Opinião

Lei do depoimento especial pode ser risco à visibilidade da violência de gênero

Autor

  • Camila de Jesus Mello Gonçalves

    é juíza da Vara Norte de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher. Professora da Escola de Direito de São Paulo da FGV. Doutora em Direitos Humanos pela USP. Mestre em Filosofia do Direito pela USP.

25 de novembro de 2018, 16h19

A lei do depoimento especial trouxe uma nova forma de escuta de crianças e adolescentes, vítimas ou testemunhas de violência, durante a persecução penal. Afinada aos parâmetros internacionais de proteção de vulneráveis, a nova lei objetiva minimizar a violência institucional e a revitimização da criança e do adolescente dentro do sistema de justiça.

Estudos indicam que a necessidade de relatar a experiência de violência por inúmeras vezes, o que não é raro durante a investigação criminal e a ação penal, resulta na intensificação do sofrimento da vítima e no agravamento das consequências da violência, que incluem depressão, dificuldade de se relacionar, prostituição e dependência em substâncias lícitas e ilícitas.[1]

Na área da saúde, estudos sobre a violência contra crianças e adolescentes indicam que as vítimas apresentam maior probabilidade de reproduzir a violência sofrida, seja como ofensor(a) ou ofendido(a), na medida em que “crianças que vivem em ambientes violentos tendem a acreditar que essa é a única forma de socialização, contribuindo para a manutenção da multigeracionalidade da violência”.[2] Daí a importância de assegurar que o procedimento investigativo e processual penal dirigido à punição do autor evite ao máximo a repetição de relatos, com vistas a minimizar o reavivamento da experiência traumática.

Nessa perspectiva, deve ser aplaudida a iniciativa do legislador que, por meio da Lei 13.431/2017, determinou que a criança ou adolescente, vítima ou testemunha de violência, seja ouvida em local apropriado e acolhedor, por profissional especializado, com infraestrutura e espaço físico que garantam sua privacidade (artigo 10), objetivando a proteção da criança e do adolescente pelos órgãos do Estado, contra práticas investigativas e processuais consolidadas em rotinas do próprio Estado, no curso da persecução penal.

Sendo a proteção integral obrigação da família, da sociedade e do Estado, todos os esforços em tal direção são relevantes e dão efetividade a normas e princípios constitucionais, recomendando a atuação integrada para que os órgãos competentes se estruturem para realizar o depoimento especial e a escuta especializada da forma prevista na lei. Sem qualquer crítica aos propósitos protetivos, o objetivo nessas linhas é chamar a atenção para outro aspecto da lei, relacionado ao risco de comprometer a visibilidade da violência de gênero.

Em 2006, a Lei Maria da Penha inovou o sistema jurídico brasileiro ao incluir a palavra gênero em seu texto. Enquanto o sexo sempre compôs o ordenamento, especialmente na identificação do estado civil da pessoa, ao lado do nome, a categoria gênero era restrita às ciências sociais e à antropologia, ao lado das categorias raça e classe. Fruto da advocacy feminista no sistema interamericano de direitos humanos e do ativismo político no Congresso Nacional, o artigo 5º da referida lei definiu a violência doméstica e familiar como a ação ou omissão baseada no gênero, que cause dano à mulher.[3]

Nos primeiros anos de vigência, uma lei voltada exclusivamente à proteção da mulher encontrou fortes resistências, fundamentadas na premissa de que um tratamento diferenciado não se sustentaria em um ordenamento constitucional calcado no princípio da igualdade entre os sexos. Em fevereiro de 2012, ao julgar a Ação Declaratória de Constitucionalidade 19, o Supremo Tribunal Federal consolidou o entendimento de que o tratamento desigual entre os sexos é autorizado como forma de compensar diferenças históricas de caráter sociocultural e jurídico que prejudicaram as mulheres. Fixou a tese de que a situação desfavorável das mulheres no Brasil, em aspectos como a família (o homem era o chefe da sociedade conjugal), a cidadania (as mulheres não podiam votar) e a educação (mulheres eram preparadas para o lar e não estudavam) justificavam uma lei protetiva contra práticas discriminatórias vigentes entre nós. A partir de 2012, então, afastada a discussão quanto à constitucionalidade, não há mais fundamento para deixar de aplicar a Lei Maria da Penha em território nacional, estabelecendo-se um tratamento diferenciado em proteção à mulher, em autêntica ação afirmativa.

Como exposto, o legislador associou ao sexo da vítima a necessidade de que a violência seja sofrida por motivo de gênero, como condição para a caracterização da violência doméstica e familiar e consequente incidência das políticas protetivas previstas na lei especial. Com isso, a Lei Maria da Penha contribuiu para chamar a atenção da sociedade e dos profissionais do direito para a temática de gênero, para a desvalorização, a discriminação e a sub-representação do feminino reveladas por diferentes marcadores sociais, como a diferença numérica em cargos de comando, públicos e privados, diferença de salários, entre outros. No caso da violência doméstica, o recorte de gênero facilitou mapear números e fazer estatísticas indicativas de que são as mulheres quem mais sofrem todos os tipos de violência, como a verbal, a psicológica e a física, até chegar ao feminicídio praticado por parceiros ou ex-parceiros.[4]

Nesse quadro, chama atenção o parágrafo único do artigo 23, da lei do depoimento especial, Lei 13.431/2017, in verbis:

“Art. 23. Os órgãos responsáveis pela organização judiciária poderão criar juizados ou varas especializadas em crimes contra a criança e o adolescente.
Parágrafo único. Até a implementação do disposto no caput deste artigo, o julgamento e a execução das causas decorrentes das práticas de violência ficarão, preferencialmente, a cargo dos juizados ou varas especializadas em violência doméstica e temas afins.

