Diário de Classe

É preciso enfrentar as dificuldades no debate jurídico

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24 de novembro de 2018, 7h00

Um testemunho inicial
Recentemente, voltei a acompanhar publicações sobre um determinado instituto jurídico, cujos problemas tinham sido tema de minha pesquisa há alguns anos. Com muita frustração, observei que as críticas que tantos juristas lhe fizeram seguiram ignoradas por seus defensores. Uma resposta curta e incômoda se repetia em colunas, publicações acadêmicas e até em pareceres de processos legislativos: “há uma compreensão equivocada sobre o instituto”. Logo em seguida, passavam à sua apologia, sem sequer mencionar os problemas que haviam sido apontados. Quando muito, havia uma falsa concessão do tipo “em que pese a doutrina de fulano”, seguida de uma falsa refutação do tipo “não merece prosperar”.

Mais do que o caráter pomposo das expressões, preocupa a visão de Direito que as sustenta. Desta maneira, há disputa, mas não há debate[1]. Quem quiser, que adote um lado e passe a xingar o outro. Nessa “guerra de facções” entre juristas não há tréguas, mesmo quando as ideias viram lei. É comum ler o seguinte em manuais: “o legislador positivou o artigo tal, mas é melhor que se continue fazendo como antigamente”. Negar aplicação à lei deveria ser um evento muito sério numa democracia, restrito a hipóteses excepcionais[2] e sob as exigências da melhor justificação. Contudo, essa “lógica opinativa”[3] sobre o que é justo vem pautando nossa teoria e prática.

É preciso reconhecer que este não é um fenômeno novo em nosso Direito, que já nasce imerso em uma tradição bacharelesca centrada em argumentos de autoridade. Mas, infelizmente, ainda é uma questão muito atual. Talvez as condições do debate jurídico sejam a questão mais urgente a ser enfrentada em nossa área, nesses tempos de tamanha polarização.

As velhas e as novas dimensões do problema
De saída, é preciso considerar dois fatores estruturais: a pouca experiência da nossa comunidade jurídica com a organização científica; e a pouca experiência do nosso país com a democracia. Graças à sua combinação, nosso Direito foi sendo construído sem o hábito de justificação perante públicos mais amplos. Ao longo da história brasileira, a elaboração de anteprojetos de Códigos foi confiada às comissões de “notáveis” que se organizavam em grupos íntimos[4], cujas filiações teóricas visavam a reprodução de prestígio através das diferentes gerações de juristas. Os eventos, as publicações, as revistas, eram sobretudo práticas de socialização desses grupos. Nesse contexto quase familiar, podia-se simplesmente pregar para convertidos, sem que a troca de argumentos com quem não compartilha os mesmos pressupostos fosse uma condição fundamental para a produção da lei. O debate não era constitutivo da criação do direito, era exterior a ela, e sempre visto como uma disputa por territórios em que o grupo próximo ao poder tinha a fala autorizada.

Isso tudo deixa marcas profundas. Não evapora de uma hora para outra. Por mais desagradável que seja apontá-las, são marcas que nos condicionam e que precisam ser compreendidas para que delas possamos nos libertar.

E o que há de novo em nosso estado da arte? Um fenômeno ambíguo. Por um lado, alguns juristas conseguiram abrir (a duras penas) um espaço para a circulação da Teoria do Direito na prática e dogmática. Com isso, vem sendo possível denunciar e intervir em problemas graves que estavam naturalizados entre nós. Por outro lado, a prática e a dogmática têm reagido de modo selvagem. Mantendo sua lógica de funcionamento, passam a se apropriar das teorias de maneira puramente retórica e instrumental[5]. Quando essa segunda tendência prevalece, as condições de debate chegam a ficar piores do que já eram. Questiona-se um conceito e o interlocutor responde com toda uma metafísica[6]. Metafísica ruim, ainda por cima. Nesses termos, o debate foge rapidamente de qualquer possibilidade de controle.

Nesta encruzilhada, a saída não parece ser abrir mão da teoria, como pregam alguns[7], mas trabalhar para sua boa integração com a prática, sem que uma colonize a outra[8]. A mera volta a um entrincheiramento na dogmática ou no praxismo cai novamente na lógica opinativa, no emotivismo, no particularismo… e segue sem resolver nada. Por isso, subir à teoria é inevitável para que se possa arbitrar os desacordos jurídicos de maneira racional, dando sentido às nossas práticas e articulando-os de modo coerente[9]. Obviamente, isso traz encargos. Há muito tempo se tem advertido que essa ascensão justificatória[10] (o recurso a princípios etc.)[11] precisa ser feita de modo responsável, sob intenso controle interpretativo e argumentativo. Dito de outro modo: é botar a bola no chão e trabalhar o passe curto, mas o jogo ainda é o mesmo[12].

