Ambiente Jurídico

Litigância climática, Acordo de Paris e a solidariedade no Brasil

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3 de novembro de 2018, 11h32

Spacca
Recentíssimo relatório sobre o clima da ONU, Global warming of 1,5C, demonstra que o mundo já superou a barreira de 1 grau Celsius de aquecimento em relação aos níveis pré-industriais, e que seres humanos e não humanos estão sofrendo os efeitos negativos das mudanças climáticas. Furacões nos EUA, tufões sem precedentes na Ásia, crises hídricas em grandes metrópoles, secas na Europa e inusitados incêndios nas tundras no Ártico foram registrados nos últimos anos (United Nations Environmental Programme, 2018).

De acordo com o relatório, a temperatura média da superfície do planeta subiu cerca de 0,6 grau Celsius desde o final do século XIX, existindo 95% de possibilidade de que a atividade humana esteja ligada ao aquecimento global. Essa mudança é causada principalmente pelo aumento do dióxido de carbono (CO2) e outras emissões produzidas pelo homem na atmosfera. O CO2 é liberado pelo desmatamento e queima de combustíveis fósseis, bem como processos naturais, como respiração e erupções vulcânicas. Outra constatação estarrecedora é que 17 dos 18 anos mais quentes, desde o início das medições das temperaturas, foram registrados no século XXI (United Nations Environmental Programme, 2018).

Demonstra o estudo que a resposta científica para conter o aquecimento global passa por novas fontes de energia, pelo uso racional da terra, e transformações nas cidades e nas indústrias. Mister é a alteração no estilo de vida dos seres humanos, como a redução no consumo de carne e de derivados do leite, no desperdício de alimentos, e na substituição do carro por bicicletas ou transportes coletivos não poluentes (UNITED NATIONS ENVIRONMENTAL PROGRAMME, 2018).

Se o aquecimento seguir o ritmo atual, as temperaturas médias mundiais atingirão o patamar de 1,5 grau Celsius entre 2030 e 2052. Para limitar o aquecimento em 2 graus Celsius até 2100, será necessário cortar em 20% as emissões de gases estufa até 2030, em relação aos níveis de 2010, e zerar as emissões em 2075 (United Nations Environmental Programme, 2018).

As nações que assinaram o Acordo de Paris se comprometeram a adotar medidas para a redução das emissões de gases de efeito estufa, mas mesmo que todos os compromissos sejam cumpridos até 2030, não será o suficiente para limitar o aquecimento em 1,5 grau Celsius. A estimativa é que o aquecimento chegue aos 3 graus Celsius na virada do século, o que trará resultados catastróficos para os seres vivos e economia global. Ou seja, de acordo com o Painel Integovernamental para as Mudanças do Clima da ONU, a humanidade precisa adotar essas medidas, no sentido do corte de emissões, nos próximos 12 anos, para evitar catástrofes decorrentes do aquecimento global como o calor extremo, as secas, as enchentes e a extrema pobreza (The Guardian, 2018). Estes desastres podem atingir a humanidade, sendo este um grande risco inclusive, antes do ano de 2040. Devem ser adotadas medidas para o combate às mudanças climáticas, que são, principalmente, a tributação do carbono, os incentivos para a produção de energia limpa, a criação de standards para a energia renovável e a produção de combustíveis de baixo carbono. E, para minorar os efeitos do aquecimento global, podem ser elaboradas políticas públicas de adaptação e de resiliência(THE NEW YORK TIMES, 2018).

Todavia, para além destas ações, impõe-se o ajuizamento de litígios climáticos. Nas últimas décadas, tratados internacionais, constituições, legislações infraconstitucionais e políticas públicas têm abordado as mudanças climáticas causadas por fatores antrópicos como um grande desafio a ser enfrentando, seja pela necessidade do corte das emissões de gases de efeito estufa nos parâmetros acordados em Paris, no ano de 2015, seja para a adoção imediata de medidas de adaptação e de resiliência com a finalidade de proteger os seres humanos, o meio ambiente, a economia e os bens públicos e privados.

Este arcabouço normativo, combinado com uma recente doutrina e, especialmente, jurisprudência, tem criado direitos e obrigações para governos e entes privados que ultrapassam as fronteiras do Direito Ambiental. A importância dos litígios climáticos, aliás, resta estampada, com destaque, no Objetivo 13 da Agenda 2030 da ONU para o Desenvolvimento Sustentável, consubstanciada na necessária “ação climática”, como referia Jeffrey Sachs, enquanto professor deste articulista no Earth Institute da Columbia University. Ação climática, desnecessária maior avaliação, pressupõe como um dos seus principais elementos concretizadores os litígios climáticos.

