Sistema de acordos

Sem "juiz natural", falta segurança jurídica para cooperação com autoridades

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25 de novembro de 2018, 7h00

Spacca
Michel Sancovski [Spacca]O ano de 2014 foi um marco para as investigações anticorrupção no Brasil. Foi quando as investigações da operação “lava jato” chegaram a provas de que diretores da Petrobras estavam envolvidos num esquema de corrupção para garantir que as empreiteiras que sustentavam o sistema político ganhassem licitações de grandes obras da estatal. A partir de delações premiadas de doleiros e de alguns dos principais ex-diretores da companhia, se descobriu o uso dos negócios da companhia para facilitar a vida das construtoras, que devolviam a ajuda em forma de doação eleitoral.

Criou-se o problema: as informações reveladas nas delações não batiam com as demonstrações financeiras que a Petrobras vinha apresentando nos últimos anos. A PricewaterhouseCoopers (PwC), responsável pela auditoria das contas da estatal, exigiu que a empresa corrigisse os problemas em suas informações e apresentasse provas do que viria a divulgar. O resultado foi o atraso da divulgação do balanço.

Essa situação apresentou o mercado a uma nova modalidade de solução de problemas: a investigação interna anticorrupção com o intuito de colaborar com as autoridades. Sócio do escritório e um dos comandantes da investigação, o advogado Michel Sancovski agora conta à ConJur as implicações desse novo modelo, em que o setor privado é quem ajuda o Estado a descobrir o que há de errado no mercado e até em suas próprias operações.

“Ter uma política de controle e monitoramento hoje é mais um atrativo de mercado do que um gasto”, comenta. Diversas empresas hoje têm práticas de não fazer negócios com quem já tenha se envolvido em carteis ou esquemas de corrupção nos últimos anos, ou companhias que não tenham desenvolvido alguma estrutura de compliance.

Hoje, diz ele, embora haja o risco de os investimentos em compliance criarem mais um obstáculo à lucratividade das empresas, o mercado está melhor. “É um pêndulo, como qualquer nova medida que entra em vigor. O ambiente hoje está um pouco paranoico e as empresas estão mais cuidadosas, mas vamos chegar ao meio termo.”

Leia a entrevista:

ConJur — Poucas pessoas no país tem a sua experiência com investigações internas voltadas ao combate à corrupção. Como funcionam essas investigações?
Michel Sancovski —
Fui um dos colíderes da investigação da Petrobras. Durante três anos trabalhei nessa operação de investigação interna. Basicamente, é um levantamento de informações e dados. Normalmente, trabalhamos com empresas que fazem a parte da tecnologia, porque isso o escritório não faz. Então tem toda a parte de coleta de equipamentos, de celulares, computadores, o processamento desses dados e a disponibilização deles numa plataforma. Existe uma preocupação muito grande com a forma como isso é coletado, por causa da cadeia de custódia, para que depois não se diga que houve manipulação de dados. Tudo é feito de maneira bastante protocolar.

ConJur — E qual é a parte do escritório nisso?
Michel Sancovski —
A equipe é treinada para ter acesso aos documentos, revisá-los, entender de fato o que aconteceu e aí assessorar a empresa na fase de remediação do que deve ser feito. Então dá para dizer que a primeira fase é de “busca e apreensão”, mas muito mais num cenário de cooperação com as autoridades – e cooperação também é um dos elementos que fazem a sanção ser reduzida. E outro gatilho é receber uma denúncia no canal de denúncias da empresa e ela chegar no departamento responsável e conduzir uma investigação interna. Aí a empresa nos procura, porque, pela sensibilidade do assunto, preferem manter a discrição.

ConJur — E a partir daí é que começa a investigação anticorrupção?
Michel Sancovski —
É. Conduzimos essa investigação independente e estabelecemos a nossa “linha de reporte”, a quem vamos nos reportar, a quem vamos levar as informações. Depois conduzimos entrevistas, até para dar contexto aos documentos encontrados, que podem indicar algo errado e na entrevista percebermos que não era nada daquilo – o inverso também acontece, encontrarmos um documento que não diz nada e a partir da entrevista perceber que ele é um ponto de atenção. E temos atuado também na parte financeira, contábil, porque têm surgido cada vez mais demandas por iniciativa das auditorias financeira e contábil.

