Direito Civil Atual

As invalidades podem se propagar entre os contratos coligados?

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5 de novembro de 2018, 7h00

Spacca
1. Introdução
Em colunas pretéritas dedicadas ao tema da coligação contratual procuramos: i) explicar o que é a coligação contratual; ii) identificar as suas principais espécies (10/9/2018) e; iii) esclarecer quais as válvulas para o reconhecimento e apreensão dessa figura pelos tribunais brasileiros (1º/10/2018).

Nesta oportunidade, pretendemos explorar as consequências jurídicas da coligação contratual, especificamente no plano da validade, buscando responder à seguinte questão: as invalidades podem se propagar entre os contratos coligados?

2. Coligação contratual e plano da validade: a contagiação de invalidades
O contrato, como produto de um ato de autonomia privada, submete-se a um controle normativo, no plano da validade, por intermédio de dois graus de invalidade: a nulidade, como um desvalor mais severo, e a anulabilidade, como um desvalor menos severo.

No contexto de uma coligação contratual, a invalidade verificável em um contrato pode se propagar para outro contrato coligado.

A respeito desse tema, pede-se a atenção do leitor para o texto do artigo 184 do Código Civil: “Respeitada a intenção das partes, a invalidade parcial de um negócio jurídico não o prejudicará na parte válida, se esta for separável; a invalidade da obrigação principal implica a das obrigações acessórias, mas a destas não induz a da obrigação principal”.

Usualmente, o artigo 184 do Código Civil é empregado para explicar a separabilidade da invalidade em um mesmo negócio jurídico (conforme o brocado utile per inutile non vitiatur).

Noutras palavras: se diferentes disposições se integram em um mesmo negócio jurídico, sempre que for possível segmentar a parcela inválida do todo negocial, esta deve ser a opção do intérprete, respeitada a intenção dos negociantes, até mesmo em homenagem ao princípio da conservação do negócio jurídico1.

A segunda parte do artigo 184, por sua vez, referencia, sob a perspectiva da propagação das consequências da invalidade, a ideia de gravitação jurídica do negócio jurídico acessório em relação a um negócio jurídico principal. Nesses quadrantes, a invalidade do negócio jurídico principal acarreta a invalidade do negócio jurídico acessório. O reverso não é verdadeiro.

Os dois comandos normativos insertos no artigo 184 do Código Civil podem ser aplicados quando a invalidade se verificar entre negócios jurídicos coligados (contrato coligado) que, como antes esclarecidos, são formados por diversos negócios jurídicos componentes (contratos componentes), integrados em uma operação econômica supracontratual movida por um propósito comum2.

Em recente precedente, o tema da contagiação de invalidades foi enfrentado pelo Superior Tribunal de Justiça, em acórdão relatado pelo ministro Luiz Felipe Salomão: “(…) em uma perspectiva funcional dos contratos, deve-se ter em conta que a invalidade da obrigação principal não apenas contamina o contrato acessório (CC, art. 184), estendendo-se, também, aos contratos coligados, intermediário entre os contratos principais e acessórios, pelos quais a resolução de um influenciará diretamente na existência do outro”3.

Acerca do tema, Marcos Bernardes de Mello explicou: “se da interpretação dos atos jurídicos se pode concluir que os figurantes consideram os atos jurídicos dependentes, não será possível a separação se a parte restante do ato jurídico não atender à finalidade para que foi realizado. A regra deve ser a de que a invalidade parcial conduz à invalidade total. Se, no entanto, ficar constatado que, excluída a parte inválida, mesmo assim os figurantes teriam realizado o negócio jurídico, deve manter-se o restante válido”4.

Igualmente, se entre os contratos coligados encontra-se um liame de acessoriedade de um contrato em relação ao outro, tido como contrato principal, a invalidade do contrato principal acarretará a invalidade do acessório.

Por vezes a invalidade de um contrato repercute noutro contrato coligado pelas próprias consequências jurídicas provenientes do “desvalor” imposto pelo ordenamento jurídico.