O caso é que, se não canalizarmos essas disputas para uma arena comum, e se não batalharmos pelo reconhecimento de alguns critérios públicos para que elas sejam travadas com prudência, faremos ciência jurídica de qualidade cada vez pior e um Direito cada vez menos democrático.

Uma hipótese: o elo faltante
Na filosofia da ciência, acumulam-se reflexões sobre os elementos racionais e/ou psicossociais que condicionam o debate entre cientistas de paradigmas distintos. Contudo, elas parecem não alcançar o Direito. Sem complicar ainda mais nossa situação, talvez precisemos trabalhar as questões mais básicas sobre o tema. Precisamos discutir qual o sentido da crítica e qual o sentido da resistência. Por que atacar ou salvar uma teoria? Tão nocivo quanto o dogmatismo obstinado é a crítica aventureira que visa fazer alguém de escada para o prestígio, sem trazer nada que agregue ao conhecimento já existente.

Obviamente, em nenhuma área teremos um debate entre anjos. As pessoas têm déficits motivacionais e cognitivos para deliberações racionais. Contudo, as dificuldades de se identificar comunidades de diálogo[13] na nossa dogmática jurídica, e de reconstruir trocas de razões articuladas ao longo do tempo, é bastante preocupante. Se os elementos psicossociais tomam a frente do nosso debate, se passam a ser os mais importantes para explicar nossa – assim chamada – Ciência, vamos denunciar o que está ocorrendo ou continuar perdendo tempo e energia fingindo debater racionalmente?

Além desse cuidado científico mais geral, é preciso considerar as especificidades dos desacordos jurídicos: como mediar disputas teóricas voltadas à consecução de um objetivo prático comum, como a produção de uma lei? Nas Ciências Naturais, os fatos ocupam o centro das preocupações. Já no Direito, ao trabalharmos com conceitos interpretativos[14], a visão dos outros é constitutiva do nosso próprio “material de trabalho”. Diante disso, é produtivo tentar “vender” um conceito idiossincrático ao grande público, atrelado a toda uma teoria cujos pressupostos não podem ser amplamente compartilhados?[15] Os resultados esperados com algum novo instituto que se quer positivar não seriam melhor alcançados através de uma boa delimitação?

Uma modesta hipótese que arrisco agora, abusando da metáfora futebolística, é que precisamos de mais “meio-campistas”, de mais juristas que façam a ligação entre diferentes teorias, entre teoria e dogmática/prática, entre o debate especializado e o debate público. Na metáfora mais popular entre filósofos da ciência, precisamos de tradutores (ou poliglotas) para facilitar esse entendimento, já que tais diferenças equivalem a falar línguas completamente diferentes. Nessa linha, vê-se com bons olhos a disposição para traduzir nossos argumentos de uma maneira que faça sentido no referencial dos outros.

Afinal, o que fazer?
Em última análise, esse é um problema que conecta epistemologia e ética. A verdadeira compreensão exige uma atitude genuína de abertura para o diálogo[16]. Contudo, no que se refere a intervenções concretas sobre o problema, podemos realizar “contrangimentos epistemológicos”[17]. E, a partir disso, podemos institucionalizar incentivos ao debate. Nas revistas científicas da área jurídica, a melhoria das práticas editoriais tem sido fundamental, criando incubadoras para debates de alto nível. Os melhores congressos já vêm adotando formatos que favorecem a construção coletiva de respostas para uma mesma pergunta, ao invés dos velhos espetáculos individuais. Apostar na produção de conhecimento através de uma comunidade científica é abrir mão do modelo de gênios tratadistas.

Por fim, cogito que o ensino jurídico teria muito a ganhar se fizéssemos mais trabalho de base sobre essas questões de conhecimento científico. É visível como disciplinas que revisitam grandes debates, com metodologias participativas, habilitam os alunos a manipular estruturas de raciocínio complexas. Aprende-se a debater. A essa altura, uma educação para o debate deveria ser o centro das nossas diretrizes pedagógicas.


