Diário de Classe

Os arroubos de linguagem do presidente Bolsonaro e Escola sem Partido

Autor

  • André Del Negri

    é pós-doutor em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) doutor em Direito Processual pela PUC Minas mestre em Direito Constitucional pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e membro do Dasein – Núcleo de Estudos Hermenêuticos.

17 de novembro de 2018, 7h10

Meus pensamentos estão com os escritos de Ana Laura Prates, do movimento Psicanalistas pela Democracia, que em texto intitulado “Lápide”, trouxe abundantes recortes reflexivos para a sala de aula (ler aqui), ainda mais em tempos bastante preocupantes do nosso país,talvez mais agora do que antes. É que em sociedades abertas (democráticas) o importante é estar sempre atento para não fechar os olhos para os riscos.

Claro, tudo depende do nosso ponto de vista em relação ao assunto. O meu coincide com o de David Deutsch, com lastro em Popper, que a democracia avança muito mais quando conseguimos apontar os equívocos na atuação de parlamentares e presidentes eleitos. [[1]]

Bem, de certa maneira, ainda estamos em um clima de transição de governo, com negociações e especulações de um grupo político que celebra a vitória depois de uma guerra eleitoral. Todavia, o que tem sido noticiado não é de cruzar as pernas e manter a situação. A grande questão é afastar obscuridades antes que causem estragos demais.

É de uma regularidade ouvir as novas pautas do próximo governo. A equipe montada ainda parece bem agarrada à guerra ideológica e a base eleitoral sinaliza com pautas barulhentas. Ao assumir um país com tantos problemas graves, o presidente Bolsonaro muitas vezes ideologiza tudo (vezes demais, até) e traça alguns pontos melindrosos. Até agora, segundo informações amplamente noticiadas na imprensa nacional, o núcleo bolsonariano sinaliza mudanças no corpo diplomático do Itamaraty para se livrar do “marxismo”, outrossim simboliza aprovar uma lei que torne crime o “comunismo”, bem como ameaça cortar relações diplomáticas com Cuba, da mesma maneira que o núcleo político promete um projeto de “Escola sem Partido”, um combo que empurra até um “disque-denúncia” contra professores.

As sinalizações incorrem na paradoxia de, ao menos livrar-se dos perigos de um suposto “comunismo”, como se isso tivesse sido implementado no Brasil, sem a indagação sobre o significado de “comunismo”. A nostalgia de velhas e retóricas expressões funciona como um disfarce, de tal modo a encobrir os reais jogos, porque distorções propositais são plantadas a fim de atender a outros propósitos, aqui para mencionar Slavoj Žižek e o Um mapa da ideologia.[[2]]

Que fique claro, de maneira muito resumida: para existir o “comunismo”, nas linhas de Marx e Engels, além de superada a etapa do socialismo, necessário, pois, que se tenha eliminado a propriedade privada dos meios de produção[[3]].Com essa etapa implementada, as propriedades fundiárias (terras, terrenos), ninguém as teriam mais. Constatando a total impossibilidade disso no Brasil – até mesmo porque existe o direito de herança –, quem, ainda hoje, insiste em caçar o “comunismo”,dá socos no ar. Diante do arroubo de linguagem do presidente Bolsonaro, que incorre em abundante senso comum, algumas expressões têm necessidade de ajustes. Quando esses tipos de comentários circulam por aí, sem o contraponto devido, a situação piora, porque os equívocos são clonados por mais pessoas. Quanto mais cedo corrigirmos, melhor.

Afora esses reparos, de tudo dito até agora, recortando o projeto de “Escola sem Partido”, vê-se que o tema em causa traz uma questão que nenhuma compatibilidade guarda com a Constituição de 1988. Lenio Streck já escreveu belíssimos textos, aqui na ConJur, a respeito (ler colunas aqui e aqui). Outro pronunciamento instigante foi o da reitora da PUC-SP, professora Maria Amalia Pie Abib Andery, que foi direto ao ponto: o “Escola sem partido, no fundo, é de um só partido” (assista aqui).