ConJur — Mais ligado ao balanço mesmo?
Michel Sancovski —
Isso. A investigação da Petrobras começou do momento da liberação do balanço. A liberação do balanço atrasou justamente porque a auditoria exigiu uma investigação interna. O balanço foi liberado em março e os trabalhos internos de investigação se iniciaram no final de 2014. A auditoria havia pedido uma grande quantidade de informações, documentos e papeis e o que fizemos foi auxiliar a empresa nessa parte, até para dar conforto à auditoria e ela pudesse refletir aquela realidade no balanço. A divulgação das demonstrações financeiras causa impacto muito grande, não só para as empresas listadas na bolsa, que sofrerão oscilação, mas às vezes há contratos financeiros que a não divulgação do balanço causa a execução antecipada, e isso pode virar uma bola de neve.

ConJur — Há algum setor mais preocupado com essas investigações?
Michel Sancovski —
Mais o setor financeiro, mas é muito pulverizado. Já fiz investigações em empresas de petróleo e gás, serviços de saúde, diversos ramos. Tecnologia tem bastante, por causa do modelo de negócio, em que dificilmente fazem venda direta e às vezes o revendedor ou distribuidor, que é quem faz a intermediação com o setor público, suborna alguém. Então a preocupação é grande para não haver responsabilização. O setor de tecnologia tem muito kickback, que é o pagamento de vantagens indevidas.

ConJur — E quando acontecem essas investigações, a empresa tem que parar as atividades?
Michel Sancovski —
Não. Existem técnicas e formas de pegar esses documentos. Porque a empresa não quer que baixe lá um grupo de advogados e bagunce o ambiente de trabalho, apreendendo computadores e equipamentos. Coletar dados é sensível. A empresa de tecnologia que trabalha com o escritório, por exemplo, pega esses dados durante a madrugada, tentando minimizar o impacto. E às vezes é importante divulgar internamente que está acontecendo uma investigação, até para mostrar que a empresa está preocupada com essas questões. Mas sempre temos que tratar isso com muito cuidado, porque somos advogados e não temos poder de polícia, embora tenhamos uma legitimação muito grande da alta administração para conduzir aquilo e muitas vezes o empregado pode ser desligado por não cooperar.

ConJur — Agora, falando mais especificamente da Lei Anticorrupção, ela oficializou a ideia de compliance no Brasil de forma bastante contundente. Mas isso também não dificultou a vida das empresas? Não é perigoso que essa exigência de “programas de integridade” force as empresas a focar no cumprimento de regras de conduta, em vez de se preocupar com o negócio dela?
Michel Sancovski —
O compliance, ou programa de integridade, é mais um investimento, um atrativo, do que um gasto. Há inclusive uma frase famosa do Paul McNulty [ex-procurador-geral dos EUA] que diz “se você acha compliance caro, tente o não compliance”. As empresas não devem parar o core business delas, mas os programas devem ser tocados em paralelo. A Lei 12.846 não exige que as empresas tenham programas de integridade, ela só diz que a empresa que tiver um programa efetivo no momento do cometimento de alguma ilegalidade, pode receber alguns benefícios. Portanto, é muito mais um atrativo de mercado, de ter uma política de controle e monitoramento, do que um gasto.

ConJur — Mas essa necessidade de ter programas de monitoramento não cria um ambiente um tanto paranoico? Recentemente entrevistamos um ex-procurador do DoJ que agora é consultor de empresas e o recado dele foi basicamente “esteja preparado para ser acusado de alguma coisa, porque um dia você será”.
Michel Sancovski —
É um pêndulo, como qualquer medida nova que surge no mercado. A “lava jato”, por exemplo, foi acusada por muitos de ter cometido excessos, mas ao mesmo tempo rompeu com uma barreira de combate à corrupção. Antes o pêndulo era para o lado mais tolerante. Então as coisas agora devem encontrar um meio termo. A FCPA, por exemplo, foi aprovada em 1977, mas só nos anos 2000 fomos ver um número maior de casos. Tudo isso que estamos vendo agora faz parte do momento que vivemos, que o país vive. Sim, o ambiente está um pouco paranoico e as empresas vão ter de ser mais cuidadosas, estamos num momento em que é natural ter mais preocupação.

Outro dia estava conversando com um cliente que me relatou que estava tudo certo para patrocinar um evento e o compliance da empresa vetou. “Mas cadê a contrapartida? Onde está o ganho da empresa?”, ele questionava. Portanto, existe um cuidado maior.

