Opinião

A macrolitigância financeira em defesa dos direitos fundamentais no Supremo

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7 de novembro de 2018, 6h07

Há quem entenda que a discussão judicial sobre a concessão de medicamentos ou procedimentos clínico-hospitalares a uma pessoa, ou a um grupo, se caracteriza como um debate sobre a efetivação dos direitos fundamentais. Há certa razão na análise, porém se trata de um enfoque microjurídico do tema, uma vez que seu alcance é restrito a quem pediu aquele remédio ou benefício.

Por outro lado, considerando o debate sob o prisma do Direito Financeiro, é necessário ampliar o foco e observar a sociedade como um todo, e não apenas o interesse individual ou de determinada coletividade no litígio. Por exemplo, ao discutir questões de alocação de verbas orçamentárias para o pleno respeito a certos direitos fundamentais, a judicialização não atinge apenas certos indivíduos, mas toda a sociedade. Exatamente por essa característica são considerados como macrojurídicos. A análise macrojurídica pode ocorrer dentro ou fora do Poder Judiciário, seguindo a análise macro e microeconômica. A novidade é a subsunção e a aceitação pelo STF em decidir questões macrojurídicas, que se transformam em macrolitigância financeira, de caráter público e não privado, como o debate sobre planos econômicos.

Uma recente decisão do STF sobre esse tipo de macrolitigância envolvendo o Direito Financeiro e os direitos fundamentais para a saúde passou de forma quase despercebida pela grande imprensa e pelos analistas jurídicos. De forma ocasionalmente simbólica, foi proferida no mesmo dia do 30º aniversário da Constituição, reafirmando o dever de promoção dos direitos fundamentais como eixo fundamental do pacto civilizatório de 1988.

Trata-se da cautelar concedida pelo ministro Ricardo Lewandowski na Reclamação 30.696. Processualmente estava em debate o descumprimento pelo Tribunal de Contas da União da decisão proferida pelo STF na Ação Direta de Inconstitucionalidade 5.595. O tema é relevante e pode parecer muito complexo, mas, na verdade, é de simples compreensão.

O STF havia concedido uma liminar na ADI 5.595 determinando o recálculo do piso federal em saúde para o ano de 2016. A importância dessa decisão reside no fato de que o déficit de aplicação em 2016, reputado como retrocesso inconstitucional pelo Supremo, deveria ser compensado em 2017, ano esse que serviu de base de cálculo para o “congelamento” dos valores a serem gastos pela União em ações e serviços públicos de saúde de 2018 a 2036. Tais efeitos prospectivos decorrem da Emenda 95 que fixou o teto de gastos por 20 anos e alterou o regime dos pisos federais em saúde e educação, que passaram a ter garantia apenas da correção monetária, incidente exatamente sobre o montante de 2017. Logo, se o ponto de partida tiver um valor menor, todos os anos seguintes, até 2036, terão uma base de cálculo defasada — simples assim. Trata-se de um debate nitidamente macrojurídico, pois afeta toda a sociedade. Afinal, dinheiro para a saúde pública alcança a todos.

Pois bem, o TCU, por meio de seu Acórdão 1.048/2018, desconsiderou tal decisão e deixou de promover o recálculo estabelecido pelo STF na liminar concedida e que estava (e permanece) em pleno vigor. Ou seja, o TCU restringiu o alcance protetivo da decisão cautelar concedida na ADI 5.595, o que deu ensejo à propositura da Reclamação 30.696, que recebeu a seguinte decisão, proferida pelo ministro Ricardo Lewandowski:

[…] ainda que não se possa perquirir sobre a existência ou não de intenção deliberada de frustrar o comando emanado da decisão proferida em 31/8/2017 nos autos da ADI 5.595-MC/DF, observo, num juízo eminentemente perfunctório, que o Acórdão 1.048/2018/TCU-Plenário teria a capacidade de frustrar, em parte, a cautela por mim deferida nos autos da ação de controle de constitucionalidade.