O projeto de uma “Escola sem Partido” não cria uma perspectiva democrática. Aliás, é difícil saber qual democracia se pretende na futura administração Bolsonaro, porque o projeto seria desastroso se implementado no Brasil, país com 35 partidos políticos e uma Constituição com viés social. Em termos jurídicos, parece claro que a ideia de uma “Escola sem Partido” colide com o artigo 1º, igualmente com o artigo 3º, I e IV, assim como esmurra o conteúdo do artigo 206, que, em letras garrafais, assegura que o ensino será ministrado com base nos princípios da “liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saberˮ. Parece óbvio – embora o óbvio não seja visto pelos idealizadores do projeto.

É verdade que “neutralidade” é algo irrealizável, mas a “imparcialidade” praticável. Como bem disse Streck, “o que deve ser combatido são visões relativistas” (aqui). De um passo, os professores precisam conferir caráter científico às aulas. Isto porque o racional “não é uma crença”, mas a suspensão dela, como bem coloca Gustavo Caponi. [[4]]

Não esqueçamos que chegamos ao ponto de fracasso no ideal da educação. Por quê? Ora, não temos professores bem remunerados, tampouco escolas funcionando bem. Para não esquecer, sequer derrotamos o analfabetismo. Logo, a base eleitoral de Bolsonaro erra no diagnóstico. É nítido que há problemas muito mais graves no sistema educacional. Aliás, nem precisava escrever isso aqui, mas legisladores e Executivo deveriam se preocupar mais em construir escolas de qualidade.

Ironicamente, muito bom! De um ângulo, a estrutura mental do próximo governo é cristã, e o curioso é que a base eleitoral ainda fala em “escola sem partido”. Inegável: no fundo, tem partido! Enquanto isso, volto ao excelente texto de Ana Laura Prates, agora de forma muito séria, para encerrar esta coluna. No Brasil, esquecemos muito rápido a morte trágica do menino Marcus Vinícius, na Favela da Maré, no Rio, atingido pelas costas, “que imaginava ao menos uma escola como abrigo” (grifei!). Como bem escreveu Ana, o menino Vinícius “estava na escola pública, sem partido, mas em um estado sob intervenção militar”.

Isso significa que estamos diante de uma situação clara, sofridamente vivida, de inúmeras omissões estatais. Pois bem: incumbe ao Estado o dever de detectar prioridades e resolvê-las, além de manter uma defesa de direitos constitucionalizados no país. Se não houver essa simetria, vandalizam a democracia e o Estado de Direito. O governo dá claros sinais de que gira em falso e traz uma carga retórica com floreios de senso comum. A sala de aula serve para apuração de criticidade via problematizações de temas, como este que acabamos de apresentar aqui. No fundo, o “Escola sem Partido”, longe de ser um local de debate crítico, nada mais é do que um credo ideológico. Em outras palavras, um devaneio.

[1] DEUTSCH, David. The beginning of infinity: Explanations that transform the world. New York: Viking, 2011, p. 345. Ver ainda: POPPER, Karl. A sociedade aberta e seus inimigos. Belo Horizonte: Editora Itatiaia; São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1987.

[2] ŽIŽEK, Slavoj. O espectro da ideologia. In: ŽIŽEK, Slavoj (Org.). Um mapa da ideologia. Rio de Janeiro: Contraponto, 1996.

[3] MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. O Manifesto Comunista. 5ª ed. São Paulo: Editora: Global, 1985.

[4] CAPONI, Gustavo. Karl Popper e a filosofia clássica alemão. In: PEREIRA, Júlio Cesar Rodrigues (Org.). Popper: as aventuras da racionalidade. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1995, p. 37, 40.

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    é doutor em Direito Processual pela PUC Minas e mestre em Direito Constitucional pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Faz estágio pós-doutoral em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) e integra a equipe do Dasein – Núcleo de Estudos Hermenêuticos.

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