Opinião

Precedentes vinculantes do Direito brasileiro que não vinculam nada

Autor

  • Bruno Torrano

    é assessor de ministro no Superior Tribunal de Justiça mestre em Direito e professor do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP).

3 de novembro de 2018, 6h33

1.
A tese central deste artigo é a de que os precedentes vinculantes do Direito brasileiro, em certo sentido, não vinculam absolutamente nada. Não questiono, aqui, a existência de vinculação formal (derivada de previsão constitucional e legal) e a posteriori (operada após insubordinação de algum juiz ou tribunal, com subsequente ajuizamento de reclamação constitucional ou, quando menos, facilitação do procedimento de reforma da decisão) relativa a determinados tipos de precedentes. O sentido em que precedentes vinculantes não vinculam — ou, a rigor, não têm vinculado da maneira desejada por teóricos “precedentalistas” que defendem uma distinção robusta entre “Cortes de Vértice” e “Cortes de Jurisprudência” — é substantivo e a priori: relaciona-se com a dimensão de (ausência de) aceitação, por parte do magistrado de instância inferior, da legitimidade e da autoridade da vinculação formal.

A mensagem que pretendo transmitir é simples[1]: precedentes, na concepção sugerida pela sistemática da repercussão geral, dos recursos repetitivos, das súmulas vinculantes e, por todos, do Código de Processo Civil de 2015, só podem alcançar o desiderato a que se propõem se forem encarados como uma prática retoricamente atraente por parte daqueles juízes com relação aos quais se exige a mitigação da “independência judicial”, e não como “fatos externos” que de alguma forma têm, pela sua mera existência jurídica, algum poder mágico de “constranger”, de fora, o raciocínio desses aplicadores do Direito.

2.
Devo explicar as premissas pragmatistas de que parto[2], por serem, ainda, pouco usuais na academia brasileira.

Uma das mais belas lições de Stanley Fish acerca do Direito tem natureza dúplice. Por um lado, o autor nos retira a vã ilusão de que existe algo como um tipo puro ou externo de “formalismo normativo” (independente de práticas, descrições e força persuasiva) — já que “qualquer sistema que pretenda tal status já é informado pelos fatores [morais e políticos] que ele se propõe a excluir”[3]. Por outro, não vai ao extremo cético de afirmar que as pretensões formalistas do Direito diluem-se em um recipiente político e moral de certa forma aleatório e incontrolável: ao contrário, o “incrível truque” (amazing trick) do Direito é justamente conseguir adquirir uma existência formalizada e objetiva em um mundo sem fundações metafísicas, dentro do qual pessoas com diferentes visões e pressuposições lutam pela efetivação de interesses conflitantes.

O formalismo do Direito (seja da lei, seja do precedente) não é, portanto, “dado” de fora para dentro: deixa-se construir interpretativamente, banhado em política e retórica, a partir de certas narrativas que, em determinado tempo e espaço, logram convencer o maior número possível de pessoas — ou, ao menos, as pessoas certas — de que um determinado significado ou propósito é o significado ou propósito correto e deve ser defendido, praticado e estabilizado.

Por sua vez, pessoas — para o que interessa neste artigo, magistrados — são uma extensão movente (moving extension[4]) de princípios internalizados a partir de práticas sociais, e suas escolhas e decisões são articulações linguísticas particulares e contestáveis de pressuposições consolidadas a partir dessas práticas e princípios.

Magistrados que foram treinados dentro de práticas e paradigmas diferentes chegam — dentro de uma moldura razoável, excludente daquilo que se apresenta como mera proposição absurda — a diferentes concepções acerca da natureza e das funções do Direito, das relações entre Direito, moral e política, dos pesos atribuíveis a argumentos de princípio e a argumentos consequencialistas, da dignidade da legislação, do valor dos precedentes, do grau de desejabilidade da segurança jurídica e dos limites da jurisdição. Vivemos em um mundo retórico (rethorical world) dentro do qual essas ricas cadeias de concepções substantivas digladiam entre si em termos políticos, estratégicos e argumentativos, ora mostrando-se hegemônicas, ora perdendo força e sendo descartadas.

Colocadas essas premissas, indago: quão vinculantes, em termos substantivos, são os precedentes (formalmente) vinculantes brasileiros?

3.
Iniciemos a análise da indagação proposta no tópico acima com dados empíricos. Em estudo publicado em 2014, pesquisadores da Fundação Getulio Vargas fizeram uma radiografia da impetração de Habeas Corpus nos tribunais superiores. Uma conclusão ganhou especial destaque: 44% do número total de HCs que chegavam ao Superior Tribunal de Justiça apontavam como autoridade coatora o Tribunal de Justiça de São Paulo.

