Direito Civil Atual

Projetos de lei podem vir a alterar a desconsideração da personalidade jurídica

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26 de novembro de 2018, 8h03

ConJur
É provável que nenhuma outra figura do Direito Civil brasileiro tenha passado por um trajeto permeado por tantas ambiguidades como a desconsideração da personalidade jurídica1. Por um lado, sua beleza é evidenciada pelo importante papel desempenhado pela doutrina pátria desde a aceitação de sua compatibilidade com o Direito brasileiro até o seu desenvolvimento e ulterior reconhecimento da possibilidade de sua inversão. Por outro, testemunhamos o seu uso desmedido, que lamentavelmente contribuiu para o seu desvirtuamento, fonte de crescente insegurança jurídica.

Mais recentemente, dois importantes “acontecimentos” contribuíram sobremaneira para uma maior clareza acerca dos requisitos exigidos para a desconsideração da personalidade jurídica e o seu procedimento. Em primeiro lugar, trata-se do julgamento dos Embargos de Divergência em Recurso Especial 1.306.553/SC, relatado pela ministra Maria Isabel Gallotti, o qual pôs fim às interpretações diametralmente opostas existentes na 3ª e 4ª turmas do Superior Tribunal de Justiça. Ao passo que a 3ª Turma entendia que a desconsideração da personalidade jurídica poderia ocorrer quando constatada a mera insolvência ou dissolução irregular do ente societário, a 4ª Turma, por sua vez, exigia a comprovação do abuso da personalidade jurídica, seja pelo desvio de finalidade ou pela confusão entre os patrimônios do sócio ou administrador e o da sociedade. Concluiu-se que a aplicação da desconsideração da personalidade jurídica com base no artigo 50 do Código Civil exige efetivamente o desvio de finalidade ou a confusão patrimonial. Em segundo lugar, o novo Código de Processo Civil contemplou nos artigos 133 a 137 o Incidente de Desconsideração da Personalidade Jurídica. Ainda que não seja isento de críticas, avançou extraordinariamente ao prever um procedimento a ser observado.

Nessa mesma toada de movimentar o pêndulo em direção a uma maior segurança jurídica, verifica-se a tramitação de projetos de lei aparentemente bem intencionados acerca da desconsideração da personalidade jurídica. Tratam-se dos projetos de lei 3.401/2008, apresentado pelo deputado federal Bruno Araújo (PSDB-PE), e 5.646/2016, de autoria da deputada federal Cristiane Brasil (PTB-RJ).

Crê-se que nenhum diploma brasileiro, por mais bem intencionado que tenha sido, conseguiu de fato captar o espírito e sentido da compatibilidade do Direito brasileiro com a disregard doctrine2, tal como proposto por Rubens Requião no final da década de 19603. Desse modo, o tema ainda carece de melhor tratamento jurídico, motivo pelo qual a iniciativa de novos projetos de lei é, a princípio, louvável.

Mais antigo, o PL 3.401/2008, de autoria do deputado federal Bruno Araújo, repetiu o PL 2.426/2003, do falecido deputado Ricardo Fiúza, que tinha por objetivo instituir um procedimento judicial específico para a desconsideração da personalidade jurídica, assegurando a ampla defesa e o contraditório. O referido projeto tramita há quase uma década perante o Congresso Nacional. Desde sua apresentação na Câmara dos Deputados, foi analisado pela Comissão de Desenvolvimento Econômico, Indústria e Comércio e também pela Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania, ambas da Câmara, vindo a ser aprovada em redação final com pouquíssimas alterações em 2014. Remetido ao Senado Federal, nos termos do Regimento Comum do Congresso Nacional, a proposição legislativa passou a tramitar sob a denominação Projeto de Lei da Câmara 69, de 2014, tendo sido apreciada pela Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania do Senado, em que recebeu parecer favorável, observando-se, no entanto, que muitas das disposições contidas na proposição já haviam sido contempladas pelo então recém-aprovado Código de Processo Civil, de 2015. Com isso, foi apresentada emenda substitutiva geral à proposição, a fim de transformá-la em alterações pontuais ao Código Civil, ao Código de Processo Civil, à Consolidação das Leis do Trabalho e ao Código de Defesa do Consumidor. Em vista das profundas alterações promovidas na proposição, o PLC 69/2014 foi devolvido à Câmara dos Deputados em 2018, tendo retomado a sua tramitação sob a numeração originária (PL 3.401/2008), estando atualmente aguardando o parecer da Comissão de Desenvolvimento Econômico, Indústria, Comércio e Serviço. Caso venha a ser aprovado na Câmara dos Deputados, já tendo sido aprovado no Senado Federal, a proposição poderá seguir para a sanção presidencial para que possa entrar em vigência.

