Opinião

Inteligência artificial — litigantes habituais e eventuais

Autores

  • Dierle Nunes

    é professor da UFMG e da PUC-Minas. Membro honorário da Associação Iberoamericana de Direito e Inteligência Artificial. Diretor do Instituto Direito e Inteligência Artificial (Ideia). Doutor em Direito pela PUC-Minas/Universitá degli Studi di Roma "La Sapienza".

  • Nathália Medeiros

    é advogada mestranda em Direito Processual (PUC Minas).

20 de novembro de 2018, 5h53

A cada dia os profissionais da área do direito são surpreendidos com as potencialidades do emprego de tecnologias e da inteligência artificial.[1] Notícias de advogados e de tribunais que aprofundam seu emprego com o fim de otimizar atividades repetitivas e aumentar a eficiência e performance de nosso sistema jurídico são, de modo recorrente, apresentados com espanto ou em tom festivo.[2]

Já se teve a oportunidade de comentar alguns dos riscos para a advocacia[3] ou de seu emprego para processos decisórios em decorrência dos vieses algorítmicos,[4] entendidos como deturpações cognitivas das máquinas que geram equívocos nos resultados por erros na alimentação de dados durante o aprendizado da máquina – machine learning – (datasets incompletos ou adulterados), ou existência de padrões ocultos que deturpam a realidade dos fatos promovendo generalizações equivocadas, opacidade (não compreensão de como se chegou aos resultados) [5] e geração de preconceito e discriminação.[6]

No entanto, um problema que vem passando ao largo dos debates diz respeito à potencialidade de que este admirável mundo novo aumente a disparidade entre os litigantes uma vez que as decisões estratégicas de parcela destes e de seus advogados serão tomadas com base em poder e acesso desiguais às informações de modo que a capacidade econômica ampliará a disparidade de poder argumentativo[7].

Desde a década de 1970, Galanter[8] pontua as diferenças e vantagens de atuação processual dos litigantes habituais (repeat players) em relação aos litigantes eventuais (one shooters). No entanto, o avanço e o impacto da virada tecnológica no direito, para além de lançar a necessidade de se criar uma nova propedêutica para o direito processual induz preocupações mais sofisticadas.

Em face da percepção de que o aumento no poder da computação é exponencial e não linear, se vislumbra que a capacidade que os computadores possuem de realizar tarefas jurídicas complicadas tende a se sofisticar a cada ano, ampliando as vantagens de profissionais que investirem nesses campos.[9]

O emprego, por exemplo, de Analytics para previsão de resultados de casos mediante a nominada análise preditiva promove o reforço da vantagens dos litigantes habituais. Ordinariamente, advogados aconselham clientes a tomar atitudes baseado em suas intuições e limitado à sua experiência direta ou indireta do direito em casos anteriores. No entanto, já é tecnicamente possível se promover essa análise jurídica mediante a estruturação de informações mediante algoritmos que trabalham com padrões de fatos, julgados e precedentes para prever o resultado de um processo numa infinidade de decisores e órgãos jurisdicionais. Uma das potencialidades da inteligência artificial é a de lidar com big data em bancos de dados desestruturados e deles extrair subsídios decisórios. A vantagem da análise preditiva é que ela fornece um mecanismo para acessar uma vasta quantidade de informações e sistematizá-las de modo a extrair um resultado provável do caso em questão.[10] Como informam McGiniss e Pearce “o poder computacional permite que dados substanciais sejam coletados e organizados” de modo a se extrair padrões entre os dados, sendo que de um adequado aprendizado de máquina (machine learning) se possa analisar regularidades dentro dos padrões.[11]

Ao se conhecer quais são as tendências de julgamento de um magistrado o advogado pode, entre inúmeras possibilidades, promover uma análise de risco da propositura (ou não) de uma demanda, de obtenção de um valor financeiro de acordo, que terá por base o potencial quantum de condenação reduzido em percentual que mitigue os danos de seu constituinte, sem olvidar da antecipação do resultado (ou não) de um recurso.

Como já se pontuou em outra sede[12] a virada tecnológica, sendo irrefreável, irá abalar substancialmente as profissões jurídicas, mas o que não pode se negligenciar é que a mesma possa, de um lado, prejudicar as perspectivas econômicas de muitos advogados, mas de outro, ofertar vantagens para aqueles que conseguirem se adaptar. As tecnologias poderão ajudar os advogados que atuam em prol de litigantes habituais a ampliar seu alcance e expertise e para aqueles que reduzirão seus custos internos, com delegação de atividades repetitivas (elaboração de petições, análise de jurisprudência etc.) para algoritmos especialistas treinados, poderá prestar serviços de qualidade para uma clientela menos abastada mediante ganhos em escala.