A mesma pesquisa elucidou que a taxa de êxito parcial ou total nos referidos HCs circundava 27%. Os números, já à época, foram considerados estarrecedores. O que, afinal, explicaria tamanha desproporção entre as estatísticas do TJ-SP quando comparado aos demais tribunais brasileiros e, em especial, ao segundo colocado (Tribunal de Justiça de Minas Gerais), cujo percentual beirou os 9%?

De todas as hipóteses explicativas possíveis, uma, a meu ver, reveste-se de especial força descritiva: o TJ-SP era, e continua a ser, um tribunal permeado por uma concepção do Direito muito diversa daquela pretendida pelos “precedentalistas” e, em especial, pelo Superior Tribunal de Justiça.

A concepção dentro da qual os magistrados paulistas foram treinados prioriza interpretações substantivas tidas como potencializadoras da segurança pública do estado de São Paulo — sobretudo a neutralização do agente, relacionada com sua prisão — e, por conseguinte, mostra-se refratária, em termos de aceitação, a teses que pretendem “formalizar” o Direito em favor da adoção de soluções jurídicas distanciadas do contexto local (a realidade de São Paulo), proferidas por “Cortes de Vértice” na longínqua Brasília.

Não por acaso, as matérias que capitaneiam as taxas de sucesso defensivo (penso, em especial, na Defensoria Pública de São Paulo) relacionam-se exatamente com temas que são velhos conhecidos no Superior Tribunal de Justiça, acerca dos quais, para preservar as expectativas das partes e a estabilidade normativa, bastaria o reconhecimento da força gravitacional dos precedentes e do papel institucional de uniformização interpretativa atribuído aos tribunais superiores.

Minha ideia, aqui, não é criticar a respeitabilidade intelectual, a postura ou as interpretações do TJ-SP, e sim demonstrar ao leitor, com base nas premissas pragmatistas já explicadas, como, no jogo das concepções conflitantes do Direito, ganha, na prática, aquela que, à luz de treinamentos e práticas sociais pretéritas, parece ao público envolvido mais atraente em termos retóricos.

À luz da concepção de Direito que o informa, o TJ-SP não se vê substantivamente vinculado a quase nenhuma das orientações favoráveis ao réu que vêm a ser firmadas pelos tribunais superiores. Apenas a título de amostragem, breve busca on-line na jurisprudência da referida corte revela inúmeras decisões que:

a) respaldam prisões preventivas decretadas com base apenas na “gravidade abstrata” do delito, em direção contrária a entendimento, há muito pacificado, do STJ e do STF;

b) ressaltam a obrigatoriedade do regime inicial fechado em crimes hediondos, mesmo já tendo o Plenário do STF, em meados de 2012, no julgamento do HC 111.840/ES, declarado incidentalmente a inconstitucionalidade do artigo 2º, parágrafo 1º, da Lei 8.072/90;

c) insistem na fixação aritmética da causa especial de aumento do crime de roubo, contra o que dispõe a Súmula 443/STJ;

d) determinam a realização de exame criminológico invocando apenas a “gravidade abstrata” dos crimes e o “longo tempo de pena a cumprir”, contra o entendimento cristalizado na Súmula 439/STJ;

e) impõem medida socioeducativa de internação pela simples gravidade do ato infracional equiparado ao crime de tráfico de drogas, em ofensa à Súmula 492/STJ etc.

Mas o exemplo do Tribunal de Justiça de São Paulo está longe de ser um fato isolado. Para ilustração: em caso analisado em 9/8/2017 pela 3ª Seção do Superior Tribunal de Justiça (Reclamação 33.862/RS), o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul deixou de aplicar o entendimento consolidado na sistemática dos recursos repetitivos (Recurso Especial Repetitivo 1.499.050/RJ) — considerado com “força vinculante forte” pela doutrina pátria —, segundo o qual “consuma-se o crime de roubo com a inversão da posse do bem, mediante o emprego de violência ou grave ameaça, ainda que por breve tempo e em seguida a perseguição imediata ao agente e recuperação da coisa roubada, sendo prescindível a posse mansa e pacífica ou desvigiada”.

Em seu voto condutor, o ministro Rogerio Schietti Cruz salientou que, além de violar a divisão de competências traçada na Constituição da República, o desafio à autoridade do Superior Tribunal de Justiça incorre em “resistência estéril”, sem nada de útil ou interessante acrescentar “às instituições e ao funcionamento do sistema de justiça criminal”.

Não estranha, nesse cenário, que o vocabulário dos precedentes seja empregado por diversos juízes e tribunais apenas como “argumento de autoridade” destinado a reforçar o poder de convencimento de um entendimento particular que seria aplicado mesmo na hipótese contra-fática de um tal precedente favorável não existir. Em um ambiente em que o papo-sobre-precedentes ou o papo-sobre-instituições ainda não se mostrou persuasivo, esse tipo de seletividade arbitrária é o máximo que se pode esperar em termos de estabilidade e previsibilidade.

