Opinião

O presidente, o Congresso e o direito internacional dos tratados

Autor

  • Fernando César Costa Xavier

    é professor associado do Instituto de Ciências Jurídicas da Universidade Federal de Roraima (UFRR) professor doutor Nível II da Universidade Estadual de Roraima (Uerr) doutor em Relações Internacionais pela Universidade de Brasília (UnB) e estagiário pós-doutoral no Instituto e Filosofia e Direito da Academia Russa de Ciências em Ecaterimburgo.

25 de novembro de 2018, 5h55

Há ao menos duas questões relativas ao direito dos tratados nas quais assume a maior relevância, no Brasil, a atuação política dos cargos de presidente da República, senador e deputado federal, definidos nas últimas eleições. A primeira tem a ver com a denúncia dos tratados, e a segunda, com a aprovação de tratados de direitos humanos.

Quanto à primeira, recorde-se inicialmente que a denúncia é o ato pelo qual um dos Estados-parte em um tratado comunica ao(s) outro(s) contratante(s) a sua vontade de retirar-se dele. Há ampla e inconclusa discussão sobre como deveria ser feita a denúncia de tratados no direito brasileiro. Há quem defenda que a forma como os tratados são denunciados deveria ser equivalente à como eles são incorporados.

Nos termos da Constituição (artigos 49, I, e 84, VIII), para que o Brasil adira a um tratado, é necessária a aprovação do texto do tratado pelo Congresso Nacional (via decreto legislativo), para que ele então seja ratificado pelo Presidente da República (via decreto presidencial). O procedimento de incorporação do tratado é, por assim dizer, “bilateral”, devendo contar com a atuação conjunta – dentre das competências próprias de cada qual – do presidente da República e das Casas Legislativas (Senado Federal e Câmara dos Deputados)[1]. Ocorre que o procedimento de denúncia de tratados não tem previsão constitucional expressa no Brasil. Sem qualquer parâmetro, a denúncia de tratados no país consolidou-se historicamente como um ato unilateral do Presidente da República, tanto mais quando, em 1926, Clóvis Beviláqua exarou parecer defendendo que se tratava de um ato meramente administrativo[2].

Tramita desde 1997, no Supremo Tribunal Federal, uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 1625 / DF)[3], proposta pela Confederação Nacional dos Trabalhadores da Agricultura (Contag), em que se discute a constitucionalidade do ato de denúncia unilateral da Convenção 158 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) – incorporada pelo Decreto 1.855, de 1996 –, que dispõe sobre o término da relação do trabalho por iniciativa do empregador e veda a dispensa injustificada. Sem ouvir o Congresso Nacional, conforme praxe administrativa sedimentada, então Presidente da República editou o Decreto 2.100, de 1996, e assim exonerou o Brasil das obrigações contidas no texto desse tratado da OIT.

Em 2006, o Relator originário da ADI, ministro Maurício Corrêa, julgou-a parcialmente procedente, dando ao Decreto 2.110/96 interpretação conforme o artigo 49, I, da Constituição, assim concluindo pela necessidade de condicionamento do ato de denúncia ao referendo do Congresso Nacional para que possa produzir eficácia jurídica; foi acompanhado desde logo pelo ministro Carlos Ayres Britto. Em voto-vista, julgando totalmente procedente a ação, o ministro Joaquim Barbosa também considerou não ser possível ao presidente da República denunciar atos internacionais sem a concordância do Poder Legislativo.

Após anos de hiato processual, em 2015, a ministra Rosa Weber juntou voto-vista acompanhando os colegas. No ano seguinte, o ministra Teori Zavascki também apresentou voto-vista, e, embora julgando improcedente o pedido, acompanhou a orientação do relator de que seria indispensável a participação do Congresso na denúncia dos tratados, mas sugerindo que houvesse modulação de efeitos para que a decisão final do Supremo tivesse eficácia apenas prospectiva, isto é, que servisse para casos futuros de denúncias.

