Diário de Classe

Uma Teoria do Estado em diálogo com a Crítica Hermenêutica do Direito

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10 de novembro de 2018, 7h00

Não faz muito, em uma de suas aulas no mestrado em Direito da Unisinos, o professor Lenio Streck enfatizava a necessidade de uma Teoria da Decisão. A assertiva, claro, localizava-se no espaço do jurídico, mas bem poderia ser uma aula — fundamental — sobre a república. Afinal, acertava em cheio questão decisiva a atravessar a relação entre Direito e política, que poderia, muito bem, ser sintetizada mais ou menos assim: a menos que aceitemos atos voluntaristas travestidos de decisão — condição que, frisa-se, não é nem possível nem desejável em um Estado Democrático de Direito —, importa, sim, como decidem os juízes. Eis o ponto.

Como já se pode depreender desta brevíssima introdução do tema, não é tarefa fácil entabular uma discussão que dê conta de um problema como esse, sobretudo, em países de modernidade tardia[1], como o Brasil. Por isso, também não é, muito menos, esforço para poucas linhas. O ponto é complexo. Mas parece possível, sim, esboçar, em curto espaço, uma espécie de panorama geral da questão por aqui. E é o que se propõe, a partir de um recorte de perfil sociológico para estruturar a discussão.

Vejamos…

Em Brasil: uma biografia, Lilia Schwarcz e Heliosa Starling[2] procuram, de pronto, assentar algumas características bastante típicas do país e que, ao longo destes mais de 500 anos, têm tornado difícil a construção da cidadania por aqui. Somos uma república de valores falhados — grifam as autoras —, marcada desde sempre pelo autoritarismo, pelo familismo, pelo patrimonialismo e pelo personalismo[3]. Uma república com donos, como já dizia o atualmente tão combatido Raymundo Faoro[4], e que, talvez por isso, vem permitindo ao longo do tempo o gozo das promessas da modernidade tão-somente a um certo tipo de cidadãos, como bem sublinha Lenio Streck no primeiro capítulo de seu Hermenêutica Jurídica e(m) Crise, obra que atinge já duas décadas de atualíssimas lições[5].

Pois bem. Assim é o Brasil “biografado” por elas. Um país definido por uma série de distintas e desiguais posições sociais, permitindo uma mescla — tão exótica ao olho externo — a nos caracterizar como país.

Isso não significa (e já se avisa aos navegantes) a percepção que vê — aqui e nessa mescla que nos caracteriza — o romantismo de Casa Grande e Senzala, mas, sim, o sentido produzido por uma cruel linguagem — já falada há cinco séculos — a replicar nossas diferenças. A cruelmente legitimar nossos estamentos, tão bem evidenciados pelo criticado Faoro.

E — por “diferentes” que somos — dizem as autoras de Brasil, uma biografia, é que já fomos de tudo: “brancos, negros, mulatos, incultos, europeus, norte-americanos” e também — acrescenta-se aqui — “malandros e heróis”[6]. E são essas “figuras”, tão conhecidas a partir da obra de DaMatta, as mais caras à proposta deste breve texto, embora em um sentido diverso de seu contexto original.

Explico:

Aqui, o malandro não sai dos carnavais, mas dos palácios do poder. O malandro é, no sentido desta proposta, o sujeito herdeiro do patrimonialismo na feliz análise de Streck; é aquele que habita o “andar de cima” e se apropria da res pública sem cerimônia[7]. Patrimonialista, esse malandro busca, no infame sentido de um contexto — entoando uma verdadeira ode ao falacioso “sempre foi assim”… —, dominar a estrutura do poder e dela sugar, como um parasita, o que puder[8]. O malandro é, aqui, o “político”.

E o herói? No enredo estamental em que há “donos para o poder”, ou seja, nesse enredo em que há lugares muito bem definidos, com “andares de cima e de baixo”, o herói é aquele que se propõe — não na obra de DaMatta, mas neste ensaio, frisa-se — a quebrar essa ordem do “sempre foi assim”, “magicamente”. Afinal, em um país desigual como o Brasil, o imaginário do senso comum — que vai pouco a pouco legitimando as diferenças — deixa tudo muito claro: diante de nossas reais condições de Justiça, nada se espera das instituições. Só o imponderável, a mágica, o mito, pode salvar. E nessa trama que teima em crer em essências — e essências que engessam o futuro —, algo precisa acontecer “fora do jogo institucional”: uma delação premiada, uma escuta ilegal… Enfim… Em um país desigual e injusto como o Brasil, isso não é pouca coisa. É, afinal, a “própria” Justiça. É serviço para “herói”. Sem dúvida. E o herói é, aqui, o “juiz”.

Esse herói — que existe a partir do malandro, portanto — ao falar muitas vezes um dialeto só seu, reinventa-se em decisionismos e discricionariedades, mergulhado no bovarismo que, desde Raízes do Brasil[9], nos acompanha: diante do desencanto da realidade, é, ora juiz, ora justiceiro[10], confundindo papeis e vendo no espelho a si como o “guardião-da-parte-que-falhou”[11].

