Diário de Classe

É necessário dar uma rasteira na dogmática jurídica rasteira!

Autores

  • Igor Raatz

    é sócio-fundador do Raatz & Anchieta Advocacia professor da Universidade Feevale pós-doutor doutor e mestre em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) e membro do Dasein – Núcleo de Estudos Hermenêuticos e da Associação Brasileira de Direito Processual (ABDPro).

  • William Galle Dietrich

    é advogado doutorando em Direito Civil pela Faculdade de Direito do Largo de São Francisco (USP) mestre em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) como bolsista Capes/Proex membro da Associação Brasileira de Direito Processual (ABDpro) e membro da Rede de Direito Civil Contemporâneo.

31 de março de 2018, 8h01

A crise do ensino jurídico, tantas vezes suscitada nesta coluna, vem assumindo diversas facetas: a cultura manualesca, a doutrina refém dos tribunais superiores, o ensino jurídico que se transformou em curso preparatório para concursos, etc. Muitas vezes, de modo injusto, a dogmática jurídica é condenada como a grande vilã, a responsável por um saber padronizado e acrítico. A culpada pelo estudo estilo “decoreba”.

Não é necessário saber mais do que a superfície dos temas: “isso é assim porque é”. A dogmática jurídica apresenta-se, desse modo, como o avesso do aprofundamento (ou o sinônimo do raso). O aluno não deve pesquisar profundamente, mas, sim, aceitar conceitos e teses jurídicas como certas, porque assim são as coisas.

Às vezes, aqueles que criticam a dogmática jurídica esquecem que é impossível estudar o Direito sem uma espécie de “mínimo é”[1], cujo papel é cumprido exatamente pela dogmática. Em qualquer área do Direito, há uma série de conceitos que precisam ser compreendidos para que possamos falar sobre o jurídico.

Não há como fazer teoria do Direito Civil, por exemplo, sem um conhecimento dogmático mínimo sobre negócio jurídico, personalidade jurídica, propriedade, posse, contrato, dano, culpa, etc. Assim como a dogmática levada ao extremo é ruim, a crítica – no sentido de que não há verdades e tudo deve ser desconstruído – também é perniciosa para o Direito. Por isso, não devemos simplesmente ser contrários à dogmática jurídica. É necessário diferenciar a “boa dogmática” daquela dogmática rasteira, que aceita todo e qualquer conceito jurídico como uma verdade que não pode ser questionada.

É nesse sentido que os estudos desenvolvidos pela Crítica Hermenêutica do Direito são de grande auxílio, na medida em que procuram observar o fenômeno de forma despoluída. Em outros termos, desconfia-se sempre das verdades perenes sobre as questões jurídicas, criando-se, assim, uma dogmática mais aprofundada.

A Crítica Hermenêutica do Direito tem assento na hermenêutica filosófica de Gadamer, cuja missão reside em explicitar a compreensão, diferenciando os verdadeiros pré-conceitos dos pré-conceitos inautênticos. Para tanto, deve-se levar em conta a advertência do próprio Gadamer no sentido de que “enquanto tais, os preconceitos e opiniões prévias que ocupam a consciência do intérprete não se encontram à sua livre disposição.

O intérprete não está em condições de distinguir por si mesmo e de antemão os preconceitos produtivos, que tornam possível a compreensão, daqueles outros que a obstaculizam e que levam a mal-entendidos”[2]. Isso se faz, de modo mais seguro, graças à fecundidade da distância temporal, que permite distinguir criticamente juízos verdadeiros e juízos falsos, prejuízos verdadeiros à luz dos quais compreendemos, e pré-juízos falsos, que conduzem, ao contrário, ao desentendimento[3].

Afinal, Gadamer sabia muito que “a história atua muito seguidamente de modo encobridor, e por isso, com demasiada frequência se afirmam princípios de interpretação que obstruem o acesso às coisas ou às fontes”[4].

O Direito Processual é um bom exemplo de ramo da dogmática jurídica que, por muito tempo, permaneceu alheio a uma abordagem nessa diretriz. Assim, podemos chegar a excelentes resultados se estivermos dispostos a transformar a dogmática e o seu respectivo ensino em uma “boa” dogmática.

Grande parte dos manuais de Direito Processual (rectius, de direito procedimental civil e penal), ensinam que a ciência processual nasceu com a obra de Oskar Bülow, responsável por forjar o conceito de processo como relação jurídica de direito público distinta da relação jurídica de direito material que lhe é subjacente. Normalmente, Bülow é lembrado por operar uma separação entre o direito material e o processo, conferindo a este último uma autonomia científica. Porém, por de trás do conceito, se escondem pré-conceitos que não podem ser ignorados por uma “boa” dogmática.

Bülow não foi somente responsável por enfatizar a separação do processo e do direito material. O jurista alemão também foi responsável por dar ênfase ao caráter público-estatal do processo[5]. Mais do que isso, Bülow também foi responsável por dar maiores poderes do juiz (personificação do Estado na relação jurídica processual) no âmbito dos chamados “pressupostos processuais”, os quais seriam cognoscíveis de ofício pelo julgador, tendo em vista o caráter público do processo, no qual estariam em jogo também interesses do próprio Estado[6].