O processo permanece com o ministro Dias Toffoli, que pediu vistas em 2016. No curso do julgamento da ADI, apenas o ministro Nelson Jobim julgou totalmente improcedente a ADI, concordando que a denúncia deveria seguir como ato unilateral do Poder Executivo. A maioria formada, como se vê, expressa a tendência de que prosperará a interpretação constitucional de que a denúncia deve ser um ato bilateral, simétrico, portanto, ao mecanismo de adesão.

Pedro Sloboda defende que é equivocada essa interpretação hoje dominante no Supremo, constituindo um “retrocesso” na prática internacionalista brasileira: “A aprovação parlamentar para denúncia poderia tardar e poderia nunca ser obtida. Nesse caso, o Brasil estaria constantemente sujeito à responsabilidade internacional e às sanções econômicas, comerciais e diplomáticas que dela podem decorrer”[4]. A ênfase de Sloboda na inconveniência que há em atos internacionais dependerem da participação congressual segue o mesmo entendimento de longa data de Celso D. de Albuquerque Mello de que “o Legislativo é lento e a vida internacional extremamente rápida”[5].

O caso é que a orientação plasmada no Supremo, que consagra a denúncia bilateral, é, até que se proclame o resultado final do julgamento da ADI 1.625, apenas uma “tendência”. E, depois de tanto tempo de tramitação processual, há a possibilidade de que seja acolhida no caso a sugestão do falecido ministro Teori, para que “se outorgue eficácia apenas prospectiva a esse entendimento […] até a data da publicação da ata do julgamento da presente ação”[6]. Até lá, seguiria válida a prática defendida por Beviláqua, de que “quando a Constituição guarda silêncio, deve entender-se que a atribuição do Poder Executivo, no que se refere às relações internacionais, é privativa dele”[7]. E mantida a atribuição nesses termos, o cargo de presidente da República teria conservada para si uma prerrogativa de alta relevância para a condução da política internacional.

Com efeito, confirmada a guinada na política externa que se espera para o governo do presidente eleito, Jair Bolsonaro, é possível que o Brasil venha a denunciar alguns tratados multilaterais de que hoje o país é parte, inclusive sobre direitos humanos. Ante um tal quadro, deveria o Supremo, com urgência, definir de vez a secular controvérsia sobre o instituto da denúncia, não tanto para deliberadamente evitar riscos de diminuição ao acervo convencional do Brasil, mas sim para assegurar que eventual desincorporação de um determinado tratado que seja levada a efeito, caso ocorra, dê-se após um crivo que, por ser mais democraticamente rigoroso, possa conferir ao ato a maior legitimidade possível. E, por evidente, o julgamento da ADI 1.625 não exclui a possibilidade de manejo de outras ações constitucionais que possam instar o Supremo a se manifestar sobre a tese, frágil que possa ser, da impossibilidade de denúncia no caso de tratados de direitos humanos econômicos, sociais e culturais, por violação ao princípio da vedação do retrocesso social – reconhecido pela Corte em várias oportunidades [8].

É verdade que alguém poderia ponderar que, em um cenário político no qual o governo tenha majoritário apoio no Congresso Nacional, contando com bancadas políticas programaticamente leais, como pode vir a ter o presidente eleito, é irrelevante, no fim das contas, que a denúncia seja uni ou bilateral. Isso, aliás, conduz à segunda questão relevante.