As alterações mais importantes são o acréscimo de dois parágrafos ao artigo 50 do Código Civil, para o fim de que a desconsideração não se aplique aos bens particulares do sócio que não tenha praticado o ato de abuso da personalidade jurídica e para que, nos casos em que a desconsideração for admitida sem que haja abuso da personalidade, os bens de sócio meramente investidor (que não pratica atos de gestão) não sejam alcançados. Tendo em vista que o artigo 50 do CC trata justamente de casos em que se exige o abuso da personalidade, a inclusão do parágrafo 2º gera confusão. Nessa linha, é determinada a inclusão do artigo 137-A do CPC, o qual faz alusão à hipótese prevista na proposta de parágrafo 2º do artigo 50 do CC e estabelece que, salvo em caso de bens de sócios e administradores utilizados na atividade da pessoa jurídica ou em caso de cometimento de fraude pelo sócio, os bens incorporados ao patrimônio pessoal anteriormente ao ingresso na pessoa jurídica devedora ou em outra do mesmo grupo econômico (e os que a eles se sub-rogarem) não poderão ser objeto de constrição. Igualmente, a redação final é truncada e estabelece critérios discutíveis. Por fim, o polêmico parágrafo 5º do artigo 28 do Código de Defesa do Consumidor deverá ser aplicado em harmonia com o teor da proposta de artigo 137-A do CPC.

O PL 5.646/2016, por sua vez, teve a sua tramitação sobrestada em razão do Requerimento 7.805/2017, formulado em Plenário pelo deputado Rogério Marinho (PSDB-RN), requerendo o arquivamento de todas as proposições "que visam alterar a Reforma Trabalhista e a Lei de Terceirização". Desde o protocolo do requerimento, o PL 5.646/2016 não teve qualquer outro trâmite na Câmara dos Deputados.

Da leitura do inteiro teor do projeto de lei, nota-se que a redação final sugerida para os artigos é incompatível com a justificativa apresentada. Isso porque o conteúdo dos artigos propostos é insuficiente para gerar os efeitos pretendidos de segurança jurídica e incentivo ao empreendedorismo. A redação proposta não colmata as lacunas e falhas apontadas na atual legislação. No artigo 28 do Código de Defesa do Consumidor, por exemplo, o termo “má administração” é trocado por “má-fé dos administradores e ou sócios da pessoa jurídica”, o que não resolve totalmente o caráter genérico do artigo. Além disso, a mera insolvência permanece como requisito capaz de ensejar a desconsideração.

Adiante, o projeto de lei propõe o acréscimo do artigo 28-A ao Código de Defesa do Consumidor, cuja idêntica redação foi atribuída ao artigo 135-A a ser acrescido ao Código de Processo Civil (semelhante a proposta do projeto anterior de artigo 137-A), in verbis: “Não será objeto de constrição o bem do sócio que tiver sido incorporado ao seu patrimônio pessoal anteriormente ao seu ingresso na sociedade executada”.

Entende-se ser tal artigo inadequado, pois o conjunto de bens de natureza e origens diversas pertencentes a um sujeito, perfaz uma universalidade jurídica denominada patrimônio, não importando se o bem constrito ingressou em sua esfera jurídica antes ou depois da entrada do sócio na sociedade.

Uma alteração acertada é a proposta de exclusão do §parágrafo 5º do artigo 28 do Código de Defesa do Consumidor, que prevê que “também poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua personalidade for, de alguma forma, obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores”. De fato, é instituída verdadeira responsabilidade ilimitada, contraditória com os princípios que decorrem do próprio fato da personalização da pessoa jurídica. Mesmo reconhecendo que a proteção do consumidor é um direito fundamental, tal parágrafo é exagerado, bem como dogmaticamente e tecnicamente equivocado.

