Academia de Polícia

Sobre requisições e requerimentos no inquérito policial: uma revisão necessária

Autor

  • Leonardo Marcondes Machado

    é delegado de polícia em Santa Catarina doutorando e mestre em Direito pela Universidade Federal do Paraná pós-graduado em Raciocínio Probatório pela Universidade de Girona (Espanha) especialista em Direito Penal e Criminologia pelo ICPC e professor em cursos de graduação e pós-graduação.

13 de novembro de 2018, 9h39

Spacca
A doutrina, em geral, estabelece uma diferenciação quanto à origem das demandas instrutórias, públicas e privadas, que são dirigidas ao delegado de polícia responsável pela investigação de um caso criminal. Se oriundas do Judiciário ou do Ministério Público, teriam a natureza de “requisições”, enquanto as demais, provenientes da defesa ou da própria vítima, seriam tidas como simples “requerimentos”.

Nessa linha, as primeiras seriam vistas como “ordens”, ao passo que as demais como meros “pedidos”. Por consequência, as requisições afastariam qualquer “discricionariedade” da autoridade policial, que estaria obrigada a cumpri-las; já os requerimentos ficariam submetidos ao “juízo discricionário” do delegado segundo parâmetros próprios de oportunidade e conveniência à investigação, podendo deferi-los ou indeferi-los sem maiores justificativas.

Esse tipo de raciocínio é encontrado com bastante frequência nos manuais de Direito Processual Penal e na jurisprudência, além de repetido acriticamente nas instâncias operativas do sistema de Justiça criminal (fóruns, delegacias etc). Trata-se de uma construção histórica, nitidamente autoritária, a partir de dispositivos originais do Código de Processo Penal de 1941 (artigos 13, inciso II, 14 e 16) não submetidos à necessária filtragem constitucional e convencional (tratados e convenções internacionais).

Em primeiro lugar, equiparar requisições a ordens mostra-se completamente incorreto, uma vez que inexiste qualquer relação de subordinação hierárquica funcional dos delegados de polícia em relação aos juízes e membros do parquet. Aliás, o mantra segundo o qual “requisições não se discutem, apenas se cumprem” vai na mesma linha. Há, sim, por parte do delegado de polícia, o dever jurídico-político de analisar a constitucionalidade da diligência requisitada pelo Judiciário ou pelo Ministério Público antes da sua realização no inquérito policial. Por óbvio, se inconstitucional ou ilegal a requisição, não pode ter qualquer espaço no procedimento investigativo.

Em segundo lugar, os juízes, num modelo acusatório, nem sequer possuem essa função proativa na investigação preliminar; deve(riam), pelo contrário, se afastar de qualquer iniciação ou instrução persecutória, assumindo uma postura de controle das garantias fundamentais, zelando pela observância irrestrita do devido procedimento legal. De modo bem claro, ao juiz, num sistema adversarial, é reservado o papel de controller, nunca de investigador (mesmo que indireto).

Por fim, a interpretação conservadora de requerimentos como simples pedidos rompe com a necessidade de equilíbrio processual, esvaziando consideravelmente a garantia de paridade de armas entre os sujeitos parciais (acusação e defesa) durante a fase de investigação preliminar.

Não se pode desconsiderar o campo defensivo no inquérito policial. Se admitida em lei a prerrogativa ministerial de indicar, quando do início do procedimento, bem como ao final, diligências informativas que serão cumpridas pelo órgão de investigação, ressalvada eventual inconstitucionalidade, o mesmo direito deve ser outorgado ao imputado. O delegado de polícia somente poderá indeferir um requerimento instrutório do suspeito ou indiciado quando contrário à lei, especialmente a ordem constitucional, cabendo ao juiz de garantias da investigação preliminar (figura inexistente no nosso modelo atual que contempla apenas o juiz investigador) zelar por esse direito ligado ao due processo of law.

Portanto, inexiste por aqui um mero “juízo discricionário”, de fundamentação livre (ou dispensável), pela autoridade policial[1]. Em que pese não haver ampla defesa e contraditório pleno no inquérito, o que afasta do investigado um suposto direito verticalizado à “produção de elementos probatórios”, deve-se assegurar ao imputado, na contramão do entendimento tradicional[2], que o enxergava como estorvo à apuração preliminar[3], uma prerrogativa (limitada) de participação instrutória quanto ao caso penal sob apuração oficial.