4.
Mais do que uma mera “insubordinação” de tribunais locais relativamente a precedentes e súmulas dos tribunais superiores, os exemplos citados no tópico antecedente servem para nos lembrar que intérpretes partem de diferentes visões e pressuposições acerca das funções que devem ser desempenhadas pelo Direito e, em particular, pela Constituição e por precedentes judiciais. Dependendo de quais visões ou pressuposições estejam em jogo em um momento interpretativo, diferentes perguntas serão formuladas por diferentes intérpretes e diferentes fontes de evidência serão tratadas como relevantes ou irrelevantes no momento das respectivas respostas judiciais.

Juízes são treinados durante anos a interpretarem o Direito a partir de certas técnicas jurídicas e concepções morais paradigmáticas. Essas técnicas e concepções paradigmáticas, em vez de serem “instrumentos” nas mãos desses magistrados, são elas mesmas as práticas que conduziram os magistrados a serem aquilo que eles são e, por extensão principiológica, a decidirem como decidem. Como ensina Stanley Fish, aquilo que juízes concluem ser o conteúdo do Direito, “mesmo quando manifestado por um texto jurídico [statute] que parece lidar apenas com a mais técnica e mecânica das questões (tributos, por exemplo), é sempre uma visão social, moral, política ou religiosa”[5] previamente assentida e praticada.

Excetuados os casos de crenças pouco tenazes, não existe algo como que um interruptor mental que, “de fora”, conduza magistrados atuais ou mesmo futuros, treinados durante toda a carreira à luz de outra concepção do Direito, a convencerem-se de que estão corretos os argumentos que os convocam a ver os “precedentes judiciais” como “constrangimentos externos” a serem aplicados mesmo diante de boas razões em contrário — ou, pior, que estão corretos os argumentos que os confrontam diretamente, dizendo que aquilo que eles estão fazendo está errado e não é, em nenhuma medida, “direito”.

5.
Não obstante se possa, por eventuais dados empíricos, verificar que a proposta dos “precedentalistas” logrou certo avanço nos últimos anos, parece-me lícito sugerir, à luz dos exemplos acima, da experiência prática diária e da própria postura de ministros dos tribunais superiores (constante violação da dimensão horizontal do stare decisis) que a valorização institucional das decisões pretéritas proferidas pelas pretendidas “Cortes de Vértice” está longe de poder ser considerada uma disseminada cultura judicial no âmbito do Direito brasileiro — isto é, um conjunto de padrões normativos que tenham sido internalizados em um tipo de “entendimento tácito” (tacit understanding) que molda o alvo e a extensão do senso de relevância e das decisões de magistrados, formando um “paradigma”.

A distinção entre “Cortes de Jurisprudência” e “Cortes de Vértice”, presumindo que realmente faz sentido em termos teórico-institucionais, deve ser entendida também como uma distinção de crenças e de interesses, nutrida por concepções do Direito não raro incomensuráveis entre si.

Se a ideia mais interessante e útil de vinculação jurídica vem, como eu defendo, sempre “de dentro” — mediante aceitação, internalização e repetição não verbalizada de treinamentos específicos —, isso significa que ou as pretensões formais do Código de Processo Civil de 2015 são irremediavelmente prematuras, fadadas a pouco mudarem em termos de racionalização da jurisdição, a despeito do otimismo de uma parte da doutrina; ou quaisquer mudanças substantivas só poderão ser usufruídas a médio e longo prazo, quando saírem das faculdades os primeiros juízes efetivamente treinados a mitigar suas independências funcionais.

Ambas as alternativas são duras e demonstram o hercúleo desafio que têm em mãos os “precedentalistas”. No mundo concreto de interesses, crenças, estratégias e força retórica, devem eles achar alguma forma de lidar com o diagnóstico de que juízes de instâncias inferiores usualmente não demonstram interesse em dar ouvidos a teorias da decisão que se propõem a cortar suas asas[6].


[1] Esta é uma versão abreviada, para debate, de artigo em elaboração.
[2] Cf. meu livro Pragmatismo no Direito.
[3] FISH, Stanley. The Law wishes to have a formal existence. In: VEESER, H. Aram. The Stanley Fish Reader. Massachusetts and Oxford: Blackwell Publishers, 1999, p. 169.
[4] FISH, Stanley. The Anti-Formalist Road. In: FISH, Stanley. Doing what comes naturally. Durham and London: Duke University Press, 1989, p. 13.
[5] FISH, Stanley. Fish v. Fiss. In: FISH, Stanley. Doing what comes naturally. Durham and London: Duke University Press, 1989, p. 131.
[6] Em sentido análogo: POSNER, Richard. How Judges Think. Cambridge and London: Harvard University Press, 2010, p. 215-216.

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  • Brave

    é assessor de ministro no Superior Tribunal de Justiça, mestre em Direito e professor do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP).

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