Entre outras plurais e complexas causas que este texto reconhece, isso explica a tentação do protagonismo do Judiciário em muitas circunstâncias — assim como o massivo aplauso de muitos setores da sociedade —, mas não justifica e menos ainda legitima atuar à margem do contrato, como um “Leviatã todo-poderoso”, que decide pessoal e originalmente, como se não houvesse um contexto a se abrir em coerência. Age esse herói como se fosse possível dispensar uma linguagem necessariamente pública a dar forma à democracia[12]. Age, enfim, como se não houvesse um direito — fundamental, mais uma vez com Lenio Streck[13] — a uma resposta adequada à Constituição Federal.

Ocorre — e é a premissa que aqui se acolhe — que democracias não são formas de governo assentadas em valores pessoais, heroísmos, discricionariedades e originalidades. Afinal, como bem ensina Bobbio, a democracia é o regime de quem se coloca sob o ponto de vista do direito, e não do poder[14].

Por isso, nas democracias — desde já, o “Regime do Direito” — a atuação judicial ocorre — ou deveria ocorrer — dentro de limites. Ela não pode se dar como o produto da subjetividade, da originalidade de alguém que, “a partir de si”, decide.

Eis, aí, o problema em torno do ativismo judicial: ao permear o Direito com a moral do magistrado, já não se tem mais esse “público contexto”, mas a visão subjetiva de um indivíduo em posição de decidir. Nada pode ser menos republicano, menos democrático. E, em tempos de sucessivas crises, sobretudo, políticas, nada pode ser, também, pior às instituições. Não por acaso, as questões, aqui, passam a ser: como identificá-lo? Ainda: como diferenciá-lo da judicialização da política?[15]

É justamente a partir dessas interrogações que ganha relevo uma Teoria do Direito de traço hermenêutico, em diálogo com a Teoria do Estado. Justifica-se: em meio a um contexto em que a “pauta de atuação dos Poderes passou a ser a concretização dos direitos fundamentais”[16], mergulhada em um ambiente de crise e descrédito nas instituições políticas do país, é a partir desse referencial teórico (e frente ao esforço analítico pretendido) que se pode analisar o ativismo judicial como uma prática antidemocrática. Daí, portanto, o protagonismo da Teoria da Decisão de Lenio Luiz Streck, como um “norte teórico” a guiar uma reflexão acerca da república, sobretudo, a partir de um conjunto de critérios indagativos, voltados a identificar, na decisão do magistrado, um “ato de vontade” (já verificado na Teoria Pura do Direito de Kelsen)[17].

Através desses aportes teóricos, é possível localizar e diferenciar o ativismo da judicialização da política. E isso, na especificidade de um Estado Social, Democrático e de Direito, como o Brasil[18], sem dúvida, é uma importante contribuição teórica, já que não se pode (ou não se deve) esperar ver a cidadania e a própria justiça (ou o que dela, subjetivamente, se “imagina”) alcançadas pela mediação “mágica” do juiz — ou, frente ao sopro populista que infla nosso espaço político atualmente, de quem quer que seja.

Enfim, para encerrar esse texto, que já vai longo…

Clarissa Tassinari, com clareza, vai pontuar que “o problema do ativismo [é] de cunho interpretativo, de observar se a intervenção ocorreu dentro dos limites constitucionais”. Ela vai além, e arremata dizendo que ele, o ativismo, “aparece como um problema criado exclusivamente pelo âmbito jurídico”[19]. Tem razão. Mas seus reflexos, os do ativismo, vão, como se pôde até aqui depreender, muito além desse campo. Claro. Se a postura ativista, por um lado, enfraquece as instituições políticas, catapultando a jurídica a status de “superpoder”, modifica, por outro, a dinâmica de articulação entre os Poderes. Por isso, se a Teoria do Estado dedica-se ao “conhecimento da realidade estatal”, como põe Miguel Reale[20], não pode ser alheia ao ativismo judicial como um importante objeto de estudo. Decisivamente. E o caminho analítico a percorrer, nesse intuito, demanda necessariamente um esforço hermenêutico. Por isso, como se propõe aqui, há a necessidade — para uma Teoria do Estado “de seu tempo” —, de diálogo com a Crítica Hermenêutica do Direito.