O uso da e-discovery[13], apesar de imperfeito, já vem sendo utilizado em alguns tribunais como ferramenta preditiva de descoberta de informações que essencialmente auxiliarão na tomada de decisões de relevância, com dispêndio financeiro e de desempenho idêntico ao humano.[14]

Um exemplo relevante adotado no Brasil é o empregado no STF, pelo uso do projeto Victor, para análise de identidade de temas já adotados em repercussão geral para novos recursos extraordinários interpostos, que já se encontra em fase de testes. Como explicam Nilton Correia da Silva et. al:[15]

O projeto de pesquisa e desenvolvimento, intitulado VICTOR, visa solucionar problemas de reconhecimento de padrões em textos de processos judiciais que chegam ao Supremo Tribunal Federal – STF. Segundo o STF, seriam necessárias 22 mil horas de trabalho de seus funcionários e estagiários para analisar os cerca de 42 mil processos recebidos por semestre. O tribunal também aponta que o tempo que seus funcionários gastam na classificação desses processos poderia ser melhor aplicado em etapas mais complexas do fluxo de trabalho judicial. O objetivo da VICTOR é acelerar a análise dos processos judiciais que chegam ao Supremo Tribunal Federal, utilizando ferramentas de análise de documentos e processamento de linguagem natural. A maioria dos casos chega ao tribunal na forma de volume PDF não estruturado que inclui vários documentos que não foram indexados. Portanto, na primeira fase deste projeto, nosso objetivo é classificar esses documentos em volumes PDF. Este artigo relata os resultados de uma avaliação preliminar em um conjunto de dados contendo 6.814 documentos do STF. Propomos uma arquitetura de rede neural convolucional para este tarefa e mostrar que obtém uma precisão de 90,35% neste conjunto de dados. (Tradução livre)

O TJ-MG igualmente, mediante o projeto RADAR, vem usando ferramentas análogas (via elastic) para estruturar processos idênticos e subsidiar a seus desembargadores a possibilidade de realização de julgamentos conjuntos.[16] Em sessão de 7.11.2018 foram julgados 280 processos repetitivos agrupados mediante o emprego da nova ferramenta. Os processos tratavam da legitimidade do Ministério Público para pleitear remédios e tratamento para beneficiários individualizados (Súmula 766 do STJ) e efeitos jurídicos do contrato temporário firmado em desconformidade com o art. 37, IX, da Constituição Federal (Súmula 916 do STF).[17]

Ao se retornar ao argumento inicial, o emprego de e-descovery por litigantes habituais possui a potencialidade de lhes fornecer vantagens competitivas inegáveis no sentido de promover a análise de uma massa de documentos com bastante proficiência, além de subsidiar informações valiosas durante todo o desenvolvimento da resolução de um conflito, de modo a dar novo sentido à expressão “conhecimento é poder”.

Igualmente, no campo das pesquisas jurídicas (legal research) o uso de algoritmos já permite a evolução de sua obtenção mediante o emprego de palavras-chave para o emprego de análises semânticas (por exemplo o uso do Watson da IBM). Anteriormente, a busca legal informatizada dependia na pesquisa pelas palavras-chave corretas. Com a pesquisa semântica, advogados poderão realizar consultas que informam inclusive a força de precedentes (com seu índice de uso pelos tribunais) através de consultas em linguagem natural com respostas nas quais os computadores responderão semanticamente a essas consultas.[18] Existem igualmente algoritmos narrativos capazes de elaborar petições com proficiência análoga a de um ser humano.

Pontue-se, nesses termos, que a atual mudança tecnológica se distingue em muito das ocorridas no passado. As atuais e as que se projetam não trazem apenas a adoção de novas ferramentas, como na mudança das máquinas de escrever por processadores de texto como o que uso para escrever essas linhas. A virada tecnológica permite a substituição de importantes habilidades jurídicas realizadas por nós, humanos, e sua realização com maior proficiência[19] e menor custo.

De tudo aqui narrado, verifica-se que a necessidade de adaptação dos juristas a esse novo ambiente se mostra essencial, seja construindo novas bases e análises dos institutos jurídicos, por parte da academia, seja adaptando seu modo de atuação prática, por parte de advogados, juízes e membros do Ministério Público. Em especial, no caso da advocacia, a virada tecnológica no direito pode ser um novo fator de geração do profundo abismo entre a advocacia de alta perfomance, que empregará de todas essas ferramentas com cada vez maior proficiência, e aqueles que já dos cursos de direito crendo que bastará ter uma boa formação jurídica para lograr sucesso no ambiente profissional. É preciso revisitar as diferenças entre os litigantes para que os impactos no (perseguido) acesso à justiça democrático não sejam mais complexos do que aqueles que costumeiramente pontuamos.[20] Adaptação para sobreviver é a palavra do momento.

Como disse recentemente Andrew NG, professor de Stanford, “IA é a nova eletricidade”[21] e seguramente sua disrupção será tão (ou mais) emblemática e transformadora. E como se vem insistindo, os juristas precisam se preocupar em problematizar as bases dos institutos jurídicos e os impactos, benéficos e maléficos, que a Inteligência Artificial implementará.


