Opinião

Decisão de criminalizar a inadimplência tributária é equivocada

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13 de novembro de 2018, 5h19

A comunidade jurídica está em alerta com o atual entendimento da 3ª Seção do STJ. Por isso nos questionamos: é crime declarar e não recolher ICMS?

A sociedade brasileira está tão cansada das notícias de corrupção, abusos e falcatruas que aplaudiu a punição daqueles que deixam de recolher os tributos como um meio de fazer justiça.

Porém, esse não é o melhor caminho e, caso prevaleça o entendimento firmado pela 3ª Seção do STJ (HC 399.109), nos levará a uma injustiça: inadimplência não é crime, não está tipificada na legislação penal e não pode ser punida com pena de prisão.

O STF já reconheceu, em sede de repercussão geral, que as condutas tipificadas nos crimes contra a ordem tributária (Lei 8.137/91) não se referem ao simples inadimplemento fiscal. Visam punir os atos praticados com dolo, com a finalidade de sonegar tributo, sendo necessário haver fraude, omissão ou prestação de informações falsas para caracterização da conduta criminalizada (ARE 999.425).

A 1ª Seção do STJ entende que os sócios não podem ser responsabilizados em caso de mera inadimplência tributária por ausência de ofensa à lei (Súmula 430). Não se pode esquecer também da garantia constitucional de impossibilidade de prisão por dívida (artigo 5º, LXVII), reconhecida, inclusive, internacionalmente pelo Pacto de San José da Costa Rica, do qual o Brasil é signatário (Convenção Americana de Direitos Humanos).

Diante da inadimplência, ao Fisco é conferido meios e procedimentos especiais para a cobrança dos débitos fiscais (inscrição em dívida ativa, ajuizamento de execução fiscal, privilégio no concurso de credores etc.), não sendo admitida coerção para obrigar o pagamento do tributo, como já decidido pelo STF (súmulas 70 e 323).

O equívoco da criminalização da inadimplência tributária cometido pela 3ª Seção do STJ decorre da interpretação da definição do crime contra a ordem tributária: deixar de recolher, no prazo legal, o valor do tributo, descontado ou cobrado, na qualidade de sujeito passivo da obrigação e que deveria recolher aos cofres públicos (artigo 2º, II, Lei 8.137/90).

Para elucidação dos leigos: é o crime de apropriação indébita tributária, semelhante àquele previsto no artigo 168 do Código Penal, em que o agente se apropria da coisa alheia que detém a posse.

O exemplo clássico desse crime é o da retenção em folha de salário, em que o empregador (sujeito passivo da obrigação tributária), ao efetuar o pagamento do salário do funcionário (contribuinte), retém e deixa de recolher o valor de IR/INSS devido pelo funcionário. O valor retido é do funcionário, mas o empregador assume a responsabilidade de recolher o tributo. No caso de retenção (do dinheiro do funcionário) sem recolhimento, há dolo, configurando a prática do crime contra a ordem tributária.

Essa tipificação é completamente diversa da mera inadimplência fiscal analisada pela 3ª Seção do STJ.

O ICMS é um tributo sujeito ao princípio da não cumulatividade. Isso significa que ele não incide cumulativamente na cadeia. Funciona assim: o tributo é destacado na nota fiscal em cada operação tributada. O destinatário da nota fiscal não é o contribuinte do imposto, apenas paga o valor da nota fiscal na qualidade de adquirente. O contribuinte do imposto é o emissor da nota fiscal, que apurará o imposto de acordo com a sistemática de recolhimento do ICMS.

Essa sistemática é individualizada em cada contribuinte (quem emite a nota fiscal), por meio de seus livros fiscais. Cada aquisição tributada dá direito a crédito. Cada saída tributada gera um débito. Os créditos e débitos de cada operação consolidados serão declarados em GIA (Guia de Informação e Apuração do ICMS), onde haverá o encontro de contas. Havendo diferença negativa, haverá ICMS a ser recolhido (imposto declarado). Havendo diferença positiva, haverá crédito do imposto que poderá ser utilizado no encontro de contas do mês subsequente.

Como se pode observar, o valor do ICMS destacado na nota fiscal não é o mesmo ICMS declarado e devido pelo contribuinte. Esse último, denominado ICMS-Próprio, é o que representa o verdadeiro débito devido aos cofres públicos, o qual não é descontado nem cobrado do adquirente. Portanto, ao deixar de recolher o débito de ICMS declarado em GIA, o contribuinte não está se apropriando de coisa alheia nem se enquadrando na hipótese prevista no artigo 2º, inciso II, da Lei 8.137/90. É apenas inadimplência.

É importante ressaltar que, quando o contribuinte recolhe ICMS-Próprio a maior ou indevido, somente ele pode pleitear a restituição do indébito, ainda que dependa da autorização do seu adquirente (artigo 166 CTN). O adquirente, mesmo tendo arcado com o respectivo encargo econômico, não é contribuinte nem responsável pelo recolhimento do tributo, o que fortalece nossa tese quanto à ausência de apropriação indébita quando da ausência de recolhimento do tributo.

Já a ausência de recolhimento do ICMS/ST é diferente. No regime de substituição tributária, a nota fiscal é emitida com o destaque do ICMS-Próprio, como descrito acima, acrescido do destaque do ICMS/ST devido pelo adquirente (substituído) na operação seguinte, mas que, pela sistemática da substituição tributária, é antecipado, mediante o desconto pelo substituto tributário que fica responsável pelo recolhimento em favor do substituído. O valor destacado de ICMS/ST é do terceiro (substituído) e, por isso, quando não é recolhido, configura exatamente o crime contra a ordem tributária.

Por serem situações diversas, a sistemática de recolhimento do ICMS-Próprio e do ICMS/ST não se confunde, e a criminalização da ausência de recolhimento do ICMS/ST não se equipara a mera inadimplência do recolhimento do ICMS-Próprio.

Vale salientar que, ao contrário do que constou da decisão da 3ª Seção do STJ, o julgamento que afastou a incidência do ICMS das bases de cálculo de PIS/Cofins pelo STF (RE 574.706) não modifica esses argumentos nem tem o condão de criminalizar o não recolhimento do ICMS-Próprio declarado e não pago.

Na oportunidade, o STF reconheceu que o valor do ICMS destacado na nota fiscal não é “receita” do contribuinte e não integra o seu patrimônio, representando mero ingresso financeiro a ser escriturado para posterior apuração do imposto devido. Por ser apurado na escrita fiscal e declarado em GIA, o débito de ICMS é do contribuinte e, caso eventualmente não seja recolhido, não configura apropriação indébita tributária, mas apenas mera inadimplência do contribuinte que não pode ser criminalizada.

Nossos argumentos ficam mais fortes considerando o fato de que o contribuinte que declarou o tributo e, de boa-fé, não efetuou seu recolhimento — por motivos diversos, tais como ausência de caixa, crise financeira, priorização do pagamento de funcionários — não pode ser tratado como o criminoso que sonega, deixa de prestar informações ao Fisco, tentando burlar o sistema mediante fraude, dolo ou simulação. A primeira hipótese é a mera inadimplência tributária que não pode ser criminalizada por ausência de tipificação legal, enquanto a segunda representa crime à ordem tributária e deve ser penalizada nos exatos termos previstos na Lei 8.137/90.

Portanto, a decisão da 3ª Seção do STJ, acompanhada de inúmeros outros precedentes que vêm caminhando no mesmo sentido, precisa ser revista, seja pela Corte Especial do STJ, seja pelo STF, pois o equívoco de criminalizar o mero inadimplemento tributário não representa forma de fazer justiça neste país.

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