Direito Civil Atual

Dieselgate e o despertar alemão para a tutela coletiva dos direitos do consumidor

Autor

  • Adisson Leal

    é advogado no Sturzenegger e Cavalcante Advogados Associados e doutorando em Direito Civil pela Universidade de São Paulo.

12 de novembro de 2018, 7h00

Tornei-me leitor assíduo desta coluna, mantida com esmero pela Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo e que se firmou como espaço de um direito civil sério, sem aventuras ou devaneios. Hoje, tenho a honra de apresentar a minha primeira contribuição, esperando que esteja à altura dos grandes nomes que por aqui passam como leitores ou autores. Que seja apenas o início.

“Senhoras e Senhores, milhões de pessoas de todo o mundo confiam na nossa marca, nos nossos carros e nas nossas tecnologias. Sinto imensamente por termos frustrado essa confiança. Eu peço todas as desculpas aos nossos consumidores, às autoridades e a todo o público pela má conduta. Por favor, acreditem em mim: faremos de tudo para compensar os danos. E faremos de tudo para, passo a passo, recuperar a sua confiança”.

Em 22 de setembro de 2015, um envergonhado presidente mundial da Volkswagen, Martin Winterkorn, fazia um pronunciamento a respeito do escândalo que ficou conhecido como Dieselgate (Abgasskandal). Logo em seguida, o dirigente renunciaria ao cargo, com o propósito de deixar o caminho livre para um completo recomeço.

A gigante automotiva passava por uma das melhores fases da sua história: em 2014, apresentou um lucro líquido de mais de 12 bilhões de euros e no primeiro semestre de 2015 vendeu mais de 5 milhões de automóveis, desbancando a Toyota e assumindo a posição de maior fabricante de automóveis do mundo[1]. Mas a descoberta, por parte de autoridades norte-americanas, de que a empresa havia utilizado em carros equipados com motores a diesel uma série de técnicas para burlar testes de emissão de poluentes traria consigo uma guinada sombria[2]. Descobertos, os “revolucionários” motores TDI Clean Diesel, presentes em mais de 10 milhões de automóveis em todo o mundo, protagonizariam um dos maiores escândalos ambientais – e econômicos – da indústria moderna.

O desempenho econômico da empresa caiu vertiginosamente, registrando, ainda em 2015, um prejuízo de 4 bilhões de euros; o valor das ações despencou imediatamente; estima-se que o escândalo tenha custado mais de 30 bilhões de euros aos cofres da empresa; executivos da alta cúpula foram presos; e os prejuízos para a imagem da marca no mercado são inestimáveis. Mas já em 2016, a empresa apresentou desempenho superavitário, com 7 bilhões de euros em lucros líquidos, número que saltou, em 2017, para 13 bilhões de euros, um claro indicativo da rápida recuperação do potencial lucrativo da companhia.

Contudo, o caso está longe de um desfecho.

Em meio ao fogo cruzado entre a VW e as autoridades públicas de diversos países estão os consumidores. Em relação a eles, a empresa realizou recalls e recompras, mas logo surgiriam pretensões indenizatórias. No Brasil, por exemplo, a empresa foi condenada pela Justiça do Rio de Janeiro a pagar 54 mil reais a título de danos materiais e 10 mil a título de danos morais a cada um dos mais de 17 mil consumidores que adquiriram picapes Amarok equipadas com o sistema adulterado, além de 1 milhão de reais à sociedade brasileira a título de dano moral coletivo, valor a ser revertido ao Fundo Nacional de Defesa do Consumidor. Considerando tais números, a condenação, em relação à qual ainda pende recurso, supera a cifra de um bilhão de reais.

Na Alemanha, país sede da lendária VW, a novela ganhou um novo capítulo com a edição de lei que insere no direito processual civil alemão a chamada Musterfeststellungsklage (em tradução livre: “ação declaratória modelo”).

Datada de 12 de julho de 2018, a lei entrou em vigor no dia 1º de novembro. Basicamente, a ação declaratória modelo é um instrumento de tutela coletiva do consumidor em juízo, uma demanda por meio da qual entidades de defesa do consumidor buscam o reconhecimento do dano coletivo e do seu respectivo autor, de modo que, na sequência, caso a ação modelo seja julgada procedente, ações individuais possam ser movidas por cada consumidor afetado, tendo o dever de indenizar já como pressuposto e restando tão somente a especificação do quantum indenizatório devido a cada interessado.

No Brasil, é provável que a notícia da tardia implementação desse tipo de instrumento no direito tedesco cause espécie, já que temos – bem ou mal – um sistema de tutela coletiva do consumidor desde 1990, trazido pelo Código de Defesa do Consumidor. O atraso alemão se explica no plano político: o CDU, partido democrata cristão, sempre se mostrou refratário à tutela coletiva, dando prevalência, assim, aos interesses dos fornecedores. Somente nas eleições parlamentares de 2017, na esteira do Dieselgate, o tema ocupou as campanhas. Acuada pela repercussão do escândalo, Angela Merkel comprometeu-se a dar andamento à implementação do instrumento de tutela coletiva. Na sequência das eleições, a grande coalizão formada por CDU, CSU (partido social-cristão) e SPD (partido social democrata) levou a tarefa a cabo.

Imediatamente após a entrada em vigor da nova lei, a Verbraucherzentrale Bundesverband, entidade de defesa do consumidor, promoveu ação declaratória modelo contra a VW pelos danos decorrentes do Dieselgate. Essa demanda será o grande teste para o neófito instrumento de tutela coletiva, e do seu bom funcionamento depende o desenvolvimento do direito alemão no sentido da construção de um verdadeiro sistema de tutela coletiva de direitos (Kollektiver Rechtsschutz). Enquanto isso, no direito brasileiro, quase 30 anos depois da implementação do sistema de tutela coletiva do consumidor em juízo, ainda há muito a se desenvolver, seja em relação à fixação do conteúdo dogmático dos institutos envolvidos, nomeadamente do dano moral coletivo, seja em relação à legitimidade e aos trâmites que viabilizam a tutela coletiva do consumidor em juízo. No mais, resta-nos superar a ainda predominante cultura de litigância individual que sobrecarrega os nossos tribunais e nos traz um inaceitável déficit de acesso à Justiça, principalmente no que toca à razoável duração do processo.

Como dizem os alemães, wer A sagt, muss auch B sagen, quem começa tem que continuar. No caso da Volkswagen, apesar dos esforços e gastos já realizados no sentido de superar o escândalo, resta agora atender às demandas indenizatórias coletivas e individuais dos consumidores afetados. Do mesmo modo, em relação ao direito alemão, a implementação da Musterfeststellungsklage deve vir seguida de um desenvolvimento do sistema de defesa coletiva de direitos. E ninguém duvida que os alemães o farão notavelmente.

*Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Roma II-Tor Vergata, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT, UFBA e UFRJ).


[1] Forbes. VW On Top: Now A European As The World's Biggest Carmaker. Disponível em: https://www.forbes.com/sites/michelinemaynard/2015/07/30/vw-on-top-now-a-european-as-the-worlds-biggest-carmaker/#5cae30cb6117

[2] Para entender melhor o escândalo, sugerimos o primeiro episódio da série Dirty Money, no Netflix.

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