Senso Incomum

Concursos públicos e a insistência em fazer quiz shows e adivinhações!

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22 de novembro de 2018, 7h00

Spacca
Está muito estranha a alteração do regime de plantão do TRF-4! E feita monocraticamente, ad referendum.

De há muito – mas de há muito, mesmo – venho criticando o modo como os concursos públicos foram transformados em quiz shows, uma gincana ou corrida de obstáculos, por vezes com requintes de sadismo por parte de alguns componentes de bancas Brasil afora. À vista disso, denunciei bizarrices perguntadas em prova, como foi o caso da “teoria da graxa”, anulada pelo Conselho Nacional do Ministério Público (ler aqui).

Concursos públicos são como licitação de pessoas, talentos e existências. Não podem ser banalizados. Concursos, em um país em que o certame público é forma de ascensão social, têm de ser feitos com muito cuidado. Mal feitos, os certames machucam.

Cheguei até a propor a criação de uma agência reguladora de concursos. Mas parece que as críticas passam ao longe da bolha em que vivem as instituições e os membros das bancas examinadoras. Agora mesmo o Ministério Público do Rio Grande do Sul, minha instituição, lamentavelmente criou um imbróglio que apenas aumenta a insatisfação dos concursandos. Se foi legal ou ilegal, se o edital foi seguido à risca ou não, o que importa, aqui, é discutir o modo como se desenvolveu essa etapa. Lembro que parte do concurso já fora anulada, em face da aplicação de prova preambular em que o examinador utilizou questões de outros concursos.

Trago à lume alguns aspectos do referido concurso, cuja fase oral terminou há poucos dias. Meu intuito é tratar mais o aspecto simbólico da “coisa”. Explico: havia um universo de 100 candidatos aptos para a prova oral. Talvez por falta de recurso para nomeação de um número mais elevado de promotores, tudo está a indicar que a banca resolveu fazer uma linha de corte artificial, decepando cabeças no atacado, tudo com o intuito de resolver essa contingência econômica. Tanto é que passaram apenas seis candidatos. Esse é um dado objetivo. Fato. Bom, tudo está gravado, podendo ser conferida a veracidade destas informações que aqui apresento para análise da comunidade jurídica. Vários candidatos me passaram essas informações.

Relatam, por exemplo, que, em Direito Constitucional, o candidato foi “avaliado” com apenas uma questão sobre temas totalmente alheios à atuação de um membro do Ministério Público Estadual ou por meio de temas totalmente específicos e igualmente estranhos às atribuições da instituição e, por vezes, de presença duvidosa no edital. São exemplos das perguntas formuladas: a) Quais são as medidas administrativas adotadas pelo Brasil para implementar o Protocolo de Montreal sobre substâncias que destroem a camada de ozônio?; b) Conteúdo do Decreto 3551/00, que trata do registro de bens culturais de natureza imaterial; c) Decreto que trata da demarcação de terras tradicionalmente ocupadas pelos índios. Que tal? Quem não chumbaria? As perguntas podem até não serem ilegais no sentido do edital, mas, convenhamos, são estranhas e desimportantes.

No Processual Penal, parcela dos candidatos foram arguidos com apenas uma pergunta, o que levou, no caso de erro na resposta apresentada, à atribuição da nota zero e dispensa do candidato, sem que fosse formulada sequer uma segunda questão, o que levou à atribuição da nota zero a 14 candidatos. Bastante, não? Conta-se que houve um questionamento para um candidato (uma pergunta só) sobre a “relevantíssima” questão acerca de qual a autoridade competente para a fixação da fiança nos casos do cometimento do crime de bigamia. A conferir nas gravações, pois. Para um outro candidato foi questionado se o Decreto Lei 3.240/41 ainda está em vigor, pergunta que não causaria espécie se não fosse pelo fato de a examinadora ter se negado a informar a matéria versada pelo diploma em questão. Parece estranho isso, pois não? Se isso ocorreu, é grave.

Ainda em relação ao Processo Penal, enquanto alguns candidatos foram arguidos por meio de apenas uma questão, outros foram questionados por três ou mais perguntas, o que claramente fere a isonomia entre os participantes do certame.

Contaram-me também que, em Direito Civil, predominaram questionamentos sobre temas completamente estranhos à carreira do Ministério Público Estadual, como “contrato de jogo e aposta”, “Simples Nacional” e “Livros Comerciais”. De novo, pode não ser ilegal, mas, convenhamos, uma banca deveria poder mais do que isso. Trata-se de “licitação de pessoas” e não de mercadorias.