1 Como pontua Hao, apesar de se tratar de um conceito em evolução e mudança Inteligência Artificial de um modo geral refere-se a máquinas que podem aprender, raciocinar e agir por si mesmas. Cf. HAO, Karen. Is this AI? We drew you a flowchart to work it out. MIT Technology review. Disponível em: https://bit.ly/2T5NcsI

2 TJMG. Plataforma Radar aprimora a prestação jurisdicional. Disponível em: https://goo.gl/VCMXmw . TJMG. TJMG utiliza inteligência artificial em julgamento virtual. Disponível em: https://goo.gl/1kZq6N .

3 NUNES, Dierle; RUBINGER, Paula; MARQUES, Ana Luiza. Os perigos do uso da inteligência artificial na advocacia. CONJUR. 09 de jul. de 2018. Disponível em: https://goo.gl/HUj8dt

4 NUNES, Dierle; VIANA, Antônio Aurélio. Deslocar função estritamente decisória para máquinas é muito perigoso. CONJUR. 22 de jan. de 2018. Disponível em: https://goo.gl/KxJYmX . NUNES, Dierle; LUD, Natanael; PEDRON, Flávio. Desconfiando da (im)parcialidade dos sujeitos processuais: Um estudo sobre os vieses cognitivos, a mitigação de seus efeitos e o debiasing. Salvador, Jus Podium, 2018. NUNES, Dierle; MARQUES, Ana Luiza Pinto Coelho. Inteligência artificial e direito processual: vieses algorítmicos e os riscos de atribuição de função decisória às máquinas. Revista de Processo, v.285, nov./2018.

5 BURRELL, Jenna. How the machine ‘thinks’: Understanding opacity in machine learning algorithms. Big Data & Society. 06 de jan. de 2016.

6 “…é necessário aumentar a transparência e a auditabilidade dos sistemas por um lado, desenvolvendo as capacidades necessárias para observar, compreender e auditar o seu funcionamento e, por outro lado, investindo massivamente na pesquisa sobre ‘explicabilidade’” VILLANI, C. Donner uns sens à li’intelligence artificielle: pour une stratégie nationale et européenne. 2018. p. 140-142.

7 NISSAN, Ephraim. Digital technologies and artificial intelligence’s present and foreseeable impact on lawyering, judging, policing and law enforcement. AI & Soc., 2017. p. 459.

8 GALANTER, Marc. Why the "haves" come out ahead: speculations on the limits of legal change. Volume 9:1 Law and Society Review, 1974.

9 MCGINNIS, John; PEARCE, Russel. The great disruption: how machine intelligence will transform the role of lawyers in the delivery of legal services. Fordham Law Review, 2014. v. 82, p. 3046.

10 MCGINNIS, John; PEARCE, Russel. The great disruption: how machine intelligence will transform the role of lawyers in the delivery of legal services. cit, p. 3052.

11 Idem.

12 NUNES; MARQUES. Inteligência artificial e direito processual: vieses algorítmicos e os riscos de atribuição de função decisória às máquinas. cit.

13 Processo pelo qual computadores pesquisam banco de dados e extraem informações estruturadas.

14 Idem. p. 3047

15CORREIA DA SILVA Nilton et al. Document type classification for Brazil’s supreme court using a Convolutional Neural Network. The Tenth international conference on forensic computer science and cyber law – ICOFCS 2018. p. 7-11.

16 “Os magistrados poderão verificar casos repetitivos no acervo da comarca, agrupá-los e julgá-los conjuntamente a partir de uma decisão paradigma.” Acessível em: https://goo.gl/kgz2X2

18 MCGINNIS, John; PEARCE, Russel. The great disruption: how machine intelligence will transform the role of lawyers in the delivery of legal services. cit, p. 3049.

19 Esse ano foi divulgado o caso no qual a LawGeeks venceu advogados na análise de contratos e acordos. Cf. https://goo.gl/UwXuB7

20 NUNES, Dierle; TEIXEIRA, Ludmila. Acesso à justiça democrático. Brasilia: Gazeta Juridica, 2013.

21 “Assim como a eletricidade transformou quase tudo 100 anos atrás, hoje eu realmente tenho dificuldade em pensar em uma indústria que eu não acho que a IA venha a transformar nos próximos anos.” Cf. https://www.gsb.stanford.edu/insights/andrew-ng-why-ai-new-electricity

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    é sócio do Camara, Rodrigues, Oliveira & Nunes Advocacia (CRON Advocacia), doutor em Direito Processual, professor adjunto na PUC Minas e na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Membro da Comissão de Juristas que assessorou na elaboração do CPC/2015 e diretor acadêmico do Instituto de Direito e Inteligência Artificial (Ideia).

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    é advogada, mestranda em Direito Processual (PUC Minas).

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