Isso porque, a despeito de também ter sido utilizado como periculum in mora o fato de haver repercussão “[…] do quanto for efetivamente pago pela União nas ações e serviços públicos de saúde em 2017, para fins de fixação do piso constitucional que passará a vigorar em 2018, bem como ao longo dos próximos 19 anos […]”, a decisão que deferiu a medida cautelar na ADI 5.595/DF não se limitou ao ano de 2017, atingindo, inclusive 2016, ano no qual se observou déficit de aplicação no piso federal de saúde.

[…] Ora, a decisão emanada pela Corte de Contas, ao reconhecer a regularidade das contas governamentais com a aplicação dos recursos em percentual inferior aos 15% da receita corrente líquida, pode aumentar o impacto negativo observado sobre os serviços públicos de saúde.

Ademais, também resulta evidente o periculum in mora, sobretudo diante do quadro fático evidenciado na análise da cautelar deferida na ADI 5.595/DF, de que o “Plenário do Conselho Nacional de Saúde que, em reunião ordinária realizada no dia 6 de julho deste ano [2017], deliberou formalmente, por meio da Resolução 551/2017, reprovar o Relatório Anual de Gestão 2016 do Ministério da Saúde, com base no apontamento de déficit de aplicação no piso federal em saúde”.

Por isso, entendo presente a relevância dos fundamentos deduzidos na exordial, de modo que, nesse exame perfunctório dos autos, típico das medidas de urgência, vislumbro o descumprimento ao comando ora invocado.

Assim, de modo a resguardar a decisão proferida na ADI 5.595 MC/DF, e antes da análise mais verticalizada da matéria trazida aos autos, afigura-se necessário suspender o Acórdão 1.048/2018-TCU-Plenário para assegurar a aplicação mínima de 15% da receita corrente líquida também para o ano de 2016, com a consequente compensação nos exercícios subsequentes dos valores por ventura não aportados no ano de 2016.

Observe-se que não se trata de algo fora do direito positivo, proferido com base em alguma espécie de direito natural. As decisões na ADI 5.595 e na Reclamação 30.696 apenas determinam que seja cumprida a norma constitucional e a lei que lhe regulamenta (LC 141/2012), que estão sendo solapadas por uma forma de cálculo formal e materialmente equivocada (subpiso de 13,2% da receita corrente líquida em 2016, em vez do piso de 15% da RCL, que fora fixado até mesmo pelo artigo 3º da Emenda 95/2016). Ou seja, trata-se de respeito ao direito positivo, e não de boa vontade. Espera-se que o TCU cumpra a decisão, refazendo os cálculos na forma determinada pelo STF.

Em tempos de contração orçamentário-financeira, a sociedade avalia a ação estatal e põe em xeque o quanto se arrecada e o quanto se deve destinar como aplicação mínima em ações e serviços públicos de saúde, sendo importante fixar o mínimo constitucionalmente estabelecido como obrigação material (verdadeira garantia fundamental) para a maximização da eficácia desse direito.

O que está em debate é precisamente a macrojustiça orçamentária e os fins estruturais que justificam a razão de ser do Estado brasileiro, em suma, o orçamento mínimo social como fundamento de legitimidade da própria tributação. Afinal, para que são pagos os tributos? Para se ter ações estatais em prol da população em geral e, no Brasil, acresce-se o fato de que, quem paga mais recebe menos, o que viola o princípio republicano, célula máter de nossa Constituição.

Do ponto de vista do direito à saúde, sem a garantia de piso de custeio em face do comportamento da receita governamental, não há como enfrentar grande parte das mazelas que repercutem na fragilidade operacional do Sistema Único de Saúde (SUS). Mais do que apenas tratar os sintomas do mal-estar da política pública pelo viés da sua microjustiça (haja vista o adensamento das demandas judiciais individuais), é preciso pautar e buscar sanear as causas estruturais do déficit de eficácia do direito fundamental à saúde em nosso país.

Além da instabilidade do regime jurídico do financiamento, deve-se observar a questão federativa, pois está em curso uma espécie de guerra fiscal de despesas, na qual a União transfere responsabilidades operacionais para os entes subnacionais, sem assegurar a respectiva fonte para seu custeio ao longo do tempo. Desde a redação originária da Constituição de 1988, ocorreram estruturais mudanças normativas quanto ao patamar federal de gasto mínimo em ações e serviços públicos de saúde.