Tem-se, por exemplo, na legislação uruguaia, o direito de o imputado, por meio de seu defensor, recorrer ao órgão jurisdicional competente para que determine a realização de diligência negada pelo presidente da investigação quando o citado ato se mostrar necessário ao esclarecimento dos fatos investigados[4]. Por aqui, embora inexista disposição expressa, o STJ já afirmou que o investigado tem o direito de buscar outros órgãos do sistema de Justiça criminal, como o Ministério Público e o Judiciário, a fim de garantir a realização de atos instrutórios recusados pela autoridade policial responsável pela investigação no exercício de seu “poder discricionário”[5].

Em tempo, vale lembrar que também nessa esfera de “requisições” e “requerimentos” instrutórios junto ao procedimento do inquérito policial devem ser observados os limites cognitivos da investigação preliminar. Isso significa dizer que as manifestações por diligências que redundem em aprofundamento indevido do objeto do inquérito (probabilidade fática da notícia crime e dos elementos de tipicidade, ilicitude, culpabilidade e punibilidade) ou do seu prazo conclusivo (ex.: solicitações meramente protelatórias ou, mesmo que pertinentes, excessivamente violadoras do lapso temporal fixado em lei para a finalização do inquérito policial) devem ser afastadas por ofensa ao devido procedimento legal.


[1] “Por se tratar de apuração administrativa a motivação das deliberações constitui-se em dever. Não há discricionariedade, muito menos deliberações implícitas, já que o contexto em que a investigação acontece, as decisões, enfim, o processamento do procedimento, deve acontecer em respeito aos princípios democráticos” (MORAIS DA ROSA, Alexandre. Guia Compacto do Processo Penal conforme a Teoria dos Jogos. 03 ed. Florianópolis: Empório do Direito, 2016, p. 250).
[2] Ary Azevedo Franco registra que vem de longa data a ideia segundo a qual não caberia ao imputado “a menor intervenção” no procedimento policial de investigação criminal (FRANCO, Ary Azevedo. Código de Processo Penal. v. 1. 02 ed. Rio de Janeiro: Livraria Jacinto, 1944, p. 63).
[3] Magalhães Noronha, por exemplo, defendia a pertinência do artigo 14 do CPP com fundamento no caráter administrativo do inquérito policial e na ausência de uma “investigação contraditória”. Falava, ainda, que outorgar ao investigado ou ao ofendido um direito de intervir “a todo instante” acabaria tumultuando o procedimento investigativo (NORONHA, Edgard Magalhães. Curso de Direito Processual Penal. 12 ed. São Paulo: Saraiva, 1979, p. 22).
[4] CPP Uruguaio (Ley 19.293/2014). Artículo 260 (Solicitud de diligencias). “Durante la investigación el imputado, su defensor y la víctima podrán solicitar al fiscal todas aquellas diligencias que consideren pertinentes y útiles para el esclarecimiento de los hechos investigados, si fuese necesaria su intervención. El fiscal ordenará aquellas que estime conducentes. La recolección de evidencias estará a cargo del Ministerio Público, no pudiendo ocultarlas a la contraparte por fuera de la regulación legal. En caso de negativa, el imputado y su defensa podrán recurrir al órgano jurisdiccional competente para que se lo ordene. Esta petición se tramitará en audiencia oral y pública.
[5] “Inquérito policial (natureza). Diligências (requerimento/possibilidade). Habeas corpus (cabimento). 1. Embora seja o inquérito policial procedimento preparatório da ação penal (HCs 36.813, de 2005, e 44.305, de 2006), é ele garantia "contra apressados e errôneos juízos" (Exposição de motivos de 1941). 2. Se bem que, tecnicamente, ainda não haja processo – daí que não haveriam de vir a pêlo princípios segundo os quais ninguém será privado de liberdade sem processo legal e a todos são assegurados o contraditório e a ampla defesa –, é lícito admitir possa haver, no curso do inquérito, momentos de violência ou de coação ilegal (HC-44.165, de 2007). 3. A lei processual, aliás, permite o requerimento de diligências. Decerto fica a diligência a juízo da autoridade policial, mas isso, obviamente, não impede possa o indiciado bater a outras portas. 4. Se, tecnicamente, inexiste processo, tal não haverá de constituir empeço a que se garantam direitos sensíveis – do ofendido, do indiciado, etc. 5. Cabimento do habeas corpus (Constituição, art. 105, I, c). 6. Ordem concedida a fim de se determinar à autoridade policial que atenda as diligências requeridas” (STJ – Sexta Turma – HC 69405/SP – Rel. Min. Nilson Naves – j. em 23.10.07 – DJ de 25.02.2008, p. 362).

Autores

  • é delegado da Polícia Civil de Santa Catarina, mestre em Direito pela UFPR, especialista em Direito Penal e Criminologia, além de professor de Direito Processual Penal em cursos de graduação e pós-graduação.

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