O projeto de lei atribui grande importância à participação do Ministério Público nos pedidos de desconsideração da personalidade jurídica, justificando-se pelo fato de que os abusos praticados muitas vezes constituem crimes. Desse modo, sugere a inclusão no CPC do artigo 135-B com a seguinte redação: “Verificando a presença dos requisitos da lei, somente após ouvido o Ministério Público o juiz decretará a desconsideração da personalidade jurídica”. Discorda-se dessa proposta de acréscimo, por se entender ser desnecessária, uma vez que se o juiz da causa vislumbrar indícios de crimes no caso concreto, tem o dever de informar o Ministério Público, oportunidade na qual este ente poderá participar e contribuir para o esclarecimento dos fatos, o que resultará, ser for o caso, no apenamento futuro da parte. Além disso, devido ao limitado número de recursos pessoais disponíveis no Ministério Público, obrigá-lo a participar de todas as ações que possuem pedido de desconsideração da personalidade jurídica acarretaria em excesso de trabalho e, consequentemente, na morosidade de atuação nos casos mais urgentes.

Dessa forma, e pelos argumentos expostos no presente, depreende-se que as propostas de alteração trazidas pelo PL 5.646/2016 são insuficientes e, portanto, acabam por não atingir a finalidade pretendida.

Segundo o artigo 105 do Regimento Interno da Câmara dos Deputados, devem ser arquivados ao final da legislatura (isto é, em 31 de janeiro de 2019) todas as proposições em tramitação. O próprio regimento aponta exceções, como é o caso de a proposição já ter sido aprovada na própria Câmara ou ter tramitado no Senado Federal. Também prevê, em seu parágrafo único, a possibilidade de desarquivamento nos primeiros 180 dias da legislatura subsequente, a pedido do autor da proposição.

No caso do PL 5.646/2016, não tendo a autora deputada Cristiane Brasil sido eleita para a 56ª legislatura (2019-2022), a tendência é que esta proposição seja arquivada definitivamente, sem possibilidade de que seja desarquivada. Contudo, é comum que proposições anteriores sirvam de inspiração para novos parlamentares, podendo as suas propostas serem resgatadas pelos eleitos em oportunidade futura, servindo de subsídio para as suas proposições.

Com relação ao PL 3.401/2008, já tendo sido aprovado anteriormente pela Câmara dos Deputados e também pelo Senado Federal, não se aplica a regra de arquivamento pelo término da legislatura. A tendência, portanto, é que as alterações promovidas na legislação vigente venham a se tornar lei, caso a Câmara concorde com as alterações já promovidas pelo Senado. É certo que a legislação vigente não é perfeita. Contudo, toda alteração, ainda mais em um campo historicamente espinhoso como o da desconsideração, deve ser analisada com cautela, a fim de que a emenda não saia pior que o soneto.

*Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Roma II-Tor Vergata, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT, UFBA, UFRJ e UFAM)


1 Sobre o tema, consultar: LEONARDO, Rodrigo Xavier. O percurso e os percalços da teoria da pessoa jurídica na UFPR: da desconsideração da pessoa jurídica à pessoa jurídica desconsiderada. In: KROETZ, Maria Candida do Amaral. Direito Civil: Inventário teórico de um século. Curitiba: Kairós, 2012. p. 75-96.
2 XAVIER, Luciana Pedroso; PUGLIESE, William. Soares. O incidente de desconsideração da personalidade jurídica no novo Código de Processo Civil. In: EHRHARDT Jr, Marcos; MAZZEI, Rodrigo. (Org.). Coleção Repercussões do Novo CPC: Direito Civil. Salvador: Juspodivm, 2017, v. 14, p. 337-357.
3 REQUIÃO, Rubens. Abuso de Direito e Fraude através da pessoa jurídica. Revista dos Tribunais. São Paulo: Revista dos Tribunais, p. 12-24, vol. 410, dez. 1969.

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