Estado da Economia

Irresponsabilidade do governo na gestão de seu risco e desobediência ao STF

Autor

  • José Maria Arruda de Andrade

    é professor associado de Direito Econômico e Economia Política da Universidade de São Paulo (USP) livre-docente e doutor pela mesma instituição professor do programa master de pós-graduação em Finanças e Economia da Escola de Economia de São Paulo Fundação Getulio Vargas (FGV EESP) foi secretário-adjunto da Secretaria de Política Econômica do Ministério da Fazenda e pesquisador visitante no Instituto Max-Planck de Inovação e Concorrência em Munique (Alemanha).

25 de novembro de 2018, 7h00

Spacca
José Maria Arruda de Andrade [Spacca]Há poucos dias fui convidado a proferir breve comunicação aos jovens e talentosos pesquisadores da recém-inaugurada Associação Brasileira de Direito Financeiro (ABDF) Jovem de São Paulo.

Aproveitei a origem da associação e o seu nome (Direito Financeiro) para continuar defendendo a necessidade do estudo do direito tributário ao lado do direito financeiro e econômico.

Naquela oportunidade, retomei uma discussão que inaugurei aqui, nessa coluna ConJur: o uso de argumentos extrajurídicos que buscam convencer os ministros do Supremo Tribunal Federal a modularem os efeitos de sua decisão acerca da exclusão do ICMS da base de cálculo do PIS e da Cofins.

A Procuradoria da Fazenda Nacional (PGFN) buscou atribuir o risco fiscal de uma derrota bilionária à decisão da maioria dos Ministros e não à própria gestão desse risco por parte do governo federal como um todo.

No texto, refutei os argumentos de consequencialismo terrorista (ad terrorem) da PGFN basicamente a partir de três argumentos:

(i) Argumentos de terrorismo fiscal não possuem base no direito posto e, portanto, ofendem as regras básicas de Estado de Direito e daquilo que, metodologicamente, designamos como positivismo jurídico não inclusivo. Trata-se de apelo alheio ao ordenamento e busca apenas pressionar politicamente os ministros, que já construíram a sua decisão, seja ela a melhor ou não.

(ii) Os pressupostos legais que permitem a modulação de efeitos no direito positivo, notadamente, o artigo 27 da Lei 9.868/1999[1], exigem a existência de um excepcional interesse social, o que parece ser exatamente o contrário do que se apresenta por parte do governo federal, que foi responsável pelos números bilionários de sua aventura judicial.

(iii) A gestão de riscos fiscais por parte do governo central nessa tese judicial tem sido deplorável e, passados quase dois anos do meu primeiro texto, permanece, atualmente, nesse estado.

Cremos que a nossa principal contribuição ao tema tenha sido no argumento (iii), sobretudo ao confrontar de quem seria a responsabilidade pela derrota bilionária da derrota judicial, já que expus os termos como o assunto é tratado no Anexo V (Risco Fiscal), presente nas Leis de Diretrizes Orçamentárias (LDOs).

Ao explicitar a forma como o governo se comporta como um apostador compulsivo, sem avaliações realistas de estratégia, acaba-se por desautorizar a configuração do pressuposto legal de modulação de efeitos em virtude de excepcional interesse social.

Pois bem, entendemos ser relevante atualizar o tema.

O Governo Federal, como qualquer empresa, faz análises de risco de perda em ações judiciais, classificando-os de acordo com a Portaria da Advocacia Geral da União 40, de 2015.

Tal controle tem por fim formar o Anexo V (Riscos Fiscais) da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO). Trata-se de uma forma de gerenciar os riscos de perdas acima de R$ 1 bilhão em ações judiciais.

