Opinião

Regular o artigo 146-A da Constituição é essencial para preservar a livre-iniciativa

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13 de novembro de 2018, 5h45

Recentemente, foi aprovado pela Comissão de Assuntos Econômicos o Projeto de Lei do Senado 284/2017, em que é relator o senador Ricardo Ferraço.

O projeto de lei complementar regula o artigo 146-A da Constituição Federal e autoriza a União, os estados, o Distrito Federal e os municípios a estabelecer, mediante lei específica, critérios especiais de tributação para coibir práticas que venham a interferir com o regular funcionamento do mercado.

Permite que sejam adotadas medidas de controle, como a manutenção de fiscalização ininterrupta no estabelecimento do sujeito passivo; o controle especial do recolhimento do tributo e das declarações do sujeito passivo; a instalação de equipamentos de controle de produção e estoque; a antecipação ou postergação do fato gerador; a concentração da incidência do tributo em determinada fase do ciclo econômico; a adoção de base de cálculo equivalente ao preço que um produto similar alcançaria em condições de livre concorrência e a adoção de regime de estimativa. A finalidade é estabelecer controles especiais para setores de combustíveis e biocombustíveis, cervejas e bebidas frias, cigarros, bem como outros tipos de produtos mediante requerimento de entidade representativa da categoria ou órgão de defesa da concorrência.

Essa proposta é da maior relevância, pois, desde a promulgação da Emenda Constitucional 42/2003, que introduziu o artigo 146-A da Constituição Federal, aguardava-se a edição de uma lei complementar que estabelecesse “critérios especiais de tributação, com o objetivo de prevenir desequilíbrios da concorrência”.

Os estados do Rio Grande do Sul, de Pernambuco e da Bahia, entre outros, dispõem de legislação específica para coibir essas práticas. No entanto, os critérios adotados não são uniformes[1], o que causa complexidade e insegurança jurídica aos contribuintes.

É sabido que a tributação interfere na concorrência por impactar o custo de produtos e serviços, podendo provocar desequilíbrio de mercado[2]. A falta de pagamento de tributos, sobretudo de impostos indiretos, confere ao contribuinte que não os pagou vantagem extraordinária em comparação aos que pagaram. A esse respeito, em caso que analisou o artigo 146-A, na indústria de cigarros, o Supremo Tribunal Federal decidiu:

“(…) perante as características desse mercado industrial concentrado, em que o fator tributo é componente decisivo na determinação dos custos e dos preços do produto, o descumprimento das obrigações fiscais é aqui acentuadamente grave, dados seus vistosos impactos negativos sobre a concorrência, o consumidor, o erário e a sociedade. E representa, ainda, tentativa de fraude ao princípio da igualdade e fuga ao imperativo de que a generalidade dos contribuintes deva pagar tributos”[3].

De fato, há muito se observam práticas prejudiciais ao mercado como, por exemplo, adulteração de produtos, utilização abusiva de medidas judiciais para afastar a tributação, sonegação e não pagamento sistemático de tributos. O tema é relevante, tendo em vista que afeta inúmeros setores da economia, como o de cigarros, combustíveis[4] e bebidas.

Compete ao poder público tomar as medidas necessárias para que o tributo seja neutro em relação ao funcionamento do mercado. É o que se denomina “princípio da neutralidade tributária”, o qual surte dois efeitos: 1) impede que a norma tributária seja formulada de modo a privilegiar competidores (desigualdade na lei); e 2) exige a adoção de medidas corretivas destinadas a tornar eficaz a carga tributária legalmente estabelecida (desigualdade na aplicação da lei).

Nesse contexto, é importante tornar claras e, especialmente, diferenciar as situações em que o contribuinte exerce atividades regulares protegidas pelas súmulas 70, 323 e 547 do STF daquelas em que as sanções são mera consequência da realização de atividades irregulares e, como tais, passíveis de repressão pelo ordenamento jurídico[5].

Como apontei recentemente em artigo ao Consultor Jurídico, é necessário distinguir entre o devedor eventual, o reiterado e o contumaz[6].

O devedor eventual é o que simplesmente não paga tributos em caráter episódico, não rotineiro. Por vezes, assim age por possuir razões jurídicas ou econômicas relevantes, como a ilegitimidade do tributo ou dificuldades financeiras momentâneas. A cobrança do devedor eventual deve se dar em obediência ao devido processo legal e sem qualquer restrição à livre-iniciativa.

O devedor reiterado é aquele que frequentemente deixa de pagar tributos por circunstâncias do negócio ou planejamento financeiro. Caracteriza-se por preferir satisfazer obrigações com empregados, bancos e fornecedores, por exemplo, do que com o Fisco. Ou, ainda, por utilizar o tributo como forma de financiamento, em detrimento de empréstimos bancários, ficando no aguardo de programas de parcelamento que lhe permitam regularizar sua situação fiscal. Essas práticas podem até mesmo levá-lo à recuperação judicial ou falência. Apesar de sua conduta ter aptidão para afetar o mercado, o devedor reiterado não se organiza com esse objetivo, isto é, não cria estruturas ilícitas voltadas ao inadimplemento tributário e ganho de mercado.