Os litígios climáticos têm como objetivos pressionar o Estado legislador, Estado administrador e os entes particulares a cumprirem, mediante provocação do Estado juiz, o compromisso mundial no sentido de garantir um clima adequado com o corte das emissões de gases de efeito estufa e o incentivo à produção das energias renováveis acompanhados do necessário deferimento de medidas judiciais hábeis a concretizar os princípios da precaução e da prevenção com a finalidade, igualmente, de evitar catástrofes ambientais e de promover o princípio do desenvolvimento sustentável. Os litígios climáticos, outrossim, são essenciais para suprir omissões estatais na esfera administrativa e as lacunas deixadas pelo legislador em relação à novel matéria. Neste cenário, o Estado juiz, em todo o mundo, tem julgado um crescente número de demandas envolvendo o Direito das Mudanças Climáticas aplicando, direta e indiretamente, o princípio da proporcionalidade, vedando excessos e omissões.

Relevante que os operadores do direito nacional e internacional possuam referências doutrinárias sobre litígios climáticos com o estudo de casos específicos aptos a enriquecer esta nova prática inserida nestes tempos de amplificação de riscos e de desastres ambientais. À disposição dos operadores do Direito, em especial dos juízes, precisam existir elementos legislativos, jurisprudenciais e doutrinários suficientes para boas fundamentações nas decisões decorrentes dos casos trazidos pelas partes. Ademais, é importante, na seara multidisciplinar do Direito das Mudanças Climáticas, edificado também por decisões judiciais, a construção de uma linguagem jurídica comum e acessível para os atores processuais, legisladores e administradores.

Impactos gerados pelas ondas de calor e tempestades de grandes dimensões atingindo zonas costeiras e as nações ilha, relevante grifar, estão aumentando em frequência e intensidade e são fenômenos causados pela ação humana. Os custos para os governos, para a sociedade e para a iniciativa privada, gerados pelos extremos climáticos, são significativos. Os Estados, por sua vez, têm lutado para desenvolver instrumentos efetivos para combater as causas e os efeitos do aquecimento global (externalidades negativas). As políticas de adaptação e de mitigação espraiam-se pelos governos dos países, lenta e continuamente e estão cada vez mais, em boa hora, não sendo paralisadas frente às incertezas científicas e os gestores públicos passam a abandonar as vetustas exigências de certezas impossíveis de se obter — amparadas na utopia do inalcançável risco zero — no atual estágio da ciência. Neste cenário de incertezas e de riscos, busca-se a estabilização climática em níveis que não superem um aumento de 2ºC e se aproximem dos 1,5ºC, no ano de 2100, como já acordado, em Paris, no âmbito da COP 21, tendo como marco inicial o período pré-Revolução Industrial (1750).

Várias ações judiciais são promovidas por entes públicos, organizações não governamentais e cidadãos, individualmente ou em grupo, com o objetivo de comprometer os governos com o cumprimento dos Acordos e Tratados Internacionais, Constituições, legislações e normas administrativas de cunho climático protetivo. De outro lado, naquelas nações onde não existe legislação constitucional ou infraconstitucional de tutela do clima, os autores buscam compelir os réus a adotarem medidas amparadas por Acordos Internacionais firmados, legislação e doutrinas de Direito Ambiental que indiretamente possam contribuir com a redução das emissões e, também, possam tutelar valores e bens ameaçados pelo aumento das temperaturas.

Exemplificativamente, as atividades extrativas (especialmente do carvão e do petróleo), o desmatamento, a construção de novas usinas termelétricas são combatidas, via ações judiciais, assim como governos são demandados, em face de omissões e ações inconstitucionais, inconvencionais ou ilegais, para a boa e sustentável administração dos recursos naturais como manda o princípio da boa governança, aliás, um dos quatro elementos do moderno conceito de desenvolvimento sustentável que está fixado para além do Relatório Brundtland.

Outras demandas têm buscado responsabilizar aqueles entes públicos e privados que mantém os seus empreendimentos com total conhecimento de que as emissões causam o aquecimento global, que por sua vez gera prejuízos irreparáveis ao meio ambiente e ao ser humano. Com a evolução tecnológica, a previsibilidade acerca dos padrões climáticos torna-se mais factível o que possibilita responsabilizar entes públicos e privados pela não adoção de medidas precautórias e preventivas que poderiam vir a evitar danos altamente previsíveis.

Nesta seara, cresce a importância da public trust doctrine, no direito anglo-saxônico, e que poderia ser desenvolvida nestas plagas, para a qual o Estado tem a responsabilidade e a obrigação em garantir os recursos naturais da nação para as futuras gerações. Não são poucos também os casos climáticos que envolvem a discussão sobre a possível violação de direitos fundamentais e da equidade intergeracional, assim como outros litígios em que é debatida a possível violação da independência dos Poderes do Estado decorrente das ações e das omissões das agências federais e das autarquias referentes ao corte das emissões de gases de efeito estufa e à adoção de medidas de adaptação e de resiliência como dever dos governos.