A ênfase que Bülow dá ao caráter público do processo somente pode ser bem compreendida se levarmos em consideração que o jurista alemão também foi um dos pais do Movimento do Direito Livre[7], o que se evidencia com a obra Gesetz und Richteramt (Lei e Magistratura)[8], publicada em 1885, na qual defendia a concessão de amplos poderes ao juiz, inclusive para julgar contra a lei.

Portanto, não se pode olvidar da presença de um forte componente ideológico na construção teórica realizada por Bülow, a partir da qual o papel das partes no processo ficaria em segundo plano, importando muito mais que ele servisse de instrumento para o próprio Estado. Em outra obra, publicada em 1903, Bülow inclusive chegou a dizer que a função do juiz no processo era a de produzir de forma complementar o direito objetivo, ao invés de tutelar o direito subjetivo ou aplicar a lei[9].

Ora, sabemos de todos os problemas decorrentes da aposta no protagonismo judicial (e na discricionariedade). Na prática, percebe-se o bloqueio de aplicativos como o WhatsApp, a prisão sem o trânsito em julgado, a autorização do aborto e mais uma série de decisões claramente contra legem.

A discricionariedade brasileira, sem nenhum limite, filtro ou controle, criou aquilo que é denominado de “jurisprudência lotérica”. Existem decisões de todos os tipos e tamanhos, que são frutos da discricionariedade, e o trabalho do advogado acaba sendo cada vez mais hercúleo. Com o quadro atual, como é possível que o advogado forneça uma previsão mínima para o seu cliente do possível resultado de um processo?

Com isso, o que a “boa” dogmática pretende mostrar é que, antes de “comprarmos” o conceito de processo, como relação jurídica de direito público, haurido da obra de Bülow, devemos saber o que está encoberto pelo próprio conceito: uma visão hiperpublicista de processo, centrada no juiz, em que o processo é somente um instrumento do próprio Estado, e não uma garantia das partes.

Isso não significa, necessariamente, que tenhamos que abandonar o conceito “relação jurídica” para explicar, por exemplo, os direitos fundamentais das partes frente ao órgão jurisdicional (direito à fundamentação-dever de fundamentação, por exemplo). Porém, para fazermos isso, é preciso dar uma rasteira na dogmática superficial e superá-la com estudos mais sérios e aprofundados. É preciso despoluir os conceitos para que, como diz o professor Lenio Streck, possamos separar o joio do trigo. E que fiquemos com o trigo.

 


[1] Expressão trabalhada pelo Prof. Lenio Streck em diversas obras. Ver STRECK, Lenio Luiz. Verdade e consenso: constituição, hermenêutica e teorias discursivas. 6. ed., rev., mod. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2017.

[2] GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método. Tradução de Flávio Paulo Meurer; revisão da tradução de Enio Paulo Giachini. 7ª ed. Petrópolis, RJ: Vozes, Bragança Paulista, SP: Editora Universitária São Francisco, 2005, p. 391.

[3] ZACCARIA, Giuseppe. Ermeneutica e giurisprudenza: i fondamenti filosofici nella teoria di Hans Georg Gadamer. Milano: Dott. A. Giuffrè Editore, 1984, p. 55.

[4] GRONDIN, Jean. Introdução à hermenêutica filosófica. Tradução e apresentação de Benno Dischinger. São Leopoldo: Editora Unisinos, 1999, p. 189.

[5] ALCALÁ-ZAMORA Y CASTILLO, Niceto. Proceso, autocomposición y autodefensa. México: Universidad Nacional Autonoma de México: 2000, p. 112.

[6] BÜLOW, Oskar. La teoria de las excepciones procesales y los presupuestos procesales. Buenos Aires: EJEA, 1964, p. 292-293.

[7] Deve-se entender por “direito livre” o direito “livre da lei”. Conforme ensina CASTANHEIRA NEVES, António. Digesta: escritos acerca do direito, do pensamento jurídico, da sua metodologia e outros. Volume 2. Coimbra: Coimbra Editora, 1995, p. 193-194).

[8] A versão digital da obra pode ser obtida na internet, no original em alemão: Disponível em: <http://www.archive.org/stream/gesetzundrichte00blgoog#page/n8/mode/2up>. em 7/6/2013.

[9] BÜLOW, Oskar. Klage und Urteil. Apud CHIOVENDA, Giuseppe. La acción en el sistema de los derechos. Bogotá: Temis, 1986, p. 45.

Autores

  • Brave

    é pós-doutor, doutor e mestre em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), professor, advogado e membro do Dasein – Núcleo de Estudos Hermenêuticos e da Associação Brasileira de Direito Processual (ABDPro).

  • Brave

    é advogado, mestrando em Direito Público pela Unisinos, como bolsista Capes. Bacharel em Direito pela Universidade Feevale (Novo Hamburgo/RS). Membro do Dasein – Núcleo de Estudos Hermenêuticos. Membro da ABDPro.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!