De toda maneira, não adianta mudar a lei se não mudarmos a cultura jurídico-penal. Ela é inquisitiva, porque a nossa colonização é portuguesa, europeia. Os nossos Juízes são inquisidores e o nosso Ministério Público tem uma visão inteiramente distorcida do garantismo penal.

Para finalizar, devemos atentar para a lição de Alberto Binder: “Estabelecer o sistema acusatório ou adversarial e deixar para atrás o sistema inquisitorial consiste em modificar o modo como a justiça penal participa na gestão dos conflitos”.

Para ele, a adoção plena do sistema acusatório “permite-nos abandonar o modo inquisitorial que, com seu formalismo, sua negligência com as pessoas, seu sigilo e desprezo pela atividade das partes, demonstrou ser tanto um sistema ineficiente quanto arbitrário”4.


[1] José Frederico Marques identificava no processo penal a chamada “crise de instância” ou, como preferia Carnelutti, “crise do procedimento”, consistente, nas palavras do mestre italiano, em “um modo de ser anormal do procedimento, pelo qual lhe é paralisado o curso, temporária ou definitivamente”. Também alguns referiam o fenômeno como “crise processual”, como era o caso de José Alberto dos Reis, citado por Frederico Marques. Haveria três espécies de crises, a saber: a suspensão da instância, a absolutio ab instantia e a cessação da instância (Elementos de Direito Processual Penal, Volume II, Campinas: Bookseller, 1998, página 218).
[2] Esta afirmação, bastante pertinente, foi feita em postagem em um grupo de WhatsApp, no dia 19 de novembro de 2018, por Leonel González Postigo, diretor de Capacitação do Centro de Estudos de Justiça das Américas (Ceja).
[3] BINDER, Alberto, Estudios sobre el nuevo Proceso Penal – Implementación y puesta en práctica, Montevideo/Uruguay: Fundación de Cultura Universitaria, 2017, p. 21.
4 BINDER, Alberto, Código del Proceso Penal – Reflexiones sobre el nuevo sistema procesal penal en Uruguay, Montevidéu: Universidad de Montevideo – Facultad de Derecho, 2018, p. 30.

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