Segunda Leitura

Precisamos dar um passo à frente com as audiências de custódia

Autor

  • Vladimir Passos de Freitas

    é professor de Direito no PPGD (mestrado/doutorado) da Pontifícia Universidade Católica do Paraná pós-doutor pela FSP/USP mestre e doutor em Direito pela UFPR desembargador federal aposentado ex-presidente do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Foi secretário Nacional de Justiça promotor de Justiça em SP e PR e presidente da International Association for Courts Administration (Iaca) da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibrajus).

11 de novembro de 2018, 9h43

Spacca
O Brasil é signatário da Convenção Americana de Direitos Humanos, firmada em São José, na Costa Rica, em 22 de novembro de 1969, mais conhecida como Pacto de San Jose da Costa Rica.[i] Todavia, referido acordo internacional só entrou em vigor em 6 de julho de 1992, através do Decreto nº 592, no Governo Collor.[ii]

No referido Pacto, encontramos:

Artigo 7º – Direito à liberdade pessoal

5. Toda pessoa presa, detida ou retida deve ser conduzida, sem demora, à presença de um juiz ou outra autoridade autorizada por lei a exercer funções judiciais e tem o direito de ser julgada em prazo razoável ou de ser posta em liberdade, sem prejuízo de que prossiga o processo. Sua liberdade pode ser condicionada a garantias que assegurem o seu comparecimento em juízo.

Por anos, aguardou-se que lei viesse a regular a parte inicial do artigo, ou seja, a obrigação da Polícia apresentar o preso em juízo, a fim de que fossem examinadas suas condições físicas e se haveria necessidade de ser mantido em prisão.

Na falta de lei, o Conselho Nacional de Justiça editou a Resolução nº 213, de 15 de dezembro de 2015,[iii] dispondo sobre “a apresentação de toda pessoa presa à autoridade judicial no prazo de 24 horas”. E, a partir daí, o acordado a nível internacional passou a ser realidade em nosso país.

Referida audiência tem por finalidade assegurar o cumprimento dos direitos humanos que se garantem a todos os detidos. De sobra, auxilia no esvaziamento de nossas prisões, sabidamente abarrotadas de delinquentes, parte deles sem maior periculosidade e que, a partir dali, tornam-se soldados das facções criminosas. Pagam e, delas, recebem proteção, com a promessa de, quando saírem, cumprirem as ordens que lhes forem dadas.

Evidentemente, implementar e dar continuidade ao projeto de manter o juiz de garantias não é algo fácil. A começar pelas dimensões territoriais do Brasil, situação totalmente diversa do Uruguai, Equador ou Panamá. Em algumas regiões da Amazônia, certamente, a Polícia encontra dificuldades, talvez intransponíveis, para apresentar em 24 horas um preso a um juiz cujo acesso, de barco, pode levar três ou mais dias.

Mas em um país continental como o nosso, a realidade vai encontrando as suas soluções que não serão, jamais, as mesmas. O tratamento dado ao assunto pela Justiça Federal do Paraná, onde a interiorização foi bem planejada e o número de autuações em flagrante não é expressivo, não será o mesmo dado pela Justiça Estadual do Pará, estado com enorme território.

Assim, cada estado irá regulando as formas de tornar viável a iniciativa, obviamente sem fugir das regras da Resolução 213 do CNJ. Por exemplo, em comarcas contíguas poderá haver um plantão regionalizado que receba os autuados em flagrante de todas as unidades judiciárias. A audiência de custódia por vídeo conferência que, em alguns locais, constitui um absurdo, em outros pode mostrar-se como uma necessidade absoluta. O prazo de 24 horas, em regiões distantes poderá ser flexibilizado, por ser de cumprimento impossível.

Portanto, de uma forma ou de outra, o importante é que o Brasil está dando cumprimento ao que se comprometeu no distante ano de 1969.

No entanto, é preciso dar um passo à frente. Sim, porque essas audiências têm um preço elevado, que é pago pela sociedade. Poucos se dão ao trabalho de analisar a questão sob o ângulo da eficiência e da economia.

As audiências de custódia importam em gastos significativos de recursos humanos. Policiais ou agentes prisionais têm que se dirigir ao Juízo e isto, em alguns casos, significa 40, 50 km, horas entre o ir e vir. Há mensagens eletrônicas, ordens de serviço, uma burocracia que passa despercebida, mas que demanda tempo. No Juízo, forma-se um aparato: juiz, agente do Ministério Público, defensor, servidores, agentes de segurança, todos focados naquela tarefa.

Óbvio que esses múltiplos atores foram retirados de suas funções usuais. O policial que está levando e trazendo o autuado em flagrante é o mesmo que poderia estar dando vigília em um bairro. O juiz que passa horas em seguidas audiências de custódia é o mesmo que poderia estar decidindo um pedido de liberação de um preso ou de bens apreendidos.