O caput da norma transcrita faculta aos estados a criação de varas especializadas em crimes contra a criança e o adolescente, o que atende ao princípio da autonomia dos tribunais de Justiça no estabelecimento de sua organização judiciária. O cerne da questão está no parágrafo único, que atribui aos juizados ou varas especializadas a competência preferencial para o julgamento e a execução das causas decorrentes das práticas de violência, sem qualquer ressalva ao gênero da vítima, ampliando a competências dos juizados e varas de violência doméstica, que começam a se especializar em temas de gênero.

A assimilação do conceito de gênero pelos profissionais do direito não é simples. O tema não consta na grade obrigatória dos cursos jurídicos, nem nos editais de concurso público e o desafio da delimitação de seu significado é constante, como exemplificam recursos julgados pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, em que ora se constata, ora não, a presença da motivação de gênero no conflito familiar objeto de análise.[5] As dúvidas envolvem questões como: — Toda violência praticada contra a mulher, na família, está baseada no gênero? — É possível afastar a motivação de gênero em brigas domésticas que envolvem pessoas de sexos diferentes e em que a mulher acaba lesionada? As respostas não são fáceis e há muito a percorrer para que o conceito de violência de gênero se estabilize, ganhe delineamento seguro na jurisprudência e passe a ser mais facilmente identificado pelos próprios envolvidos e pela comunidade. Por essa razão, a ampliação da competência dos juizados e varas especializados em violência doméstica e familiar contra a mulher, neste momento, não parece oportuna.

Em 5 de abril de 2017, data da publicação da lei do depoimento especial, havia transcorrido pouco mais de cinco anos da declaração de constitucionalidade da Lei Maria da Penha, pelo STF, termo inicial da pacificação da aplicação da lei em território nacional. É pouco tempo para a consolidação do significado da proteção contra a violência baseada no gênero.

Em março de 2018, mês em que se comemoram os direitos da mulher, o Índice de Confiança na Justiça (ICJBrasil) produzido pela Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getulio Vargas analisou aspectos relacionados à Lei Maria da Penha. De acordo com os pesquisadores, “a principal conclusão é que a maioria dos 1.650 entrevistados de oito unidades da Federação considera que a lei é pouco ou nada eficaz para proteger as mulheres da violência. Essa cifra, somada, chega a 80% dos respondentes, sendo que 53% afirmam que a lei protege pouco e 27%, que protege nada. Apenas 18% afirmaram que a Lei Maria da Penha protege muito”.[6]

Nesse contexto, inserir outras causas de violência na competência dos juizados e varas especializados traz o risco de enfraquecer a visibilidade da discriminação de gênero e, consequentemente, desgastar o potencial de proteção da lei dirigida às mulheres em situação de violência. Cria, ainda, mais dificuldades na sedimentação do significado jurídico da violência de gênero, na medida em que sobrecarrega as varas especializadas com outro tipo de demanda, igualmente sensível, e que deve tramitar prioritariamente como determinado pelo art. 5º, VIII, da Lei 13.431/2017, o que acabará por deixar os casos típicos de violência de gênero em segundo plano.

Não há dúvida de que as crianças e os adolescentes são vulneráveis. Provavelmente, compõem o grupo de maior vulnerabilidade, dada sua especial condição de pessoas em desenvolvimento. Não por outra razão, a norma constitucional da proteção integral dirige-se exclusivamente às crianças e adolescentes, independentemente do sexo e do gênero, firme na convicção de que suas vulnerabilidades decorrem da idade e da fase de formação física e psíquica em que se encontram. Merecem tratamento único e o melhor possível, como cidadãos do futuro que são. Por isso mesmo, atribuir a competência para o julgamento das causas decorrentes da prática de violência contra crianças e adolescentes às varas e juizados de violência doméstica não parece a melhor opção. Além de não oferecer a melhor proteção, tal regra pode trazer o deletério efeito de contribuir para o enfraquecimento da política de combate à violência de gênero no sistema de justiça e para dificultar a visibilidade dessa violência nos âmbitos institucional e social.


[1] Guia de Referência da Childhood Brasil, in: http://www.crianca.mppr.mp.br/arquivos/File/publi/childhood/guia_de_referencia.pdf, p. 45, último acesso em 21/11/2018.

[2] Algeri, Simone. Souza, Luccas Melo de. Violência contra Crianças e Adolescentes: um desafio no cotidiano da equipe de enfermagem. In: http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0104-11692006000400023&script=sci_arttext&tlng=pt, último acesso em 21/11/2018.

[3] “Art. 5º Para os efeitos desta Lei, configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial:

I – no âmbito da unidade doméstica, compreendida como o espaço de convívio permanente de pessoas, com ou sem vínculo familiar, inclusive as esporadicamente agregadas;

II – no âmbito da família, compreendida como a comunidade formada por indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa;

III – em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida, independentemente de coabitação.

Parágrafo único. As relações pessoais enunciadas neste artigo independem de orientação sexual”.

[5] Pela interpretação ampliativa, admitindo a vulnerabilidade de gênero, confira-se: Conflito de Jurisdição nº 0029806-56.2018.8.26.0000, j. 29/10/2018; Conflito de Jurisdição nº 0036307-60.2017.8.26.0000, j. 06/11/2017. Pela interpretação restritiva, afastando a vulnerabilidade de gênero, confira-se: e Conflito de Jurisdição nº 0029806-56.2018.8.26.0000, j. 28/11/2017; Apelação nº 3002621- 94.2013.8.26.0443, j. 08/11/2017

 

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