[1] STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica Jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do Direito. 11. ed., atual. e ampliada. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2014.
[2] SCHWARCZ, Lilia Moritz e STARLING, Heloisa Murgel. Brasil: uma biografia. 1. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.
[3] HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 11. ed. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1977.
[4] FAORO, Raymundo. Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro. 5. ed. São Paulo: Globo, 2012. CYRIL LYNCH, Christian Edward; SANTOS DE MENDONÇA, José Vicente. Por uma história constitucional brasileira: uma crítica pontual à doutrina da efetividade. Revista Direito e Práxis, v. 8, n. 2, 2017.
[5] STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica Jurídica e(m) crise. op. cit.
[6] DAMATTA, Roberto. Carnavais, malandros e heróis: para uma sociologia do dilema brasileiro. 6. ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1997.
[7] STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica. op. cit., p. 34 observa, ao relembrar a edição de 14 de janeiro de 2011 do jornal Folha de S.Paulo, que “o imaginário patrimonialista está incrustado na administração pública, a ponto de ninguém se surpreender com o fato de a esposa de um secretário da Saúde do Distrito Federal, proprietária de uma clínica médica, receber 1,1 milhão de reais — do próprio Estado onde ele, o marido, é secretário — por serviços prestados”, por exemplo.
[8] BOMFIM, Manoel. A América Latina: Males de origem. Rio de Janeiro: Topbooks, 2005.
[9] SCHWARCZ, Lilia Moritz e STARLING, Heloisa Murgel. Brasil. op. cit., p. 16 — grifo nosso: “O termo tem origem na famosa personagem Madame Bovary, criada por Gustave Flaubert, e define justamente essa alteração do sentido da realidade, quando uma pessoa se considera outra que não é [… O indivíduo] se concebe sempre diferente do que é, ou aguarda que um inesperado altere a danada da realidade”. Em HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes. op. cit., p. 124, o bovarismo é “[…] um vício de raciocínio […] um invencível desencanto em face das nossas condições reais”.
[10] Interessante notar que solipsismo, bovarismo e heroísmo parecem ‘ismos’ de um mesmo grupo, conforme se depreende da leitura de STRECK, Lenio Luiz. O que é isto – Decido conforme minha consciência? 6. ed. rev. e atual. de acordo com as alterações hermenêutico-processuais dos Códigos. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2017, p. 60. Afinal, “[…] o sujeito solus ipse, que não se compreende como participante de uma comunidade política, mas se pretende o comandante de sentidos, como aquele que coloca a ordem no mundo segundo sua ilimitada vontade”.
[11] Lenio Luiz. O que é isto. op. cit., p. 34.
[12] Empresta-se, aqui, o conceito de “linguagem pública” wittgensteiniano. WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações Filosóficas. Tradução de José Carlos Bruni. São Paulo: Nova Cultural, 1999.
[13] Em obras como STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso. Constituição, Hermenêutica e Teorias Discursivas. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2017, e STRECK, Lenio Luiz. O que é isto. op. cit., Lenio Luiz. Hermenêutica. op. cit.
[14] BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia. Tradução de Marco Aurélio Nogueira. São Paulo: Paz e Terra, 2000.
[15] Em seu Verdade e Consenso, Lenio Streck esclarece a diferença, referindo que a judicialização da política é “inexorável e contingencial, porque decorre de condições sociopolíticas, bem como consiste na intervenção do Judiciário na deficiência dos demais Poderes”. Lenio Luiz. Verdade e Consenso. op. cit., p. 65. Já o ativismo, bem pontua Clarissa Tassinari, deriva de “julgamentos realizados a partir de um ato de vontade do aplicador”. TASSINARI, Clarissa. Jurisdição e ativismo judicial: limites da atuação do Judiciário. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2013, p. 148.
[16] STRECK, Lenio Luiz; BOLZAN DE MORAIS, Jose Luis. Ciência Política & Teoria do Estado. 8. ed. rev. e atual. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2014, p. 192.
[17] O autor de “Jurisdição constitucional e decisão jurídica” lança três questões angulares para identificar o ativismo judicial, diferenciando-o da judicialização da política: primeiro, está o Judiciário diante de um direito fundamental, subjetivamente exigível? Em situações similares, esse mesmo direito pode ser concedido a toda e qualquer pessoa que o pedir? No mais, é possível transferir recursos das outras pessoas para fazer aquela ou um grupo feliz, sem violar a isonomia no seu sentido substancial, já levando em conta toda a força do Estado Social previsto na Constituição? Ver STRECK, Lenio Luiz. Dicionário de Hermenêutica. Quarenta temas fundamentais da Teoria do Direito à luz da Crítica Hermenêutica do Direito. Belo Horizonte: Letramento: Casa do Direito, 2017 e STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição constitucional e decisão jurídica. 3. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013.
[18] O Brasil, com a Constituição de 1988 (acenando definitivamente para uma finalidade de justiça social), assenta-se como um Estado Social Democrático e de Direito. É “social” porque persegue tal finalidade; é “democrático” porque organiza o poder a partir deste regime; é “de direito” porque, sem importar a quem, a legislação deve ser cumprida pelas instituições competentes. O’DONNELL, Guillermo. Poliarquias e a (in)efetividade da lei na América latina. Novos Estudos (CEBRAP), São Paulo, n. 5, 1998.
[19] TASSINARI, Clarissa. Jurisdição e ativismo judicial. op. cit., p. 148.
[20] REALE, Miguel. Direito e teoria do Estado. Revista da Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, v. 48, p. 84-94, 1952. p. 87.

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