Punições negociadas

"Acordos não podem ser transformados na pedra angular para condenação"

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18 de novembro de 2018, 5h21

Spacca
Se você é o executivo de uma grande empresa que por acaso se veja acusado de algum crime previsto na Lei Anticorrupção ou na legislação antitruste, pode se preparar para dedicar alguns anos para enfrentar todos os degraus da burocracia estatal. Mas se você é uma autoridade encarregada da investigação e acusação, é bom que esteja preparado para o uso dos programas de acordo em benefício dos próprios criminosos, ou para que a sobreposição de órgãos do Estado sirvam para desestimular a colaboração de investigados com as investigações.

De acordo com o advogado Victor Rufino, especialista em Direito da Concorrência e legislação antitruste, são decorrências inevitáveis do investimento em programas de acordo. O melhor remédio, para ele, é não escolher apenas uma estratégia para confiar. Para nenhum dos lados envolvidos numa negociação, seja de delação premiada, seja de acordo de leniência, no caso das empresas.

Rufino sabe do que fala. Ex-procurador federal, foi procurador do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) durante 11 anos, e chegou a ser procurador-geral do órgão. Era um dos responsáveis pelo programa de leniência do conselho, o premiado órgão antitruste brasileiro. 

Hoje, é doutorando em Direito Concorrencial na USP e sócio do Mudrovitsch Advogados. Aos investigadores, recomenda: “Não fazer do acordo, que é um meio de investigação, o único e sagrado meio de prova, a pedra angular da condenação”.

E aos advogados, explica que a tendência é que as instituições fiquem cada vez mais fortes e articuladas. A solução é articular a defesa também, e se estruturar em diversas áreas diferentes. Embora as técnicas de investigação nas áreas criminal, de concorrência e improbidade sejam diferentes, “as defesas têm de ter certa harmonia, falar a mesma língua”. “O ataque está articulado, a defesa também tem de estar.”

Leia a entrevista:

ConJur — A questão mais importante quando se discute o programa de leniência é a efetividade. A lei não fala na participação do Ministério Público, mas como fazer um acordo sem garantir que o promotor depois não use aquelas informações contra o colaborador?
Victor Rufino —
Não está explícito na lei, mas já existe um projeto para explicitar. Agora, o fato de não estar explícito na lei não quer dizer que não seja juridicamente obrigado. É uma discussão. Mas hoje no Cade todos os acordos são costurados em conjunto com o Ministério Público. E hoje se vê também que o MPF assina alguns acordos de leniência e a contestação vem de outros órgãos, como AGU e CGU, dizendo “não vai ter acordo se a gente não estiver junto”. É um problema para o acordo você não saber qual é a sua esfera de proteção. Lá atrás, o Cade e o MPF perceberam que era melhor estar juntos nos acordos envolvendo cartel para que o colaborador saiba que a proteção prometida será entregue. É importante ele saber antes de tomar a decisão de fazer um acordo.

ConJur — Já há exemplo de acordo de leniência envolvendo todos os atores, que foi o da agência de publicidade. Mas ele demorou três anos para ser assinado. Isso no Cade já está resolvido?
Victor Rufino —
No Cade não precisou apenas da lei, precisou também de tempo. Hoje já vamos para quase cinco anos de “lava jato” e já existe um consenso que a persecução a crimes financeiros e de colarinho branco hoje no Brasil está em outro patamar. São dois fatores. A lei precisa definir claramente os papeis de cada um e quais são os procedimentos e o instituto precisa de tempo para amadurecer. Mas já é seguro dizer que o sistema do combate à corrupção hoje já não é mais o mesmo que era cinco anos atrás. Já temos uma massa crítica considerável de leis, regulamentos, decretos. Nem toda definição precisa vir de lei, mas é melhor que venha, para dar mais estabilidade.

ConJur — E diante de toda essa experiência, e pela sua experiência, o que dá para considerar um bom sistema de leniência?
Victor Rufino —
Na minha dissertação de mestrado analisei o programa de legislação antitruste brasileiro. E há três elementos que são essenciais: previsibilidade quanto aos requisitos e procedimentos; existência de graus de sigilo e estabilidade. É importante que essas três coisas estejam bem definidas em abstrato, com pouca margem para subjetividade.

ConJur — Uma questão que comentávamos antes de começar a entrevista é a interdisciplinaridade dos crimes. Pode explicar melhor?
Victor Rufino —
Por mais que a gente fale de crimes empresariais, o mesmo ato está sujeito a diversas esferas. Se você se envolve num cartel com um concorrente para fraudar uma licitação e no meio do caminho você pagou um agente estatal, você está sujeito à persecução penal tanto na sua pessoa física quanto na pessoa jurídica da sua empresa. Houve ato de corrupção, de improbidade, de fraude à concorrência e você ainda pode sofrer sanções cíveis, a AGU pode cobrar o dinheiro de volta, por exemplo. Então é um ato só que te coloca em contato com cinco zonas diferentes. E hoje o principal problema é como imputar a uma empresa o ato de um executivo.