Apenas para listar os principais requisitos para classificar uma contingência como sendo de risco provável de derrota, o artigo 3º da Portaria da AGU 40, de 2015 exige os seguintes critérios (citaremos três dos principais):

a) Súmula Vinculante desfavorável à Fazenda Pública;

b) quando houver ação de controle concentrado de constitucionalidade, com decisão de colegiado do Supremo Tribunal Federal desfavorável à Fazenda Pública, ainda que pendente o debate quanto à eventual modulação dos efeitos;

c) quando houver decisão de órgão colegiado do STF desfavorável à Fazenda Pública proferida em recurso extraordinário com repercussão geral reconhecida, ainda que pendente a publicação do acórdão ou o julgamento dos embargos de declaração;

No caso específico do tema 1 do risco fiscal, a exclusão do ICMS da base de cálculo do PIS e da Cofins, a classificação de risco chama a atenção.

No Anexo V da LDO de 2010, por exemplo[2], há o registro da maioria de votos no STF contrária ao governo e a notícia de que houve a distribuição de uma Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC 18) e a tese insistentemente defendida pela PGFN de que o controle concentrado prefere ao difuso, bem como a assunção de risco do governo federal de que valeria mais apostar na reversão da decisão por meio da ADC 18, do que orientar o Ministério da Fazenda a criar Medida Provisória para estancar o risco jurídico de derrota (aumento de alíquota e redução da base de cálculo).

Em 2010, o risco estava quantificado em R$ 89,44 bilhões. Em 2017, em R$ 250,3 bilhões[3] (até 2014). Para o ano de 2018, o risco continuava como sendo de perda possível, já com o registro de precedente contrário à Fazenda.

Para o ano de 2019, o que mais chama a atenção é a manutenção da chance de perda como sendo apenas possível[4], mesmo com o registro de que houve decisão do Plenário do STF em repercussão geral desfavorável à Fazenda Pública.

A classificação parece repousar na existência de embargos de declaração requerendo a modulação dos efeitos da decisão, mas o artigo 3º, inciso I, alínea c da Portaria da AGU 40, de 2015 parece determinar a mudança para o risco provável de perda[5], com a devida e respectiva provisão.

Reitera-se, aqui, a ausência de qualquer legitimidade para se alegar que essa lamentável gestão do risco fiscal pelo governo federal poderia ser protegida pelo requisito legal de excepcional risco social, a justificar a modulação dos efeitos da decisão do STF.

Todos esses anos de insistência na discussão judicial, que poderiam ter sido contornados por mera edição de medida provisória, aumentaram enormemente a conta bilionária desta derrota. Justamente em um momento em que se questiona qualquer política social em virtude de seu custo!

Esse custo será repassado diretamente à sociedade, a cada orçamento em que a Fazenda for obrigada a reconhecer as compensações e restituições de todos os contribuintes.

Como dito, uma mera alteração legal reduzindo base de cálculo das contribuições e promovendo os ajustes das alíquotas (inclusive nas cadeias de setores com algum tipo de regime alternativo) seria facilmente aprovada pelo Legislativo, pelo singelo argumento da redução de riscos sem aumento de carga efetivo e minimizaria de forma eficiente os efeitos do risco de uma derrota.

A aposta de risco fiscal de que não haveria derrota do governo, não sendo atendida pelo STF, apesar do apelo do argumento ad terrorem, já gerou outro expediente de duvidosa legitimidade: a gestão fiscal no tempo (postergação da devolução dos créditos).

A Receita Federal do Brasil, por meio da Solução de Consulta Interna 13 da COSIT, polêmica até entre os quadros da Receita, buscou reinterpretar a decisão do STF, enxergando nela que o tribunal teria apenas determinado a exclusão do ICMS recolhido efetivamente pelo contribuinte (após sua apuração), e não o ICMS destacado nas notas que dão origem à receita bruta de cada operação.

Essa situação gerará um enorme número de litígios administrativos e judiciais, reforçando a irresponsabilidade de estruturas do governo central, que não buscam a redução de custos (com a fiscalização, prestação jurisdicional administrativa e judicial), mas incrementam o elevado grau de litigiosidade, já notório em nosso país.

Repetimos: como pode o governo federal insistir nessa estratégia impensada e mesquinha, ao invés de, humildemente, solucionar logo a situação com uma simples medida provisória de poucas linhas, algo que deveria ter sido editado há muitos anos? O prejuízo é de toda a sociedade.