Às Casas do Congresso Nacional competem exclusivamente, conforme o artigo 49, I, da Constituição, aprovarem, ou não, acordos internacionais assinados pelo Brasil, bem como, nessa tarefa, definirem, a partir do quórum verificado nos casos de aprovação, o status que terão os tratados de direitos humanos na ordem interna. É sabido que a EC 45/2004 adicionou ao artigo 5º da Constituição um novo parágrafo (§ 3º) com o seguinte teor: “Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais”. Desde a entrada em vigor dessa regra constitucional, no entanto, foram relativamente poucos os tratados de direitos humanos aprovados pelo Congresso com esse quórum qualificado, a saber, somente a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, o Protocolo Facultativo a essa Convenção (ambos pelo Decreto Legislativo 186, de 2008), e o Tratado de Marraqueche (Decreto Legislativo 261, de 2015). Não foram aprovados conforme o § 3º do artigo 5º outros importantes tratados de direitos humanos, como, por exemplo, a Convenção Internacional para a Proteção de Todas as Pessoas contra o Desaparecimento Forçado, da ONU, de 2006, ou a Convenção Interamericana sobre o Desaparecimento Forçado de Pessoas, da OEA, de 1994 – ambas ratificadas pelo Brasil em maio de 2016, isto é, após a vigência da EC 45.

Por que, mesmo com a possibilidade que se abriu de se aprovar qualificadamente um tratado de direitos humanos, revestindo-lhe de força constitucional (ou equivalente a emenda constitucional), deputados e senadores seguem aprovando tratados de direitos humanos apenas com quórum simples, pelo qual terão esses tratados, conforme a jurisprudência do Supremo, apenas status supralegal? Isso pode decorrer de duas circunstâncias: uma, que os congressistas podem não reconhecer, por miopia, que o tratado sob apreciação tem matéria identificada como de direitos humanos, outra, que eles até podem reconhecer que o tenha, mas ainda assim entender que aquele tratado especificamente não deveria “merecer” a aprovação por maioria qualificada. O resultado, nos dois casos, é que o bloco de constitucionalidade deixa de ganhar envergadura no direito brasileiro.

Ainda que se possa considerar prevalente o entendimento de que o § 3º do artigo 5º da Constituição instituiu uma faculdade ao Congresso Nacional [9], parece que esta “estendeu-se ao ponto de permitir-lhe mesmo delimitar quais tratados, dentre os que vêm à sua apreciação, deveriam ser reconhecidos como tratados de direitos humanos; isto é, parece que a discricionariedade congressual se lança sobre os aspectos materiais de tratados, podendo definir se devem ser reconhecidos, ou não, como de direitos humanos”[10]. Esse poder discricionário que inclui, na prática, assinalar o conteúdo que possuiriam os tratados a serem internalizados na ordem jurídica interna representa uma responsabilidade de amplas consequências para a parametrização do controle de constitucionalidade no Brasil, além do que poderia ser compreendido como uma frustração dos propósitos do constituinte reformador, que parece ter pretendido oportunizar a constitucionalização dos tratados de direitos humanos.

Para se mensurar a extensão do poder congressual, veja-se o caso da Convenção Internacional sobre a Proteção dos Direitos de Todos os Trabalhadores Migrantes e dos Membros das suas Famílias, da ONU, de 1990. No final de 2010, foi enviada ao Congresso a Mensagem 696, submetendo a sua consideração o texto da referida convenção, oportunidade em que o Ministério das Relações Exteriores, em Exposição de Motivos anexa, requereu a tramitação da proposição como projeto de emenda constitucional. Em agosto de 2011, foi aberto “Prazo para eventual apresentação de requerimento, subscrito por no mínimo um terço dos membros da Casa, de adoção do rito especial previsto no § 3º do artigo 5º da Constituição Federal”.

Em setembro de 2011, o prazo foi encerrado sem que houvesse sido apresentado qualquer requerimento[11]. Restou a resignação dos Consultores Legislativos em nota técnica elaborada em 2014: “conquanto seja esse considerado um dos nove instrumentos fundamentais sobre direitos humanos das Nações Unidas e o Executivo tenha requerido que fosse a matéria apreciada segundo o disposto no § 3º do artigo 5º da Constituição, não foi apresentado qualquer requerimento para a tramitação dessa Convenção nesses termos […] portanto, até o momento, essa avença internacional tramita de forma análoga a todas as demais” [12]. Desse modo, pode-se considerar frustrada a expectativa de que direitos de trabalhadores migrantes tenham, no Brasil, tratamento expressamente constitucional.