ConJur — Que muitas vezes age sem a direção da empresa saber
Victor Rufino —
Essa é uma das questões-chave que o mundo tenta resolver. O Brasil não é uma ilha nisso. A legislação anticorrupção e antitruste vêm de compromissos internacionais assumidos pelo Brasil, porque se você cometeu um ato ilícito e o dinheiro decorrente desse ato passa pelo sistema financeiro internacional, você precisa dialogar com autoridades de diversos países. A própria “lava jato” oferece dezenas de exemplos disso.

ConJur — Agora, a pergunta inevitável é: como se defender de um sistema tão integrado e tão internacionalizado? Não adianta mais contratar um criminalista, é preciso se defender em diversas frentes.
Victor Rufino —
Uma solução que vem sendo buscada por todos é criar sistemas mais rígidos de compliance para poder navegar nesse cipoal de leis que têm critérios diferentes. Existe um interesse em se preparar e em entender previamente os problemas que podem acontecer.

ConJur — E como equacionar isso com o objetivo da empresa, que é lucrar, e não obedecer a programas de compliance?
Victor Rufino —
É difícil. Todos esses ilícitos vão na direção do interesse legítimo da empresa. Um adultério, por exemplo, vai contra o objetivo legítimo de uma relação monogâmica. Agora, um ilícito do colarinho branco está indo no mesmo objetivo da atividade legítima da empresa. É um problema de identificação. Em casos de concorrência, especialmente.

ConJur — Por quê?
Victor Rufino —
Porque a lei diz que não há problema em tentar destruir seu concorrente, desde que você não use de mecanismos desleais. Mas é difícil delimitar essa fronteira, é preciso conversar constantemente com o compliance, com a advocacia preventiva, para não cometer nenhum tipo de deslize e nem ser acusado injustamente de uma conduta dolosa. Então é preciso falar essas diversas línguas. Hoje, a maior parte das operações de busca e apreensão que o Cade faz para combater carteis decorre de acordos de leniência assinados em parceria com o MPF. E esse tipo de ordem só pode ser expedida por um juiz. Portanto, numa mesma operação já estão sendo buscadas informações para instruir um processo criminal e um de ordem concorrencial. Justa ou injustamente, você está sendo acusado em duas esferas diferentes e as defesas, embora as técnicas sejam diferentes, têm de ter certa harmonia, falar a mesma língua, porque o mundo hoje é esse. O ataque está articulado, a defesa tem de estar também.

ConJur — Recentemente, entrevistamos um ex-procurador do Departamento de Justiça dos Estados Unidos. E a orientação dele foi bem clara: “Se por acaso acontecer alguma coisa na sua empresa, esteja preparado para colaborar, porque não tem defesa”.
Victor Rufino —
Os EUA têm um sistema em que quase tudo é resolvido por acordo. Na esfera federal, mais de 90%. O Brasil ainda está introduzindo sistemas de acordo — hoje mais do que ontem, mas ainda estamos muito longe dos EUA, que não necessariamente é o desejável. Hoje há muito questionamento na doutrina norte-americana se esse sistema não está indo longe demais. Agora, o fato é que, no Brasil, hoje você já pensa em fazer um acordo, se é conveniente para a defesa ou não. Não é o objetivo final de uma defesa, mas é uma estratégia que tem de ser pensada. Se você vai para um acordo, você tem que saber exatamente o que está fazendo, por causa daquelas cinco frentes que mencionei. É impossível ter um problema no Brasil hoje que comece e termine com uma autoridade só.

ConJur — É onde eu estava querendo chegar: com tantas frentes e com autoridades tão articuladas e aparelhadas, a defesa passou a ser uma tarefa um tanto cruel, não?
Victor Rufino —
Não acho que o fato de você ser investigado signifique automaticamente que você tenha de levantar a bandeira branca e ir para a colaboração. Depende de cada caso. Mas, com certeza, sabendo que são vários os balcões que você vai ter que ir, é melhor que se esteja preparado. Se olharmos para a legislação de controle no Brasil dos anos 1990 para cá, o problema foi deixando de ser puramente criminal com as atribuições do TCU, AGU, Cade… O arsenal hoje é forte e tende a ficar mais, porque, à medida que as autoridades conversam mais, a coisa tende a ficar mais robusta.

ConJur — Então essa advocacia dita clássica, de quem se recusa a fazer delação, por exemplo, está perdendo espaço?
Victor Rufino —
A questão é a seguinte: se você for apenas para o lado criminal, pode até conseguir uma boa solução para o indivíduo. Mas será uma boa solução para a empresa? E a empresa quer continuar, tem operações grandes e caras, milhares de empregados, resolver a questão da liberdade do executivo é só uma parte do problema.

