Opinião

TCU como regulador de segunda ordem, em vez de controlador

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27 de novembro de 2018, 6h10

É tarefa das agências reguladoras dos setores de infraestrutura, além da função normativa, estruturar, implementar e fiscalizar as relações contratuais entre o Estado e a iniciativa privada destinadas a viabilizar empreendimentos públicos. A regulação administrativa, portanto, dá-se tanto através da produção de normas como por meio dos editais de licitação e contratos[1].

O TCU, além de controlar a gestão da infraestrutura quando realizada diretamente, por meio de autarquias comuns e/ou empresas públicas, tem exercido intensa fiscalização também sobre o modelo de intervenção indireta — contratos públicos de parceria regulados por agências.

No Acórdão 1.174/2018, de 23/5/2018, o Plenário do TCU, mediante instrução da SeinfraRodoviaAviação e sob a relatoria do ministro Bruno Dantas, analisou o primeiro estágio do acompanhamento da concessão do lote rodoviário denominado Rodovia de Integração do Sul (RIS)[2], em conformidade com o rito da Instrução Normativa 46/2004.

De acordo com a sistemática prevista nas instruções normativas 27/98 e 46/2004, o primeiro estágio de acompanhamento é centrado na análise da viabilidade do empreendimento, tendo se tornado uma praxe também a análise das minutas de edital e do contrato de concessão.

A análise levada a efeito no caso em referência faz uma espécie de balanço acerca da experiência brasileira em concessões rodoviárias, a partir de um apanhado das recomendações e determinações que o TCU fez nas etapas anteriores e dos impactos que tiveram na evolução do modelo concessório.

Para endereçar os riscos identificados no projeto de concessão da RIS, a SeinfraRodoviaAviação propôs ao Plenário a adoção de 32 determinações e 1 recomendação, bem como que fosse proibida a realização da licitação enquanto a ANTT não implementasse todas as determinações.

Paralelamente, fez uma proposição extremamente radical, no sentido de que o tribunal impedisse a ANTT de celebrar qualquer concessão enquanto não se estruturasse de forma adequada e compatível com a função de fiscalizar os contratos.

Dessa última proposta da unidade técnica depreende-se a visão que o tribunal, ou pelo menos parte dele, tem do alcance das competências e do poder do TCU. A unidade técnica do tribunal encarregada da fiscalização das ações de infraestrutura dos setores rodoviário e aeroportuário entendeu que o órgão de controle externo poderia impedir o Poder Executivo de celebrar qualquer contrato de concessão rodoviária. A proposta, contudo, não foi acolhida pelo Plenário.

Em relação aos riscos apontados, o TCU tem entendido que um dos problemas centrais das concessões rodoviárias diz respeito ao elevado índice de inexecução contratual por parte das concessionárias[3], somado à circunstância de serem frequentemente incluídos novos investimentos nos contratos, que acarretam os reajustes das tarifas de pedágio, a despeito do inadimplemento de obrigações previstas originalmente[4].

Diante da previsão de que a inclusão de novas obras ensejaria o reequilíbrio econômico-financeiro por meio da aplicação do “fluxo de caixa marginal”[5], os técnicos do TCU deixaram consignado que a metodologia preconizada pela ANTT conduz, invariavelmente, a um notável desequilíbrio da avença em desfavor dos usuários[6].

Interessante perceber, ainda, que a metodologia de fluxo de caixa marginal foi desenvolvida pela ANTT a partir de provocações do próprio TCU, que inclusive avaliou positivamente[7] a Resolução ANTT 3.651/2011, que disciplinou a sistemática. Assim, conforme observação de Maurício Portugal, pode-se dizer que o TCU foi partícipe da decisão que levou à utilização do fluxo de caixa marginal no caso da RIS[8].

A unidade técnica especula, assim, em torno da possibilidade de abrir-se a oportunidade para que obras e serviços, que sabidamente seriam necessários ao longo do contrato, sejam propositalmente omitidos do objeto da licitação e posteriormente incluídos por meio de aditivos. Argumenta que esse risco seria especialmente grave nos procedimentos para manifestação de interesse em que a empresa que elabora os estudos de viabilidade pode participar do certame.

De uma maneira geral, as fragilidades apontadas pela unidade técnica dizem respeito a aspectos relacionados com a flexibilidade contratual da concessão. A fiscalização, assim, é influenciada por uma visão que aproxima os contratos de concessão dos contratos de obras públicas. Além disso, não raras vezes a SeinfraRodovia propõe, com base em princípios jurídicos ou conceitos vagos e indeterminados, que sejam barradas ou alteradas as soluções contratuais construídas pela agência reguladora.

Antes da apreciação pelo Plenário, embora a ANTT tivesse, em um primeiro momento, rebatido os apontamentos feitos pela SeinfraRodovia, a agência passou a aceitar parte das proposições da unidade técnica[9] e apresentou uma série de medidas destinadas a endereçar os riscos apontados, tais como: i) vedação à inclusão de investimentos em ampliação de capacidade e melhorias nos primeiros e nos últimos cinco anos do contrato; ii) inclusão de novos investimentos restrita às revisões quinquenais; iii) instituição de estoque de obras, com vedação à inclusão de obras de melhorias por fluxo de caixa marginal (FCM) antes de seu término; iv) estabelecimento de limitações e condições para prorrogação do prazo contratual; dentre outras.