O contrato nulo não produz os seus efeitos próprios. O contrato anulável, uma vez desconstituído, deve sofrer o desfazimento de todos os efeitos jurídicos produzidos. Apenas quando isto não for possível, e portanto excepcionalmente, a retroação eficacial poderá ser substituída por uma indenização das perdas e danos (artigo 184, CCB).

Em ambos os casos, o desmanche dos efeitos de um contrato por consequência de uma invalidade pode contagiar outros contratos coligados.

Cite-se, como exemplo, a seguinte situação extraída de práticas verificadas no mercado imobiliário:

“(…) precedentes jurisprudenciais analisaram a validade de cláusulas por meio das quais os promitentes compradores outorgam poderes ao fornecedor para hipotecar o imóvel objeto do contrato de consumo, em posterior negociação destinada ao financiamento de toda a incorporação. Em outras palavras: no mesmo negócio destinado ao compromisso de venda do imóvel para os consumidores, por meio de cláusulas padronizadas de mandato, algumas incorporadoras recebem poderes para onerar o bem prometido ao consumidor (…) Em diversas oportunidade, o Poder Judiciário reconheceu a nulidade dessas cláusulas contratuais, ampliando os efeitos do vício ao contrato de constituição de garantia hipotecária (travado entre a incorporadora e a instituição financeira), com base no art. 51 da Lei 8.078/90”5.

Eis um exemplo de contagiação de invalidade: a nulidade de uma cláusula inserta em um contrato (cláusula mandato em compromisso de compra e venda) projeta-se em outro contrato coligado (contrato de garantia hipotecária).

3. A contagiação de invalidades na coligação para consumo (redes contratuais)
Em anterior coluna, publicada no espaço “Direito Civil Atual” em 10 de setembro, denominamos “redes contratuais” a coligação destinada a oferta de produtos e serviços ao mercado para consumo6.

Nas contratações em rede também é possível sustentar uma contaminação de invalidades, segundo interpretação do artigo 51 do Código de Defesa do Consumidor, cujo caput descreve o seguinte enunciado: “São nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços”.

Uma leitura atenta do caput do artigo 51 do CDC sublinha que, ao determinar a nulidade de cláusulas relativas ao fornecimento de produtos e serviços, o legislador enunciou algo a mais do que a simples invalidade de cláusulas insertas em um singular contrato de fornecimento de produtos e serviços enclausurado na relação travada entre o consumidor e o fornecedor.

Por cláusulas relativas ao fornecimento devem ser entendidas todas as disposições contratuais alinhavadas à atividade econômica de fornecimento, podendo, assim, ser encontradas nos contratos para consumo, nos contratos preparatórios ao contrato para consumo, ou, até mesmo, nos contratos destinados à produção de produtos, desde que, em alguma medida, estas correspondam aos quadrantes do artigo 51 e incisos da Lei 8.078/19907.

O controle da abusividade das cláusulas contratuais não se limita à análise do contrato pactuado com o consumidor, alcançando todos os negócios interligados em uma mesma atividade econômica voltada para o fornecimento de produtos e serviços.

4. Considerações finais
Uma vez apresentada a propagação de invalidades entre os contratos coligados, em nossa próxima coluna abordaremos as consequências eficaciais na coligação contratual. Por fim, serão apresentados ao leitor casos paradigmáticos colhidos em 20 anos de pesquisa sobre este tema.

*Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Roma II-Tor Vergata, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT, UFBA, UFRJ e UFAM)


1 Sobre o tema, a lição de Antônio Junqueira de Azevedo: “O princípio da conservação consiste, pois, em se procurar salvar tudo que é possível num negócio jurídico concreto, tanto no plano da existência, quanto da validade, quanto da eficácia. Seu fundamento prende-se à própria razão de ser do negócio jurídico; sendo este uma espécie de fato jurídico, de tipo peculiar, isto é, uma declaração de vontade (manifestação de vontade a que o ordenamento jurídico imputa os efeitos manifestados como queridos), é evidente que, para o sistema jurídico, a autonomia da vontade produzindo auto-regramentos de vontade, isto é, a declaração produzindo efeitos, representa algo de juridicamente útil. A utilidade de cada negócio poderá ser econômica ou social (…)” (JUNQUEIRA DE AZEVEDO, Antônio. Negócio jurídico: existência, validade eficácia. 2.ed. São Paulo : Saraiva, 2002, p.66-67). 
2 Em outro estudo, definimos: “Por “coligação contratual” compreendemos uma pluralidade de contratos e de relações jurídicas contratuais estruturalmente distintos, porém vinculados, ligados, que compõem uma única e mesma operação econômica, com potenciais consequências no plano da validade (mediante a eventual contagiação de invalidades) e no plano da eficácia (em temas como o inadimplemento, o poder de resolução, a oposição da exceção do contrato não cumprido, a abrangência da cláusula compromissória, entre outros)” (LEONARDO, Rodrigo Xavier. Os contratos coligados, os contratos conexos e as redes contratuais. In: CARVALHOSA, Modesto. Tratado de Direito Empresarial. 2.ed. São Paulo : Thomson Reuters, 2018, p.640)
3 STJ, REsp 1.141.985/PR, 4.ª T., rel. Min. Luis Felipe Salomão, DJe 07.04.2014.
4 BERNARDES DE MELLO, Marcos. Teoria do fato jurídico: plano da validade. 14.ed. São Paulo : Saraiva, 2015, p.112.
5 LEONARDO, Rodrigo Xavier. Redes contratuais no mercado habitacional. São Paulo : Revista dos Tribunais, 2003, p.191.
6 A respeito das redes contratuais, noutra oportunidade, explicamos: “A expressão redes contratuais parece adequada para tratar do fenômeno. No mundo contemporâneo, formam-se redes de contratos para viabilizar a produção, a industrialização, a distribuição, o pós-venda e inúmeras outras situações em que se compõem uma autêntica teia de relações para concorrer e alcançar consumidores. No específico caso das contratações destinadas ao consumo, tais vínculos tendem a ser estáveis, repetindo-se em sequência, em série, na mesma proporção em que se contratam, em moldes massificados, os produtos e serviços. Por isso, o nexo que se institui nas redes contratuais, além de econômico e funcional, também é sistemático” (LEONARDO, Rodrigo Xavier. Os contratos coligados, os contratos conexos e as redes contratuais. In: CARVALHOSA, Modesto. Tratado de Direito Empresarial. 2.ed. São Paulo : Thomson Reuters, 2018, p.640).
7 Sustentamos esta interpretação em LEONARDO, Rodrigo Xavier. Redes contratuais no mercado habitacional. São Paulo : Revista dos Tribunais, 2003, p.187.


Referências bibliográficas
BERNARDES DE MELLO, Marcos. Teoria do fato jurídico: plano da validade. 14.ed. São Paulo : Saraiva, 2015.

JUNQUEIRA DE AZEVEDO, Antônio. Negócio jurídico: existência, validade eficácia. 2.ed. São Paulo : Saraiva, 2002.

LEONARDO, Rodrigo Xavier. Os contratos coligados, os contratos conexos e as redes contratuais. In: CARVALHOSA, Modesto. Tratado de Direito Empresarial. 2.ed. São Paulo : Thomson Reuters, 2018.

LEONARDO, Rodrigo Xavier. Redes contratuais no mercado habitacional. São Paulo : Revista dos Tribunais, 2003.

STJ, REsp 1.141.985/PR, 4.ª T., rel. Min. Luis Felipe Salomão, DJe 07.04.2014.

Autores

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    é advogado, professor associado de Direito Civil na Universidade Federal do Paraná (UFPR), mestre e doutor em Direito Civil pela Universidade do São Paulo (USP) e estágio de pós-doutorado na Università degli studi di Torino.

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