Ressalte-se ainda que o poder discricionário congressual é ainda mais ameaçador no contexto de um Congresso Nacional formado por parlamentares e bancadas conservadores [13], com postura ideológica refratária a temas associados com direitos humanos. É fundamental que, a despeito do direito republicano que têm os congressistas de defender na Câmara e no Senado os interesses dos seus representados, os quais podem incluir demandas consideradas conservadoras, isso não deve ser, no jogo político, pretexto para uma atuação obstaculizadora no exercício da competência exclusiva que lhes confere a Constituição, mesmo porque a integridade do controle de constitucionalidade em favor de direitos fundamentais deveria estar acima de disputas ideológicas. Devem os grupos de pressão, incluindo as associações de magistrados, respeitada a separação de poderes, manter-se vigilantes para que a promoção dos direitos humanos não seja comprometida pela atuação parlamentar de qualquer matiz.

No novo arranjo que terá a política nacional brasileira a partir de 2019, com o exercício do poder pelos representantes eleitos para o Executivo e o Legislativo, o direito internacional poderá assumir novos contornos.


Referências
[1] XAVIER, Fernando César Costa; FERREIRA, Thalita Lívia Israel Ferreira. O Congresso Brasileiro e a denúncia unilateral dos tratados internacionais. Revista Direito e Justiça – Reflexões Sóciojurídicas. Ano XVI, nº 23, 2014.

[2] BEVILÁQUA, Clóvis. Pareceres dos Consultores Jurídicos do Ministério das Relações Exteriores (1913-1934). Rio de Janeiro: MRE, 1962, p. 347.BEVILÁQUA, Clóvis. Pareceres dos Consultores Jurídicos do Ministério das Relações Exteriores (1913-1934). Rio de Janeiro: MRE, 1962.

[3] Cf. em: http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=1675413

[4] SLOBODA, Pedro. Denúncia de tratado não deve depender de aprovação parlamentar. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/53436/denuncia-de-tratado-nao-deve-depender-de-aprovacao-parlamentar. Acesso em: 18 nov. 2018.

[5] MELLO, Celso. D. de Albuquerque. Curso de direito internacional público. Rio de Janeiro/São Paulo: Livraria Freitas Bastos, 1967, op. 109.

[6] Cf. em: http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=325338

[7] BEVILÁQUA, idem, ibidem, p. 347.

[8] Cf., v.g.: ADI 5016/BA (Rel. Min. Alexandre de Moraes, Plenário, DJE 26.10.2018; ARE 745745 AgR/MG; ARE 727864 AgR (Rel. Min. Celso de Mello, 2ª Turma, DJe-223, 12.11.2014); ARE 639.337-AgR (Rel. Min. Celso de Mello, 2ª Turma, DJE de 15.9.2011); RE 398.041 (Rel. Min. Joaquim Barbosa, Plenário, DJE de 19-12-2008).

[9] Cf., v.g.: AMARAL JÚNIOR, José Levi. Tratados internacionais sobre direitos humanos: como ficam após a reforma do Poder Judiciário. Revista Jurídica Consulex, Ano IX, n. 197, mar. 2005, pp. 38-39.

[10] XAVIER, Fernando César Costa Xavier. A vinculação do Congresso Nacional ao procedimento qualificado do art. 5º, § 3º, da CF. Anais do 7º Encontro da ANDHEP. ISSN: 2317-0255. 2012. Disponível em: http://andhep.org.br/anais/arquivos/VIIencontro/gt03-08.pdf. Acesso em: 19 nov. 2018.

[11] Cf. em: http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=369841

[12] Cf. em: http://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/estudos-e-notas-tecnicas/publicacoes-da-consultoria-legislativa/areas-da-conle/tema3/2014_11685.pdf

[13] Cf. em: https://epoca.globo.com/analise-congresso-sera-mais-conservador-das-ultimas-tres-decadas-23138687

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