Segunda Leitura

Brasil gasta milhões para guardar processos judiciais inúteis

Autor

  • Vladimir Passos de Freitas

    é professor de Direito no PPGD (mestrado/doutorado) da Pontifícia Universidade Católica do Paraná pós-doutor pela FSP/USP mestre e doutor em Direito pela UFPR desembargador federal aposentado ex-presidente do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Foi secretário Nacional de Justiça promotor de Justiça em SP e PR e presidente da International Association for Courts Administration (Iaca) da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibrajus).

4 de novembro de 2018, 9h29

Spacca
O tema dos processos arquivados vez por outra retorna à discussão para, em seguida, sobrepor-se o silêncio. No entanto, o Poder Judiciário gasta quantias expressivas na guarda de milhões de processos. A maioria absoluta deles sem nenhum interesse para quem quer que seja. Enquanto isso, vivemos grave crise econômica, desemprego e serviços públicos essenciais deficientes (saúde, educação e segurança).

Para que se tenha ideia do volume de processos arquivados, só no TJ-PE encontram-se no arquivo geral “cerca de 2.500.000 processos de 1º, 2º graus e Juizados e 6.200.000 documentos administrativos, totalizando aproximadamente 8.700.000 documentos”1. No TJ-RS, em 2012, o arquivo era único e estava em torno de 11 milhões de processos2.

Mas o problema não é só o que está nos arquivos, mas também os que irão para lá. Dados do Conselho Nacional de Justiça revelam que só no TRF da 1ª Região encontram-se pendentes nada menos do que 1.723.579 processos3.

Esses exemplos são quase insignificantes diante do quadro geral do Brasil. Imagine-se o que deve ser o total, somando-se os processos de milhares de comarcas, de Sul a Norte, mais subseções judiciárias da Justiça Federal, do Trabalho, Militar e Eleitoral. Lembre-se que os arquivos começam no século XIX, quiçá XVIII em estados de colonização mais antiga, como Minas Gerais.

Pessoas bem intencionadas, mas que de Justiça pouco ou nada entendem, dirão que preservar é manter a história. Alguns até chamarão quem for favorável à eliminação de piromaníacos. Enganam-se redondamente. Certamente não sabem que a maior parte desses autos não tem o menor valor histórico. São ações repetitivas. Assim, são milhares de pequenas indenizações por danos morais, milhões de execuções fiscais propostas para cobrar tributos de devedores sem bens ou não encontrados, despejos por falta de pagamento não contestados, reclamações trabalhistas em que houve acordo e outras semelhantes.

Tais casos não representam nada em termos de preservação da nossa memória forense ou do estágio vivido pela sociedade à época. Mas, ainda assim, podem ser preservados simplesmente preservando-se cinco processos de cada espécie por ano.

Não se suponha que sou insensível à preservação da memória forense. É bem o oposto. Quando presidente do TRF-4, estimulei todas as subseções a criarem sala da memória, tenho um livro sobre a história da Justiça Federal4, e há cerca de um mês publiquei artigo sobre o tema em revista especializada5.

Mas a questão vai além da preservação. Não menos importante é o fator econômico, principalmente em um país carente de recursos como o nosso. Estou, pois, a referir-me ao que se gasta com os chamados “arquivos mortos” de processos em papel. Vejamos.

As despesas variam muito de um lugar para outro. Roraima, criado em 1988, tem apenas 15 municípios e oito comarcas, uma população que em 1º/7/2014 era de apenas 496.936 habitantes. Óbvio que os arquivos ocupam pouco espaço e as despesas não devem ser significativas. No entanto, bem diversa é a realidade na maioria absoluta dos estados. São Paulo, por exemplo, tem número de habitantes maior que a Argentina.

Todavia, apesar de relevante, o tema nem sequer é discutido. Com efeito, o levantamento mais minucioso já feito é de 27/3/2012 e foca o desarquivamento, prazo e valor cobrado6.

A segunda constatação é a de que os custos não são expostos pelos tribunais. Com efeito, muito embora a Lei 12.527/2011, regulamentada pelo Decreto 7.724/2012, garanta o direito à informação, tendo o CNJ feito a adaptação para os tribunais através da Resolução 215/2015, a realidade é que esse tipo de despesa não é exposto nos sites. Acredito que não se divulga porque não há ordem explícita no artigo 6º da Resolução CNJ 215.

Assim, por exemplo, nada dispõe o site do TRT-20, em Sergipe7, da Auditoria da Justiça Militar Federal da 12ª CJM, com sede em Manaus8, ou do TRE de Goiás9.

Em São Paulo, no ano de 2003, o TJ contratou uma empresa, pelo prazo de cinco anos, para cuidar dos feitos arquivados, centralizando tudo na cidade de Jundiaí, sendo de R$ 26.981.145,24 o valor do contrato10. Qual será o valor hoje? Cinco, dez vezes mais? E nos outros tribunais? E o total de todos os tribunais? Chegará a R$ 1 bilhão por ano?

Note-se que despesas não se confinam a aluguéis, existem impostos, transporte, combustível, seguro, tempo de servidores etc. Por exemplo, a Justiça Federal em Curitiba arquiva seus processos em galpão da Caixa Econômica Federal. Não paga aluguel, mas gasta R$ 41 mil de IPTU por ano, que poderiam ser destinados ao pagamento de três estagiários.