ConJur — A sua dissertação fala em determinado trecho que o dilema do prisioneiro, algo que está na moda, especialmente entre os envolvidos com a “lava jato”, não é suficiente nos casos de concorrência. É isso mesmo?
Victor Rufino —
Toda teoria da colaboração fala no dilema do prisioneiro, que é uma decorrência da teoria dos jogos. E o fundamental dela é matemático. O professor John Nash, que a desenvolveu, precisava de um exemplo para explica-la aos alunos e criou esse dilema. E basicamente ele diz que em uma circunstância em que há uma autoridade com capacidade de punir e há diversas pessoas presas, acusadas dos mesmos crimes, ele vai ajudar quem colaborar primeiro com as investigações. E os programas de colaboração foram feitos para explorar essa constatação.

ConJur — E por que esse modelo não é eficiente?
Victor Rufino —
O que eu digo ali na dissertação é que tem outros fatores que pesam na escolha de quem vai colaborar, não apenas o dilema do prisioneiro. A escolha com base no dilema é feita em condições ideais, é um exemplo hipotético, didático. Mas se não for criado um ambiente adequado para as condições ideais serem deflagradas, o estado natural de quem está cometendo uma infração concorrencial é não colaborar, não delatar.

ConJur — Por quê?
Victor Rufino —
Na prática a gente vê que os vínculos que unem as pessoas são muito fortes. Às vezes são vínculos religiosos, ou são pessoas que frequentaram a mesma faculdade, se conhecem há muitos anos, enfim. São seres humanos.

Em segundo lugar, são pessoas que estão ganhando com aquela situação, e para cometer o mesmo crime juntos tiveram que superar muitas das barreiras que por vezes afastam as pessoas. Então elas confiam muito umas nas outras, confiam que o outro cara não vai falar, então ele também não vai falar. E romper com esse vínculo é uma decisão muito difícil.

Aí temos a seguinte situação: os vínculos são fortes, a confiança é alta, os ganhos com as infrações são altos. E o dilema do prisioneiro passa a ser “eu não vou falar nada, porque sei que ele também não vai falar nada e nós vamos continuar ganhando juntos”.

ConJur — O que fazer, então?
Victor Rufino —
Para se ter um programa que seja firme é preciso mexer em outras variáveis, porque os vínculos não vão ser superados se os ganhos continuarem para todos. O que deve ser colocado na mesa é um benefício tão grande que o cara veja que vale mais a pena para ele colaborar do que continuar cometendo a infração e a autoridade mostre que se ninguém colaborar e tudo for descoberto mesmo assim, vai ser pior para todo mundo. Para ter um programa sólido de leniência, a autoridade precisa apresentar investigações eficientes, precisa mostrar para os investigados que ela vai chegar à informação sozinha, mas ele pode ajudar e ser beneficiado com isso.

ConJur — A questão moral entra na equação também, não?
Victor Rufino —
O dilema moral é uma das coisas que mais favorecem o programa, porque tem muita gente que quer sair do esquema, mas não consegue. Vai fazer o quê? Confessar e ser preso? Agora, se existe uma forma de as pessoas contarem o que está acontecendo com algumas proteções, se o Estado mostra que existe uma forma de o executivo falar “a investigação interna encontrou esse problema e existe uma solução que não é escondê-lo”, é diferente. Se o acordo sai da mesa, o diretor vai chegar para o conselho e falar “vamos confessar e pagar uma multa que pode chegar a 20% do nosso faturamento” ou tentar esconder o problema?

Mas há ainda o custo pessoal, de gente que decide que prefere dormir em paz do que faturar mais alto e confessa. Tem a decisão pragmática, do executivo que sente que será excluído do cartel e decide confessar antes que seja prejudicado. Enfim, há várias situações que levam à colaboração, e para a autoridade não interessa muito.

ConJur — E o que fazer quando há o que o ministro Gilmar Mendes chama de “concerto de versões” para prejudicar ou beneficiar alguém? Sempre falamos disso em tese, “quando acontecer a gente vê”, mas isso aconteceu diversas vezes durante a “lava jato”, e com mentiras comprovadas.
Victor Rufino —
Esse é um problema inerente aos programas de acordo, mas não é recomendável abandoná-los por causa dos problemas. O sistema jurídico vai chegar a uma solução. O que recomendo são duas posturas: documentar o máximo possível do que for dito e revelado, sempre garantindo algum grau de sigilo, e sempre ter um moderado ceticismo em relação ao que é relatado. É do ser humano ficar com a confirmação de viés. Por isso é importante não fazer do acordo, que é um meio de investigação, o único e sagrado meio de prova, a pedra angular da condenação.

ConJur — Quer dizer, é mais eficiente trabalhar com a possibilidade de erro do que fingir que ele não existe.
Victor Rufino —
Ter consciência de que, embora seja um mecanismo fundamental, não é a solução mágica para todos os problemas. A literatura mostra diversos riscos e as evidências desses problemas são arrasadoras. Tanto da teoria dos jogos quanto de qualquer outra. Mas não é porque as unhas vão voltar a crescer que vai parar de cortá-las.

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