De acordo com o mais completo e inovador relatório realizado sobre litígios climáticos no mundo, divulgado pela United Nations Environment Programme, em cooperação com o Sabin Center for Climate Change Law, da Columbia Law School, capitaneado pelo professor Michael B. Gerrard, divulgado em maio de 2017, as maiores ocorrências de litígios climáticos ocorrem nos países desenvolvidos no hemisfério norte, na Austrália e na Nova Zelândia, embora, no hemisfério sul, autores estejam instaurando litígios climáticos (United Nations Environmental Programme, 2017, p.5), ainda que evidentemente não exista uma doutrina consistente em nível local, especificamente no Brasil, a fim de servir de referência. Aliás, no país, desde a década de 1980, o tema aquecimento global é pautado com maior ressonância no discurso ambientalista, inclusive com importantes discussões políticas e jurídicas, conforme expressam os altos índices de poluição atmosférica que se verificam em praticamente todos os cantos do mundo, em especial nos grandes centros urbanos (Sarlet & Fensterseifer, 2014, p.64).

Os litígios climáticos, portanto, estão inseridos num contexto normativo que consagra a proteção ambiental como direito humano e fundamental e, como referem Sarlet e Fensterseifer (2014, p.49), a Declaração de Estocolmo das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente (1972) apresenta-se como o marco histórico-normativo inicial da proteção ambiental, projetando-se pela primeira vez no horizonte jurídico, especialmente no âmbito internacional, a ideia em torno de um direito humano a viver em um ambiente equilibrado e saudável, tomando a qualidade do ambiente como elemento essencial para uma vida humana com dignidade e bem-estar.

Neste contexto, de acordo com o já referido relatório, The status of climate litigation: a global review (United Nations Environment Programme, 2017, p.5), existem três categorias principais de questões legais que são discutidas em matéria de litígios climáticos:

  • possibilidade de a controvérsia ser ajuizada, discutida e decidida pelo Poder Judiciário;
  • quais as fontes das obrigações climáticas;
  • quais os instrumentos processuais hábeis para a instauração de litígios climáticos.

E, ainda, não se pode ignorar que existem cinco tendências em matéria de litígios climáticos (cf. United Nations Environment Programme, 2017, p.14):

  • busca por fazer com que os governos fiquem vinculados e cumpram os seus compromissos legais, bem como os assumidos em nível de políticas públicas;
  • identificação do nexo causal entre os impactos da extração de recursos de um lado e as mudanças climáticas e a resiliência de outro;
  • verificação se a quantidade de emissões particulares possui um nexo de causalidade próximo aos impactos adversos das mudanças climáticas;
  • estabelecimento da responsabilidade governamental por falhas omissivas ou comissivas na adoção de políticas de adaptação as mudanças climáticas;
  • aplicação da public trust doctrine nos casos envolvendo mudanças climáticas.

As questões aqui referidas são o ponto de partida para a criação de uma sólida doutrina e jurisprudência de Direito das Mudanças Climáticas no Brasil — que precisa contar com a participação ampla, solidária e fraternal de nossos talentosos jusambientalistas — capaz de auxiliar nosso Estado Socioambiental de Direito no cumprimento efetivo do Acordo de Paris em defesa das presentes e das futuras gerações de seres humanos e não humanos.


Referências
GERRARD, Michael; FREEMAN, Jody (Ed.). Global climate change and U.S law. New York: American Bar Association, 2014.
SACHS, Jeffrey. The age of sustainable development. New York: Columbia University Press, 2015.
SARLET, Ingo; FENSTERSEIFER, Tiago. Direito ambiental: Introdução, Fundamentos e Teoria Geral. São Paulo: Editora Saraiva, 2014.
THE GUARDIAN. We have 12 years to limit climate change catastrophe, warns UN. Publicado em 8/10/2018. Disponível em: https://www.theguardian.com/environment/2018/oct/08/global-warming-must-not-exceed-15c-warns-landmark-un-report. Acesso em: 22/10/2018.
THE NEW YORK TIMES. Major Climate Report Describes a Strong Risk of Crisis as Early as 2040. Publicado em 7/10/2018.Disponível em: https://www.nytimes.com/2018/10/07/climate/ipcc-climate-report-2040.html. Acesso em: 22/10/2018.
UNITED NATIONS ENVIRONMENTAL PROGRAMME -(UNEP). Intergovernmental Panel on Climate Change. Global warming of 1,5C. Disponível em: http://www.ipcc.ch/report/sr15/. Acesso em: 22/10/2018.
UNITED NATIONS. The status of climate litigation: a global review, 2017. Disponível em: <https://www.unenvironment.org/resources/publication/status-climate-change-litigation-global-review>. Acesso em: 30/10/2018.
WEDY, Gabriel. Climate Legislation and Litigation in Brasil. New York: Columbia Law School, 2017. Disponível em: <http://columbiaclimatelaw.com/files/2017/10/Wedy-2017-10-Climate-Legislation-and-Litigation-in-Brazil.pdf>. Acesso em: 30/10/2018.
WEDY, Gabriel. Desenvolvimento sustentável na Era das mudanças climáticas: um direito fundamental. São Paulo: Editora Saraiva, 2018.

Autores

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    é juiz federal, professor da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), pós-doutor, doutor e mestre em Direito e visiting scholar pelo Sabin Center for Climate Change Law da Columbia Law School – EUA.

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