Esse é o preço imperceptível. Os serviços públicos não cumprem a regra constitucional de eficiência (art. 37 da CF) e as audiências de apresentação dos presos dão a sua colaboração.

O outro dividendo que a sociedade paga, sem sequer imaginar, é o econômico. As idas e vindas dos policiais representam despesas de transporte, conservação das viaturas e outros fatores. Idem em juízo, com todas as necessidades de luz, água, segurança, computadores, etc. Se o trabalho for fora do horário de expediente, vai haver ressarcimento em dinheiro ou banco de horas. Tudo tem o seu preço.

Vejamos um exemplo. Um Promotor Substituto de Minas Gerais, ingressa recebendo R$ 26.125,17[iv] por mês. Calculando-se que trabalhe 40 horas por semana, quatro horas que ele passar em uma dessas audiências representarão, aproximadamente, R$ 653,00. Este valor, nós, contribuintes, estaremos pagando, porque ele estará deixando de fazer outras atividades do seu cargo.

Assim, não há almoço grátis, expressão cunhada a partir da frase there ain’t no such thing as a free lunch. Como lembra Cláudio Lins de Vasconcelos, dita frase, “conhecida nos países de língua inglesa pelo acrônimo TANSTAAFL, é uma forma popular de resumir o conceito do “custo de oportunidade”, que significa que tudo no mundo econômico (ou seja, tudo cujo acesso é de alguma forma limitado) tem um custo, mesmo que pago por terceiros”.[v]

Evidentemente, não se está aqui a propor o fim das audiências de custódia. O que se coloca em discussão é se não seria o caso de, nelas, já se permitir um acordo entre o Ministério Público e o autuado, este devidamente representado por advogado ou defensor público.

Com efeito, o sistema de Justiça Criminal avançou muito com as transações nos Juizados Criminais e com as suspensões dos processos nas Varas Criminais. Mas é pouco. Continua, mais do que nunca, sem o menor sentido levar ações penais por fatos que, atualmente, são de menor gravidade, a um longo processo judicial, com direito a quatro instâncias e prazo de duração superior a uma década.

As Varas Criminais, hoje, trabalham envolvidas com complexas operações envolvendo toneladas de maconha ou cocaína, prisões de importantes figuras políticas ou empresários, e outras tantas. Elas tomam imenso tempo dos que atuam no sistema de Justiça Criminal e devem merecer toda a atenção. Aos casos menores, como contrabando ou porte de moeda falsa na Justiça Federal, furto qualificado na Justiça Estadual (v.g., com escalada ou destreza, que chega até a ser visto como folclórico), deveriam ter previsão para acordo entre as partes.

O Projeto de Lei do Senado (PLS) nº 554/2011, que trata das audiências de custódia dando nova redação ao art. 306 do Código de Processo Penal, atualmente está sendo analisado pela Câmara dos Deputados (PL 6.620/2016). Aí está o momento certo para fazer-se algo a respeito.

A questão central é: se na audiência de custódia os fatos estão claros e estão presentes todos os atores do sistema de Justiça, por que não criar a possibilidade de celebração de um acordo que ponha fim ao conflito?

Essa seria uma solução em que todos ganhariam. O autuado, evidentemente, não estaria obrigado a aceitá-la e sua recusa não poderia impor-lhe nenhum tipo de consequência.

Os detalhes sobre tal inovação, como ser ou não obrigatório o oferecimento de denúncia ou seguir-se o modelo da suspensão do processo existente, se resolveriam em dois ou três parágrafos. Soluções práticas, redação clara e resultado positivo.

Uma vez recusada, ou não oferecida por ser o caso de maior gravidade, a audiência prosseguiria e o acusado, inclusive, poderia ser posto em liberdade, se presentes as condições para tanto. Mas, uma vez aceita a proposta do M.P., o sistema, que já teria movimentado tantas pessoas e esforços, veria encerrado um caso de significado menor.

Em suma, aí está a proposta de dar-se um passo à frente nas audiências de custódia, tornando-as ainda mais efetivas. Algo ao estilo da “common law”, onde os juízes atuam com pragmatismo, mais preocupados com soluções do que com discussões teóricas.

 


[v] Vasconcelos, Cláudio Lins, trecho do livro “Mídia e Propriedade Intelectual: A Crônica de um Modelo em Transformação”. Disponível em: https://direitoemidia.wordpress.com/2010/09/10/leitura-de-fim-de-semana-a-origem-da-frase-nao-existe-almoco-gratis/. Acesso em 8/11/2018.

Autores

  • é desembargador federal aposentado do TRF da 4ª Região, onde foi corregedor e presidente. Mestre e doutor em Direito pela UFPR, pós-doutor pela Faculdade de Saúde Pública da USP, é professor de Direito Ambiental no mestrado e doutorado da PUC-PR. Presidente da International Association for Courts Administration (IACA), com sede em Arlington (EUA). É vice-presidente do Ibrajus.

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