Saliente-se que os devedores eventual e reiterado, em princípio, exercem a liberdade de iniciativa de forma lícita. Estão regularmente inscritos nos cadastros fiscais e comerciais, possuem sócios reais e patrimônio para responder pelas dívidas. Deixam de pagar tributos em razão de fatores estruturais da economia ou de peculiaridades de seus negócios.

Entretanto, os devedores contumazes são aqueles que atuam no campo do ilícito, verdadeiros criminosos e não empresários, que usam abusivamente de pessoa jurídica como fachada para nunca pagarem tributos e, com isso, obter vantagem concorrencial, dentre outras. Para tanto, violam diuturnamente o ordenamento, praticando inúmeros ilícitos, comumente mediante a utilização de laranjas, registro de endereços e sócios falsos, possuindo, invariavelmente, patrimônio insuficiente para satisfazer obrigações tributárias, trabalhistas etc.

Para impedir a atuação nociva do devedor contumaz, o artigo 4º, II, do PL 284/2017 permite o cancelamento da inscrição do contribuinte, quando presente:

“a) evidências de que a pessoa jurídica tenha sido constituída para a prática de fraude fiscal estruturada, inclusive em proveito de terceiras empresas;

b) evidências de que a pessoa jurídica esteja constituída por interpostas pessoas que não sejam os verdadeiros sócios ou acionistas, ou o titular, no caso de firma individual;

c) evidências de que a pessoa jurídica participe de organização constituída com o propósito de não recolher tributos ou de burlar os mecanismos de cobrança de débitos fiscais;

d) produção, comercialização ou estocagem de mercadoria roubada, furtada, falsificada, adulterada ou em desconformidade com os padrões estabelecidos pelo agente regulador e/ou órgão fiscalizador competente;

e) utilização como insumo, comercialização ou estocagem de mercadoria objeto de contrabando ou descaminho”.

Pela repetição de sua conduta, o devedor reiterado pode dificultar a livre concorrência e, neste caso, pode se sujeitar a regimes especiais de controle de pagamento e fiscalização, desde que a medida imposta pelo Fisco seja proporcional, isto é, adequada, necessária e não excessiva, na linha do entendimento do Supremo Tribunal Federal e como determinam o artigo 2º, parágrafo único e o artigo 3º, II do PL 284/2017[7].

A elaboração de lei complementar que regule o artigo 146-A da Constituição Federal é essencial para a preservação da livre-iniciativa e da lealdade de concorrência. Com promulgação da lei complementar objeto do PL 284/2017, as administrações tributárias terão parâmetros uniformes para produzir normas tendentes a neutralizar vantagens competitivas fundadas em transgressões tributárias. Os contribuintes, por sua vez, estarão protegidos pelas limitações estabelecidas, evitando-se abusos.


[1] Há ação direta de inconstitucionalidade perante o Supremo Tribunal Federal questionando esse tipo de medida (ADI 4.854-RS).
[2] “(…) uma das formas de quebra da lealdade como base da concorrência está justamente na utilização de práticas ilícitas (concorrência proibida), para obter uma vantagem concorrencial irreversível. (…) A lei brasileira não pune os agentes econômicos por condutas em si anticoncorrenciais. O tipo infrativo não está, pois, na conduta, mas no efeito anticompetitivo que ela provoca sobre a livre concorrência e a livre iniciativa (…). Menciona-se, por sua relevância, um caso sui generis de concorrência proibida, localizada no possível efeito anticompetitivo de determinada prática tributária, a despeito de reiteradas autuações, por força do não recolhimento de tributo considerado devido pelo fisco”. FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. Práticas tributarias e abuso de poder econômico. In: Revista de Direito da Concorrência, n. 9. Jan-mar, 2006, pp. 134-135.
[3] Trecho do voto do ministro Cezar Peluso, relator para acordão da AC 1.657-MC-RJ, j. 27/6/2007, Tribunal Pleno, DJ 31/8/2007.
[4]: “(…) a situação de privilégio acarreta desestruturação do mercado de combustíveis ao assegurar a uma só empresa a aquisição de combustíveis, junto à refinaria, por preço inferior ao que é cobrado às demais empresas do setor, em afronta ao princípio da livre concorrência” (STF, MS QO 24.159, Tribunal Pleno, rel. min. Ellen Gracie, j. 26/6/2002.
[5] “Não há que se falar em sanção política se as restrições à prática de atividade econômica objetivam combater estruturas empresariais que têm na inadimplência tributária sistemática e consciente sua maior vantagem concorrencial. Para ser tida como inconstitucional, a restrição ao exercício de atividade econômica deve ser desproporcional e não-razoável” (STJ, ADI 173/DF, rel. min. Joaquim Barbosa, j. 25/9/2008.
[6] https://www.conjur.com.br/2018-out-15/hamilton-dias-souza-preciso-distinguir-devedores-tributos
[7] Os referidos dispositivos preveem que os critérios especiais de tributação devem ser determinados por procedimento público, após decisão motivada, com respeito aos princípios da proporcionalidade, do contraditório e da ampla defesa e poderá ser reavaliado se comprovada a cessação dos motivos que os justificaram.

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