ConJur — Agora, nos EUA o ambiente está ficando totalmente paranoico, todos sempre com receio de surgir um delator dentro da empresa, há regras impossíveis de cumprir, como a proibição dos membros do conselho de administração falarem com quem trabalha na área tributária para não haver risco de vazamento de informação privilegiada. O Brasil vai ficar assim?
Michel Sancovski —
Não. Os EUA vivem um sistema de Common Law, em que as decisões dos casos concretos criam direito. O Brasil não é assim. E tem ainda a coisa da cultura latina, de as pessoas se aproximarem mais. Não vejo aqui uma paranoia, só acho que é algo novo e é preciso ter cuidado com a criação dos programas de integridade. Inclusive logo depois que saiu a Lei 12.846 a CGU editou o Decreto 8.420, um guia para programas de compliance. E um dos pilares do programa é ter uma instância responsável, e aí entra a figura do CCO, o Chief Compliance Officer [diretor de compliance]. Esse executivo precisa ter autonomia, independência e recursos, com apoio da alta administração, para conseguir estruturar o programa.

ConJur — E o mercado é melhor com esse tipo de coisa do que sem?
Michel Sancovski —
Sem dúvida.

ConJur — Outra área que tem gerado incertezas é a do acordo de leniência. Um dos problemas apontados é que diversas autoridades se dizem competentes para fazer o acordo e não há muita segurança sobre o que se pode fazer. Sem contar as decisões do TCU sobre as quantias envolvidas nos acordos. Como vocês têm lidado com isso?
Michel Sancovski —
Esse é um ótimo ponto, o cenário realmente é de incerteza e a crítica é bastante construtiva: falta um “juiz natural” para os acordos de leniência. Diversos órgãos se julgam competentes e criam várias portas de entrada para o acordo que não se conversam. Há até iniciativas louváveis, com a AGU e a CGU que assinaram uma portaria conjunta. Mas ao mesmo tempo há o TCU, que não dialoga muito bem, e o Ministério Público. Acho que aí está um ponto que merece alteração legislativa para no mínimo dar mais segurança, porque hoje as empresas têm receio. Você hoje pode dar informações para uma autoridade que depois entenda não ser mais competente, até pelas interpretações dos demais órgãos. E aí pode ser punido pelo TCU por não tê-lo chamado para a mesa de negociações, ou receber uma ação de improbidade porque a AGU não foi chamada, enfim. É, de fato, um ponto sensível.

ConJur —Muitos analistas dizem que a FCPA foi pensada para que os Estados Unidos pudessem exercer jurisdição em outros países. Concorda com isso?
Michel Sancovski —
A Lei Anticorrupção brasileira também tem aplicação extraterritorial. Ainda não vimos nenhum caso, mas existe a previsão.

ConJur — Mas o Brasil nunca foi acusado de imperialismo ou de impor sua soberania a outros países.
Michel Sancovski —
É verdade. E, de fato, as maiores multas da FCPA foi a empresas de fora dos EUA. Mas diversos acordos envolvem autoridades de diversos países. Por mais que o acordo seja assinado com o Departamento de Justiça dos EUA, por exemplo, parte do valor é remetido para as autoridades brasileiras. A “lava jato” é um bom exemplo disso, com as cooperações com a Suíça, com o Canadá e com os próprios Estados Unidos. Isso as cooperações formais, sem falar nas trocas informais de informações.

ConJur — Parece meio senso comum que a formalidade hoje é posterior, não? Primeiro há a troca informal de informações e documentos e depois a formalização dessa relação. Agora, como se defender disso? Se você nem sabe o que está sendo enviado e pedido, como se preparar?
Michel Sancovski —
Mas ainda que fosse formal, você não teria acesso à troca de informações. O que é importante é ter um mínimo de segurança jurídica, porque essa cooperação não precisaria existir se a empresa colaborasse com as investigações. Se houvesse segurança para cooperar, seria até melhor para as autoridades. Empresas são constituídas por seres humanos, que cometem erros. Com um programa de integridade, ela pode identificar os problemas e tomar as providências para que não voltem a acontecer. Num ambiente mais seguro, a empresa poderia levar essas informações às autoridades e resolver o problema.

Um dado curioso: antigamente, nas grandes operações de fusões e aquisições, a grande preocupação era com o passivo tributário e com o passivo trabalhista. Hoje, o que temos visto no escritório são empresas que querem conduzir uma investigação anticorrupção prévia, até antes de analisar o passivo fiscal e trabalhista. É uma mentalidade de saber quais os riscos nessa área, porque aí envolve a questão da reputação e da imagem. Isso no Brasil é uma grande preocupação, porque existe a responsabilidade sucessória, até o limite do patrimônio transferido. Nos EUA, existe uma orientação de que, se você comprou uma empresa e no decorrer da auditoria detectar um problema e levá-lo às autoridades, há uma presunção de que você não será processado.

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