Paradoxo da Corte

A cruzada da Aasp contra a perversidade da jurisprudência

Autor

  • José Rogério Cruz e Tucci

    é sócio do Tucci Advogados Associados ex-presidente da Aasp professor titular sênior da Faculdade de Direito da USP membro da Academia Brasileira de Letras Jurídicas e do Instituto Brasileiro de Direito Processual e conselheiro do MDA.

13 de novembro de 2018, 7h00

Relembro que a prestigiosa Associação dos Advogados de São Paulo patrocinou importante encontro, no dia 20 de setembro, apoiado por outras entidades de classe, que reuniu muitos advogados, cuja temática fulcral recaiu sobre os estratagemas pretorianos, que, ao longo do tempo, têm sido criados pelos tribunais, os quais, além de manifestamente ilegais, conspiram, a um só tempo, contra o direito fundamental de acesso à jurisdição e a garantia do devido processo legal.

Sob o título “Jurisprudência defensiva: a quem interessa? A oposição da advocacia a essa prática dos tribunais”, aquele importante evento culminou com a aprovação de um manifesto: A advocacia se opõe à prática da jurisprudência defensiva pelos tribunais brasileiros, contendo cinco conclusões ratificadas à unanimidade dos presentes, a saber:

“1. A ‘jurisprudência defensiva’ ofende as garantias constitucionais de acesso à jurisdição e ao devido processo legal; 2. A ‘jurisprudência defensiva’ ofende o princípio da primazia do julgamento do mérito, positivado no art. 4º do Código de Processo Civil, e refletido em cerca de duas dezenas de dispositivos desse mesmo diploma; 3. As normas que estabelecem os pressupostos recursais, por serem regras de restrição, devem ser interpretadas restritivamente; 4. O congestionamento dos Tribunais Superiores deve ser resolvido por meio de providências administrativas e de gestão pública; jamais com medidas cerceadoras de direitos fundamentais dos cidadãos; e 5. O acesso ao Judiciário e a garantia de julgamento de mérito constitui um pilar do Estado Democrático de Direito, pelo qual a advocacia sempre lutou e sempre lutará incansavelmente”.

Pois bem, continuando a protestar, de forma diuturna e corajosa, contra a impropriamente denominada “jurisprudência defensiva”, o Conselho Diretor da Aasp, sob a presidência segura do estimado colega Luiz Périssé Duarte Júnior, a guisa de inauguração da nova unidade da entidade — localizada na capital paulista, na confluência da alameda Santos com a rua Augusta, para servir de apoio aos respectivos associados e, sobretudo, para dilatar a profícua atividade cultural —, convocou, em caráter extraordinário, o Colégio Superior de ex-presidentes da associação, visando discutir estratégias de combate às novas investidas daquela abominável prática de inadmitir o conhecimento de recursos, em detrimento do direito subjetivo dos jurisdicionados.

Importa frisar que tal expediente não encontra paralelo nas mais diversificadas experiências jurídicas do mundo ocidental, que de algum modo guardam similitude com o sistema recursal brasileiro.

Reunidos em expressivo número, os atuais conselheiros da Aasp e 11 de seus ex-presidentes, inclusive de seu ilustre decano, Mário Sérgio Duarte Garcia, a conclusão extraída, na mesma linha das premissas traçadas no já referido manifesto, foi a de que a denegação de justiça decorrente da incidência da “jurisprudência defensiva (rectius: perversa)” não ofende apenas o exercício profissional dos advogados, mas, na verdade, afronta diretamente o direito das partes e, assim, da sociedade como um todo. É dizer: o não conhecimento de um recurso fundado em premissa exclusivamente formal e estéril acaba fulminando, ex radice, as expectativas dos litigantes quanto à tutela jurisdicional que lhes é assegurada, com todas as letras, pelo artigo 5º, inciso XXXV, da Constituição Federal: “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”.