Na verdade, seria absolutamente necessário que os tribunais inutilizassem os processos arquivados, após o exame, através de uma comissão, dos que tenham valor histórico ou que devam ser mantidos intactos em razão da matéria neles tratada. Isso não seria novidade alguma, já foi feito em 2004 pelo TRF da 4ª Região, com o apoio do Conselho da Justiça Federal. Os processos não foram queimados, mas, sim, triturados e entregues a cooperativa de catadores de papel11.

No entanto, uma vista geral em sites de tribunais revela que a prática não é comum. No TRT-1 (RJ), que possui um site de excepcional clareza, verifica-se que a última eliminação deu-se em 201112. O TRT-3 (MG) é um dos poucos em que se constata que a prática vem sendo mantida, conforme informação de 21 de outubro13. O TJ do Espírito Santo está providenciando a eliminação de agravos de instrumento nas comarcas, ponto positivo em um quadro de inércia14.

Por que serão tão raras as iniciativas?

A matéria é regulada pela Resolução CNJ 215/2015, Resolução CJF 318/2014 (Justiça Federal) e por várias resoluções na Justiça trabalhista. Mas não vem tendo efetividade e isso só pode ser porque as normas são de excessiva rigidez, desestimulando os administradores judiciais.

Por exemplo, na Justiça Federal, se um processo físico é digitalizado, deve esperar cinco anos até ser eliminado (artigo 14 da Resolução 318/2014-CJF). Quanto significa esta despesa inútil, já que estando ele digitalizado poderá ser impresso a qualquer hora? Só na Justiça Federal de São Paulo gastou-se em 2017, com indexação, armazenamento, arquivamento, desarquivamento e outras medidas que passam despercebidas, R$ 4.079.478,89.

O CNJ está agora sob a presidência do ministro Dias Toffolli, que, sabidamente, gosta e sabe administrar bem, disto tendo dado prova quando foi advogado-geral da União. Aí está uma oportunidade de ter-se mais efetividade neste assunto e sairmos do emaranhado regulamentar que resulta em despesas enormes a um poder público carente. Siga-se o bom exemplo de Portugal, onde todas as questões já foram tratadas e as respostas estão à disposição do público15.

Avança Brasil.


1 Disponível em: http://www.tjpe.jus.br/web/arquivo-geral/acervo. Acesso em 3/11/2018.
2 Disponível em: https://www.migalhas.com.br/Quentes/17,MI152437,41046-Desarquivamento+de+processos+Prazos+e+taxas. Acesso em 3/11/2018.
3 Disponível em: http://www.cnj.jus.br/files/conteudo/arquivo/2018/08/44b7368ec6f888b383f6c3de40c32167.pdf, p. 126. Acesso em 3/11/2018.
4 Justiça Federal, histórico e evolução. Juruá Ed., 2003.
5
FREITAS, V. P.; GUSI, C. V. . O Papel da UNESCO na Defesa do Patrimônio Histórico e Cultural da Humanidade. REVISTA MAGISTER DE DIREITO AMBIENTAL E URBANÍSTICO, v. 78, p. 85-105, 2018.
6
Disponível em: https://www.migalhas.com.br/Quentes/17,MI152437,41046-Desarquivamento+de+processos+Prazos+e+taxas. Acesso em 3/11/2018.
7
Disponível em: https://www.trt20.jus.br/busca?searchword=ARQUIVAMENTO%20DE%20AUTOS%20FINDOS&searchphrase=all . Acesso em 3/11/2018.
8
Disponível em: https://www.stm.jus.br/1-instancia/12-cjm-am-ac-ro-e-rr. Acesso em 3/11/2018.
9
Disponível em: http://www.tre-go.jus.br/transparencia. Acesso em 3/11/2018.
10
Vladimir Passos de Freitas, Revista Eletrônica Consultor Jurídico, 8/10/2010, disponível em: https://www.conjur.com.br/2010-ago-08/segunda-leitura-projeto-incineracao-acoes-arquivadas-equivocos. Acesso em 3/11/2018.
11
Disponível em: https://www2.jfrs.jus.br/presidente-do-trf-fala-sobre-descarte-inedito-de-processos-findos-na-justica-federal/. Acesso em 3/11/2018.
12
Disponível em: https://www.trt1.jus.br/web/guest/normatizacao. Acesso em 3/11/2018.
13
Disponível em: https://portal.trt3.jus.br/internet/conheca-o-trt/comunicacao/noticias-institucionais/marco/trt-mg-vai-eliminar-processos-findos-de-2012. Acesso em 3/11/2018.
14
Disponível em: https://sistemas.tjes.jus.br/ediario/index.php/component/ediario/704720?view=content. Acesso em 3/11/2018.
15
Disponível em: http://www.dgaj.mj.pt/sections/files/arquivo-dos-tribunais/arquivos-judiciais/. Acesso em 3/11/2018.

Autores

  • Brave

    é desembargador federal aposentado do TRF da 4ª Região, onde foi corregedor e presidente. Mestre e doutor em Direito pela UFPR, pós-doutor pela Faculdade de Saúde Pública da USP, é professor de Direito Ambiental no mestrado e doutorado da PUC-PR. Presidente da International Association for Courts Administration (IACA), com sede em Arlington (EUA). É vice-presidente do Ibrajus.

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