O marco inicial — a partir de onde se desenrola a trajetória errática e tendente à regressividade do dever federal de gasto mínimo em saúde — remonta ao artigo 55 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, que previa a alocação mínima de 30% do orçamento da seguridade social para o “setor de saúde”.

O texto originário da Constituição de 1988 buscou garantir sustentabilidade financeira às ações da seguridade social, por meio da fixação de um justo equilíbrio entre a saúde e as demais áreas (previdência e assistência social) na divisão de seu orçamento na mesma proporção da população atendida.

Ocorre que tal regime protetivo da nossa Constituição jamais foi cumprido. Isso porque, nos seus 30 anos de vigência, sucederam-se regras seletivas e tendentes à regressividade de regime jurídico definidas exclusivamente em favor do governo federal na Emenda Constitucional 29/00 (já que a União era o único a ente que não tinha piso fixado em proporção da sua arrecadação de impostos), na Emenda 86/15 (que estabeleceu os subpisos impugnados pela ADI 5.595 e retirou o caráter de fonte adicional de custeio dos recursos do pré-sal) e na Emenda 95/16 (que assegurou mera correção monetária ao piso federal em saúde até 2036, tomando como base de cálculo inicial o gasto realizado em 2017).

Eis o contexto sistêmico diante do qual a ADI 5.595 e a Reclamação 30.696 parecem estar a desvendar tão somente a ponta de um grande iceberg, que, por seu turno, indica descumprimentos cumulativos e históricos em uma espécie de guerra fiscal de despesas na divisão federativa de responsabilidades pela organização e custeio do SUS, provocada, sobretudo, pelo governo federal.

O que está em debate é a possível correlação entre a regressividade proporcional da participação do gasto federal no conjunto de recursos públicos aplicados em saúde pública, em correlação com as sucessivas regras discriminatórias em favor da União ao longo de diversas emendas constitucionais. Isso implica risco de lesão frontal às cláusulas pétreas não só do direito fundamental à saúde e da sua garantia de financiamento mínimo, como também do pacto federativo que pressupõe cooperação e solidariedade entre os entes na consecução dos objetivos fundamentais da República brasileira. Afinal, de que vale um direito prestacional, como são os direitos sociais, se as fontes de recursos são solapadas e, além disso, desbalanceadas federativamente?

Todo esse contexto de fragilidade jurídica justificou a concessão da medida cautelar na ADI 5.595 (reafirmada agora na RCL 30.696), suspendendo a eficácia dos artigos 2º e 3º da Emenda 86/2015, para impor à União o correto dever de progressividade de custeio — 15% da receita corrente líquida, em vez de 13,2% no exercício financeiro de 2016.

A força irradiante dos direitos fundamentais na Constituição de 1988 se espraia para seu custeio, onde é vedado desconstruir o nível de proteção fixado qualitativa e quantitativamente pelo ordenamento. A esse respeito, é relevante o estudo da medida cautelar concedida pelo ministro Ricardo Lewandowski na ADI 5.595, que firmou, com indubitável clareza, o princípio da vedação de retrocesso e, portanto, resgatou o dever de custeio mínimo do direito fundamental à saúde.

Tal redesenho normativo e tão severa instabilidade de custeio promovidos pela União quanto ao seu gasto mínimo em saúde foram questionados estruturalmente na ADI 5.595 e na RCL 30.696, que são exemplos tópicos de um esforço que necessita ser ampliado.

A macrolitigância financeira em prol dos direitos fundamentais está apenas começando e já enfrenta muitos desafios. É muito positivo que o STF esteja atento a tudo isso.

Autores

  • é procuradora do Ministério Público de Contas do Estado de São Paulo, pós-doutora em Administração pela Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas da Fundação Getulio Vargas (FGV/RJ) e doutora em Direito Administrativo pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

  • é sócio do Silveira, Athias, Soriano de Melo, Guimarães, Pinheiro & Scaff – Advogados e professor titular de Direito Financeiro da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP).

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