Como já tive oportunidade de ressaltar em anterior estudo, para combater essa verdadeira vertente inescrupulosa dos tribunais pátrios, inexcedível sob a vigência do revogado Código de Processo Civil, o novo diploma processual contemplou três regras preciosas, em defesa da sociedade brasileira. Refiro-me aos artigos 932, 1.007 e 1.029, parágrafo 3º, que têm por precípua finalidade contornar o não conhecimento dos recursos por defeitos formais.

Não se pode olvidar outrossim o disposto no artigo 86 do Regimento Interno do próprio Superior Tribunal de Justiça, assim redigido: “Se as nulidades ou irregularidades no processamento dos feitos forem sanáveis, proceder-se-á pelo modo menos oneroso para as partes e para o serviço do Tribunal”.

Diante da clareza desses preceitos legais, os advogados, de um modo geral, que exercem a profissão na esfera do contencioso imaginavam que em boa medida o legislador lograra banir ou, pelo menos, minimizar aquele questionável posicionamento então sedimentado, em especial, nas nossas cortes superiores.

Contudo, a prática tem revelado, de forma contundente e lamentável, que, apesar da vigorosa tendência legislativa expressada no Código de Processo Civil de 2015, acima referida, não se entrevê qualquer movimento — de quem detém a atribuição de interpretar e aplicar as normas jurídicas — vocacionado a solucionar de forma inteligente e institucional o problema da enorme pletora de recursos.

São verdadeiras discussões improdutivas, que não levam a nada, senão o desiderato determinado de obstar o conhecimento do recurso, para diminuir, de forma deliberada, o acervo pessoal de cada julgador!

Convenhamos, toda discussão, por exemplo, que se trava atualmente nos domínios do Superior Tribunal de Justiça acerca do feriado do Carnaval poderia ser resolvido de modo razoável e descomplicado, valendo-se inclusive, por analogia, da regra do artigo 81 do Regimento Interno da corte, que arrola, entre os feriados naquele tribunal, “os dias de segunda e terça-feira de carnaval” (inciso III).

Assevera, a propósito, Gustavo Favero Vaughn, que: “a falta de prova acerca da ocorrência de feriado local no ato de interposição do recurso constitui mero vício de forma, que nem de longe pode ser compreendido como grave. Trata-se de mera ausência de regularidade formal do recurso, que, como se sabe, é requisito de admissibilidade extrínseco, e não de intempestividade propriamente dita. Justamente por isso que o Código de Processo Civil confere à parte interessada a possibilidade de corrigir eventual vício formal identificado pelo relator ou, então, pelo próprio órgão colegiado. É preciso que fique bem claro que o interessado tem a faculdade de corrigir a eiva, ao passo que o Poder Judiciário tem o poder-dever de possibilitar essa correção. Não se nega que o parágrafo 6º do artigo 1.003 do Código de Processo Civil impõe à parte recorrente o dever de fazer prova — em regra, documental — do feriado local no momento em que for interposto o recurso. De outra sorte, nada condiciona a comprovação da ocorrência de feriado local somente ao ato de interposição do recurso; aqui, a ausência de tal advérbio tem relevância na exegese da regra legal. Ou seja: o artigo 1.003, parágrafo 6º, não preconiza que o vício da falta de comprovação do feriado local é insanável” (Jurisprudência Defensiva e Processo Incivil, trabalho inédito, 2018, p. 26).

Seja como for, dúvida não há de que os tribunais devem seguir a lei e não estabelecerem, a seu exclusivo talante, sem o escrutínio da sociedade, meios artificiosos para evitar o conhecimento e respectivo julgamento dos recursos.

Daí a oportunidade, a merecer todo apoio, da meritória cruzada iniciada pela Associação dos Advogados de São Paulo, que, agora, procura mobilizar os mais diversos seguimentos da sociedade brasileira na luta pelo restabelecimento da segurança jurídica, que deve sempre pautar a interpretação e a aplicação do Direito.

Autores

  • é advogado, professor titular e ex-diretor da Faculdade de Direito da USP, ex-presidente da Associação dos Advogados de São Paulo (Aasp) e membro da Academia Brasileira de Letras Jurídicas.

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