Opinião

Caso do Palácio Guanabara ainda está longe de acabar

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24 de novembro de 2018, 6h25

Imagine-se a seguinte cena: Isabel, brasileira, casada, vivendo em sua casa própria há mais de 30 anos com o marido e os filhos, certo dia deve sair às presas em uma viagem internacional e, após alguns poucos anos vivendo fora, recebe a notificação que essa sua casa havia sido confiscada pelo Estado. Após lutar na Justiça, recebe não uma, mas duas decisões judiciais garantindo sua propriedade frente ao confisco pretendido pelo Estado. Impedida de voltar ao país por quaisquer razões, o Estado invade sua casa com militares, a saqueia e a utiliza como repartição pública.

Injusto, correto? Agora, imagine-se que a casa havia sido comprada legalmente com o dinheiro do Estado, em benefício de Isabel e sua família, por previsão constitucional — um direito adquirido na mais perfeita concepção. Tome-se por verdade, também, que Isabel tivesse recebido esse benefício por conta de uma política pública do Estado. Por fim, considere-se que sua repentina ausência tenho ocorrido pelas circunstâncias políticas desse mesmo Estado e que o confisco de sua casa tenha sido fruto da posição em que se enquadrava.

Trata-se exatamente do contexto envolvendo o caso do Palácio Guanabara, que, inicialmente pautado para julgamento no Superior Tribunal de Justiça em 4 de setembro, foi adiado para o próximo dia 27 de novembro.

Na calada da noite, longe dos olhares populares e flanqueada pelos militares que a haviam deposto de sua régia posição no dia anterior, a Princesa Dona Isabel, em 17 de novembro de 1889, deixou, com a roupa do corpo, o país em que sua família reinou por quase um século, para nunca mais voltar.

A casa que ela e o marido, o Conde d’Eu, haviam comprado com o dinheiro de seu dote — previsto na Constituição, regulamentado por duas leis da Assembleia Geral e confirmado em seu pacto antenupcial, agasalhado como tratado internacional — e com dinheiro próprio de seu marido, batizada então de Paço Isabel, fora tomada e saqueada por militares florianistas na noite do dia 23 de maio de 1894.

A base legal para o confisco? O Decreto 447/1891, repudiado por duas ações judiciais, movidas pela própria União Federal, em 1891 e em 1894, visando assegurar a incorporação do Paço Isabel ao Patrimônio Público. A última dessas ações foi, ainda, confirmada pelo Supremo Tribunal Federal em recurso movido pela União, em 1895, pois entendeu que ao Decreto 447/1891 faltavam os requisitos mínimos exigidos pelo Direito Privado, então vigente, para a tomada do Palácio pelo Estado, confirmando a propriedade do Paço Isabel como sendo da Princesa — mesmo exilada.

Ignoradas as decisões judiciais, o Estado se manteve na posse irregular do hoje chamado Palácio Guanabara, sede do Governo Estadual do Rio de Janeiro. Inconformada pelo Estado não ter acatado a decisão da mais alta corte nacional, a Princesa Isabel ingressou com ação possessória no mesmo ano de 1895 — após 123 de longas aventuras, essa é uma das ações relacionadas ao caso que o STJ julgará muito em breve, para o benefício dos descendentes da Princesa.

No entanto, o que diferencia, nesse caso, a “Isabel” da “Princesa Imperial do Brasil, Dona Isabel de Bragança, Condessa d’Eu”? Extirpadas do caráter político: nada. A Isabel, dona de casa, beneficiária de uma política pública em nada, no Direito Privado, se diferencia da Princesa Isabel, também beneficiária de uma política de Estado, em que pese o cargo que até então ocupava.

O confisco do Palácio Guanabara está parelho, em um cenário hipotético, ao confisco, do apartamento de um ex-presidente da República, cujos recursos para sua compra tivessem sido obtidos por meio de sua dotação legal nos quatro anos em que a percebeu, ou ainda, de uma dona de casa beneficiária de uma política pública social de sorteio da casa própria. Esses atos constituídos na estrita legalidade como atos jurídicos perfeitos, deveriam, independentemente das condições ou mudanças políticas, se manter firmes no Direito Privado.

Essa condição política de uma desapropriação indireta que subsiste tanto tempo mantendo uma injustiça, no entanto, aproxima o caso do Palácio Guanabara à problemática da justiça de transição.

No Brasil, por falta de exemplos flagrantes, essa questão quase sempre está relacionada à responsabilização penal de agressores ou de indenização de quem sofreu violência durante o antigo regime ou o período de transição política. As transições políticas (traumáticas) no Brasil, demonstram que a propriedade privada não fora o alvo dos novos regimes: Júlio Prestes, presidente eleito e deposto pela Revolução de 1930, exilado e devassado por um tribunal especial, nunca teve seus bens confiscados; Getúlio Vargas, deposto em 1945, manteve sua fazenda em São Borja intocada e os opositores ao regime militar de 1964, embora tenham sofrido com toda sorte de atrocidades, nunca tiveram suas propriedades confiscadas pelos militares.

No entanto, a condição de a Princesa Dona Isabel ter recebido o dote pelo Estado constitui uma problemática maior — como no cenário hipotético do ex-Presidente da República, acima — uma vez que o Governo Federal se arrogou dos direitos sobre a propriedade, deposta a dinastia, pela razão de ele ter indiretamente e parcialmente provido os recursos para sua compra — o que não se aplicaria, em nosso melhor conhecimento, às propriedades de Júlio Prestes, Getúlio Vargas ou dos opositores aos militares de 1964, caso essas tivessem sido confiscadas. Tal tese, contudo, ignora que a dotação da Princesa constituiu ato jurídico perfeito, em pleno acordo ao ordenamento jurídico então vigente, que já havia exaurido seus efeitos no momento da transferência do capital para compra do Palácio, décadas antes, e que, desde então, essa propriedade se inseria no patrimônio privado de “Isabel” e não como apanágio concedido à “Princesa Imperial do Brasil”.

O caso do Palácio Guanabara, sob esse prisma, embora colocado como único no Brasil, está alinhado com a experiência jurídica mundial, que nos demonstra que a justiça de transição abrange também a problemática privada, revelando-se seja como privação de propriedade ou no contexto da vedação de atuação econômica de opositores políticos. Um landmark notável é o caso do ex-Rei da Grécia, Constantino II que, após perder os litígios nas cortes nacionais contra a República Grega, apelou à Corte Europeia de Direitos Humanos e ganhou no ano 2000 o direito de perceber a indenização pelas propriedades confiscadas com a deposição da Família Real Grega décadas antes.

Ainda que o caso do Palácio Guanabara seja um dos mais antigos, senão o mais antigo, ainda em curso o Judiciário Brasileiro, seu fim está muito longe de chegar, embora tenha tomado destaque com seu julgamento próximo de ocorrer pelo STJ. Caso a decisão a ser proferida pelo ministro Antônio Carlos Ferreira e seus pares, em 27 de novembro, não o prejudique, ainda pende de análise pelo STF que, após mais de um século, poderá revisitar o famoso caso em sede de recurso extraordinário, e, na última das hipóteses, caso a Família Imperial Brasileira lance mão da alternativa utilizada por seus distantes primos gregos, de apelação à Corte Interamericana de Direitos Humanos, saída bastante natural para casos inseridos nesse contexto da justiça de transição.

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