Houve casos em que foram formuladas três questões e, tendo o candidato respondido corretamente apenas duas questões, foi conferida ao candidato a nota 3,00. A nota média atribuída pelos examinadores em geral foi 4,00. Isso pode explicar porque, de 100 candidatos, só seis passaram.

Poderia falar de mais coisas, mas paro por aqui. Não quero espinafrar o certame. Meu intuito é criticar construtivamente. Há um milhar de modos pelos quais um concurso pode ser feito de modo diferente. O que importa, todavia, é o simbólico que se extrai desse tipo de procedimento. Se o concurso vai mal, o desgaste da instituição é maior ainda. Mas o pior é o prejuízo de dezenas de pessoas que apostam parte de suas vidas em pesados treinamentos para enfrentar esse tipo de gincana jurídica.

Claro que tudo isso é apenas a consequência de um longo processo de fragilização do Direito e da sua operacionalidade. Esse concurso e centenas de outros fazem parte de um círculo vicioso. Concursos quiz shows exigem cursinhos que atendam a essa demanda. Já não se estuda. Treina-se. Demandas que dependem dos concursos. Como o candidato vai saber o que ocorre com o protocolo de Montreal ou quejandos? E assim vai se formando um círculo sem saída. Sem quebra. Dia desses, em um voo, um casal passou o voo todo me torrando os miolos com seus treinos quiz show. Dos mais de 50 minutos de tortura “jurídica” não aproveitei uma linha. Era só “pegadinhas” e “exceções” e “truques de memória”.

Conclusão: ou se altera essa prática de concurso decoreba-quiz-show ou continuaremos com essa fragmentação na aplicação do Direito. Ora, ninguém é filho de chocadeira. O que se espera de um promotor que foi indagado sobre esses tipos de perguntas acima delineadas? A chance de ele confundir garantismo com marxismo será incomensurável. E assim por diante.

Pergunto: para que serve uma Constituição compromissória e normativa como a nossa, que deve ser aplicada pelo promotor (e isso vale para todos os concursos), se um concurso ainda se dispõe a perguntar sobre a “rebimboca da parafuzeta” ou do “acordo de efluentes do Igarapé do Xapuri (Igarapé da margem esquerda, não se esqueçam – estou sendo irônico)? Isso apenas mostra que por trás disso tudo está a crise – cada vez mais aguda – do Direito. E de sua operacionalidade. Depois nos queixamos quando os juízes e promotores, em suas práticas, ignoram a lei e a CF.

Veja-se: a crítica ao modo como os concursos são elaborados têm aqui um cunho universal. Há, hoje, uma crise generalizada no âmbito dos concursos públicos. Portanto, o assunto sai da esfera de qualquer fulanização (o caso do MP-RS é apenas um pano de fundo) e assume contornos de amplíssimo interesse público.

Não adianta o CNMP e o CNJ fecharem os olhos para essa crise, editando enunciados ou súmulas dizendo que não cabe reavaliação do mérito das questões. Isso apenas reforça o poder discricionário e sem controle das bancas. Não há isonomia, igualdade, equanimidade (fairness) e democracia sem rígido controle e possibilidade de recurso.

Urgentemente o CNMP e o CNJ devem reformular seu olhar sobre essa “bolha dos concursos”, no “interior” da qual os examinadores pintam e bordam. Ao se omitirem, esses órgãos de controle externo correm o risco de também institucionalizar uma outra bolha, a de uma “jurisprudência defensiva” com efeitos deletérios, incentivadores de condutas discricionário-arbitrárias.

Bom, ao menos, de vez em quando, há exceções, como a anulação de questão do concurso do MP-MG, que perguntou sobre a teoria da graxa. Luz no fim do túnel ou pisca-pisca?

Post scriptum: a alteração do regime de plantão do TRF4

Causou estupefação na comunidade jurídica a repentina alteração do regime de plantão do TRF4, feita por resolução do Presidente, ad referendum do Plenário. Na verdade, vingando a resolução, o plantão já não será plantão, uma vez que o plantonista terá que perguntar ao relator. Que deverá sempre estar atento. Mesmo no seu descanso. Enfim, a resolução altera tanto o plantão que, na prática, aniquila-o naquilo que é da “essência do plantão”, isto é, a de o plantonista está no lugar de outro juiz e de deter, naquele período “plantonado”, os poderes de juiz natural. Simples e complexo assim. Ou seja, o TRF4 está legislando. Sobre processo. E isso é inconstitucional. A resolução caminha na contramão das recomendações do CNJ e do CPC no que diz respeito ao acesso à justiça, assim como do artigo 5º., XXXV, da Constituição do Brasil. A ver, pois.

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