1 Lembro de um episódio com tons de surrealismo: após ter me posicionado publicamente (junto a outros juristas) sobre um debate entre determinadas matrizes de pensamento no Direito, nossos interlocutores publicaram vários textos negando haver qualquer debate. Segundo eles, se tal confrontação ocorresse, seria simplesmente um massacre de nossa matriz pela deles.

2Nesse sentido, as seis hipóteses teorizadas por: STRECK, Lenio Luiz. Resposta adequada à Constituição (resposta correta). In: Dicionário de Hermenêutica: Quarenta temas fundamentais da teoria do Direito à luz da Crítica Hermenêutica do Direito. Belo Horizonte: Casa do Direito, 2017. p. 251-269.

3 RODRIGUEZ, José Rodrigo. Como decidem as cortes. Para uma crítica do direito brasileiro. Rio de Janeiro: FGV, 2013.

4 ALMEIDA, Frederico de. Intelectuais e reforma do Judiciário: os especialistas em direito processual e as reformas da justiça no Brasil. Revista Brasileira de Ciência Política, n.17, 2015. p. 209-246.

5 RODRIGUEZ, José Rodrigo. Op. Cit.

6 Muitos filósofos contemporâneos evitam a todo custo comprometer suas teorias com grandes pressupostos metafísicos (QUINE, William Van Orman. Sobre o que há. In: De um ponto de vista lógico: nove ensaios lógico-filosóficos. São Paulo: Editora UNESP, 2011. p. 11-35). Dessa perspectiva, muitos olham o Direito com inveja de sua positividade (Constituição, leis e precedentes) que deveria aliviar a busca de referências comuns em discussões “aplicadas” sobre o justo. Curiosamente, os juristas rejeitam essa base e correm com facilidade para cláusulas abertas e ambiciosas especulações sobre a natureza humana para resolver as questões mais cotidianas.

7 Refiro-me aqui a Richard Posner e sua postura anti-teórica no direito, criticada em: DWORKIN, Ronald. O elogio da teoria. In: A justiça de toga. São Paulo: Martins Fontes, 2010. p. 71-107.

8 Sobre a confusão entre teoria e prática, na qual as pesquisas jurídicas são feitas seguindo um “modelo do parecer”: NOBRE, Marcos. Apontamentos sobre a Pesquisa em Direito no Brasil. Revista Novos Estudos CEBRAP, n°66, jul., 2003. p.145-153

9 Para quem não está disposto a aderir a fundamentos últimos absolutos para legitimar suas proposições, essa abordagem “é o que tem pra hoje”.

10 DWORKIN, Ronald. Op. Cit.

11 Tanto os excessos quanto as carências no recurso a princípios são apontados em: STRECK, Lenio Luiz. Do Pan-principiologismo à concepção hipossuficiente de princípio. Dilemas da crise do Direito. Revista de Informação Legislativa, v. 194, 2012. p. 7-21.

12 Não há como voltar para um jogo simples, de pura convencionalidade. Para mais referências sobre essa mudança de “jogos” na disputa jurídica, veja-se: PORTO MACÊDO JR., Ronaldo. Do xadrez à cortesia: Dworkin e a Teoria do Direito contemporânea. São Paulo: Saraiva, 2013.

13 GARGARELLA, Roberto. Consejo para tesistas: Comunidades de diálogo. [S. I.]. 13 Nov. 2018. Disponível em: http://seminariogargarella.blogspot.com/2018/11/consejo-para-tesistas-comunidades-de.html. Acesso em: 22 Nov. 2018. Blog: Seminario de teoría constitucional y filosofía política.

14 DWORKIN, Ronald. A raposa e o porco-espinho: justiça e valor. São Paulo: Martins Fontes, 2014.

15 Claro, haverá momentos em que a descrição ou prescrição de algo vai demandar uma disputa teórica mais ampla. E isso não deve ser contemporizado. Sustento apenas que devemos cobrar coerência uns aos outros e – tanto quanto possível – procurar pressupostos comuns a partir dos quais possamos tornar nossos argumentos mutuamente inteligíveis.

16 GADAMER, Hans-Georg. A incapacidade para o diálogo. In: Verdade e Método II: Complementos e índice. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: São Francisco, 2011. p. 242-255.

17 STRECK, Lenio Luiz. Constrangimento epistemológico. In: Dicionário de Hermenêutica: Quarenta temas fundamentais da teoria do Direito à luz da Crítica Hermenêutica do Direito. Belo Horizonte: Casa do Direito, 2017. p. 41-45.

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