A agência não concordou, contudo, com a obrigação de estipular no contrato os objetos que não poderiam vir a ser incluídos ou excluídos posteriormente, tendo em vista a impossibilidade de se fazer essa previsão em relação a um contrato de longo prazo, de necessidades dinâmicas e mutáveis. Defendeu, assim, a flexibilidade e mutabilidade dos contratos de concessão, afastando destes o tratamento que se costuma conferir aos contratos administrativos comuns.

O Plenário, seguindo a posição do representante do MP, embora tenha concordado com a necessidade de aprimoramento das regras contratuais, deixou de acolher a proposta de estipulação dos objetos que não poderão ser incluídos ou excluídos posteriormente, justamente por entender que uma regulamentação demasiadamente exaustiva poderia atribuir rigidez excessiva a um contrato de longo prazo.

O poder de influência do TCU na modelagem dos projetos de infraestrutura fica bastante evidente pela simples constatação de que a ANTT, diante do relatório da SeinfraRodoviaAviação, antes mesmo de qualquer deliberação do Plenário, acolheu 7 das 32 determinações propostas pela unidade técnica e sinalizou que outras 12 poderiam ser atendidas. Apesar da oposição apresentada pela agência e por integrantes do governo, os órgãos responsáveis pelo projeto acabaram buscando convergir com o TCU em relação a várias questões, para viabilizar e acelerar a realização da concessão, e para evitar sanções pessoais, certamente.

No caso em análise, depois que a agência decidiu se alinhar a várias das posições da unidade técnica, o Plenário acabou manifestando certa deferência ao regulador em relação a alguns dos temas remanescentes, embora ainda tenham sido expedidas 23 determinações e quatro recomendações.

O que parece emergir da análise de casos como este é que o TCU acaba funcionando como uma espécie de revisor geral da administração pública, papel que não lhe foi reservado pelo Direito brasileiro[10]. Basta ver que o tribunal faz uma análise microscópica de toda a modelagem e estrutura contratual da concessão e decide, ponto a ponto, se “aceita” ou não a opção do regulador. Mesmo quando diz manifestar deferência à posição do regulador, o que está, na prática, é ratificando a opção regulatória, por com ela concordar, ou pelo menos não possuir uma convicção formada em sentido contrário. Em vez de figurar como controlador de segunda ordem11, acaba fazendo as vezes de regulador de segunda ordem.

*Este texto foi produzido no âmbito do Observatório do TCU, projeto de pesquisa do Grupo Público (FGV Direito SP e SBDP)


[1] SUNDFELD, Carlos Ari. Direito Público e Regulação no Brasil. In: GUERRA, Sérgio (org.). Regulação no Brasil: uma visão interdisciplinar. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2014.
[2] Composto das rodovias BR-101/RS, BR-290/RS, BR-386/RS e BR-448/RS.
[3] O quadro de inexecuções das obrigações contratuais assumidas pelas concessionárias da 1ª e 2ª etapas de concessões, no tocante às obras de ampliação de capacidade e melhorias, foi apresentado nos votos condutores dos acórdãos 283/2016-Plenário e 943/2016-Plenário, ambos de relatoria do ministro Augusto Nardes.
[4] Eis o argumento da Seinfra: “além de afrontar o dever de licitar e os princípios a que a Administração está submetida, notadamente a impessoalidade e a eficiência, o mecanismo favorece um comportamento oportunista dos concessionários, que não raro apresentam propostas agressivas nas licitações, deixam de executar as intervenções previstas originalmente no contrato de concessão, e alavancam seus ganhos por meio da inserção de novas obras nos contratos”.
[5] Resolução ANTT 3.651/2011.
[6] A unidade técnica argumenta que o fluxo de caixa marginal era apropriado apenas para a 1ª etapa de concessões, cujos contratos foram celebrados com taxas internas de retorno muito elevadas, de maneira que a modelagem resultava na inclusão de novos investimentos em condições desfavoráveis ao interesse público. Seria, assim, indevida a aplicação da metodologia aos contratos das 2ª e 3ª etapas, assim como à RIS.
[7] Vide Acórdão 2.759/2012 – Plenário, rel. min. José Múcio Monteiro.
[8] http://www.agenciainfra.com/blog/infradebate-unidade-tecnica-do-tcu-pretende-impedir-concessoes-de-rodovias
[9] Nota Técnica 01/2018/COOUT/SEUINF, da Superintendência de Exploração da Infraestrutura Rodoviária/ANTT, exarada em 11/4/2018, no Processo 50500.352371/2017-68.
[10] SUNDFELD, Carlos Ari; CÂMARA, Jacintho Arruda. Competências de controle dos Tribunais de Contas – possibilidades e limites. In: SUNDFELD, Carlos Ari (org.). Contratações públicas e seu controle. São Paulo: Malheiros, 2013.
[11] No voto condutor do Acórdão 1.703/2004, considerado um leading case do controle das agências pelo TCU, o ministro Benjamin Zymler demarcou a ideia de controle de segunda ordem, ao dizer que a fiscalização do tribunal deve ser sempre de "segunda ordem", sendo seu objeto a atuação das agências reguladoras como agentes estabilizadores e mediadores do jogo regulatório, não devendo, assim, incidir sobre o jogo regulatório em si.

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