[1] “Art. 27. Ao declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, e tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social, poderá o Supremo Tribunal Federal, por maioria de dois terços de seus membros, restringir os efeitos daquela declaração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado” (grifou-se).

[2] http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2010/lei/Anexo/anl12309-10.pdf. Páginas 98 e ss., notadamente, 136-7, em que se lê: “O STF discute a constitucionalidade da inclusão do ICMS na base de cálculo da COFINS, conforme autorizado pelo art. 2º, parágrafo único, da LC nº 70/91. O Min. Marco Aurélio, relator, deu provimento ao recurso, no que foi acompanhado pelos Ministros Cármen Lúcia, Ricardo Lewandowski, Carlos Britto, Cezar Peluso e Sepúlveda Pertence. Entenderam os Ministros do STF estar configurada a violação ao art. 195, I, da CF. O Ministro Eros Grau, em divergência, negou provimento ao recurso por considerar que o montante do ICMS integra a base de cálculo da COFINS, porque está incluído no faturamento. Após, o julgamento foi suspenso em virtude do pedido de vista do Ministro Gilmar Mendes (RE 240785/MG, rel. Min. Marco Aurélio, 24.8.2006). Posteriormente, a União ingressou com a Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC) nº 18, na qual Supremo Tribunal Federal, por maioria absoluta de seus membros (9×2), vencidos os Min. Marco Aurélio e Min. Celso de Mello, deferiu a medida cautelar, determinando a suspensão de todos os processos sobre o tema (legalidade da inclusão do ICMS na base de cálculo da COFINS, como prevê o artigo 3º, parágrafo 2º, inciso I, da Lei nº 9.718/1998), nos termos do artigo 21 da Lei 9.868/99 (por 180 dias). O julgamento do tema será definido na ADC, uma vez que o STF firmou que o controle concentrado prefere o difuso (RE). A projeção dos valores envolvidos, segundo estimativas da Receita Federal do Brasil (RFB), equivale a 89,44 bilhões, considerado o período de 2003 a 2008”.

[4] De acordo com o Tribunal de Contas da União (ofício nº 171/2014- TCU/SEMAG), processos com risco considerado como provável deverão ser provisionados pela Secretaria do Tesouro Nacional.

[5] “01: PIS e COFINS. Base de cálculo, inclusão do ICMS. Ré: União

Passivo Contingente. Risco: Possível – artigo 3º, II, “e” e § 2º. Justificativa: julgado pelo Plenário do STF em repercussão geral desfavorável à Fazenda Pública. Houve oposição de embargos de declaração pela PGFN postulando a modulação dos efeitos da decisão.

Objeto: questiona-se a inclusão da parcela relativa ao ICMS na base de cálculo da contribuição para o PIS e da COFINS (sistemática da tributação por dentro).

Instância: STF

Estimativa de Impacto: conforme dados da Receita Federal do Brasil, impacto estimado de R$89,44 bilhões, no período de 2003 a 2008. Este valor foi atualizado pela Nota Cetad/Coest nº 146, de 7 de outubro de 2014, utilizando a SELIC como indexador e chegou-se ao seguinte valor: 2003 a 2008: R$ 133,6 bilhões, totalizando um valor de devolução aos contribuintes em caso de derrota da União de R$ 250,3 bilhões e uma perda de arrecadação projetada para 2015 de R$ 27,12 bilhões. Para o ano de 2016 foi fornecido um novo cálculo pela Receita Federal do Brasil, em 02.06.2016, no valor de R$ 19,7 bilhões e para o período de 2012 a 2016 um valor de R$ 101,7 bilhões”. Ver a Lei nº 13.707, de 14 de agosto de 2018 (LDO), em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2018/Lei/L13707.htm.

Autores

  • é professor associado de Direito Econômico e Economia Política da USP, livre-docente e doutor pela FDUSP, sócio da Gaia, Silva, Gaede & Associados. Foi secretário-adjunto da secretaria de Política Econômica do Ministério da Fazenda e pesquisador visitante no Instituto Max-Planck de Inovação e Concorrência em Munique (Alemanha).

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