Direitos Fundamentais

Direitos humanos, "fascismo societal" e crise de confiança e identidade

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30 de março de 2018, 8h00

A trágica e lamentável execução de Marielle Franco, que gerou repercussão internacional e atraiu já um número impressionante de manifestações em todos os meios de comunicação convencionais e também e especialmente nas mídias sociais e no ambiente digital, representa mais um — dentre tantos — episódio que ilustra o quanto o Estado Democrático de Direito e suas instituições, mas em especial os direitos humanos e fundamentais, são postos à prova diuturnamente.

Isso, por evidente, não é algum triste privilégio brasileiro, visto que infelizmente trata-se de realidade vivenciada por um número cada vez mais expressivo de Estados. Tal circunstância, contudo, não justifica a banalização brutal de fatos dessa natureza e muito menos um “lavar as mãos como o fez Pilates”.

Assim, para quem se faz a pergunta sobre se há ainda uma razão convincente de se escrever, nesta coluna, mais alguma coisa sobre o tema, a resposta é um sonoro SIM.

Sim pelo fato de que tomar posição pública implica em não renunciar de modo resignado e fatalista. Sim também por ser este um locus privilegiado para, no mínimo, buscar contribuir (e nesse sentido mesmo uma reiteração de argumentos e alertas é absolutamente necessária!) para um alerta geral e reflexão. Sim, pois ao fim e ao cabo, trata-se de coluna dedicada ao tema dos direitos humanos e fundamentais e se está a falar de um cenário de grave violação de direitos básicos e que exige toda a atenção de todos, poder público e sociedade.

Com isso, não se está a dizer que todos devam e possam atuar diretamente no enfrentamento do problema, mas que é preciso cultivar uma postura cívica crítica e proativa e não meramente contemplativa mediante um processo de responsabilidade compartilhada (shared responsability).

Por outro lado, o argumento simplista e diversionista de quem sustenta que se está agora (como em outras ocasiões) a hipertrofiar um caso particular, como se tivesse maior peso que o de tantos milhares de homicídios e mesmo chacinas praticadas quase que diariamente no Brasil, não é razoável, pois sempre e em todos os lugares são determinados casos e tragédias que conseguem mobilizar uma reação em cadeia e em larga escala, e são tais casos que obrigam ao menos algum tipo de atitude, ainda que muitas vezes esvaziada logo a seguir.

Mesmo no Brasil, a história demonstra que de situações similares — particularmente impactantes pelas suas circunstâncias — brotaram algumas medidas concretas que, embora não resultando na superação dos problemas, contribuíram positivamente para um processo de maior conscientização e mesmo resultados concretos. Bastaria aqui relembrar, dentre outros exemplos, o combate à violência doméstica, ao trabalho escravo etc.

Isso não afasta o dever de todos, Estado, sociedade e indivíduos, de respeitar (e proteger) a vida e a dignidade e, portanto, o valor singular, atribuído a cada ser humano concreto, levando a sério o que foi solenemente incrustado na Declaração dos Direitos Humanos da ONU, de 1948, no sentido de que todos nascem iguais em direitos e dignidade. A dignidade da pessoa humana não é (e não pode ser, num Estado Democrático de Direito) a dignidade do indivíduo isolado, autocentrado e egoísta, mas, sim, como há muito tempo (1951) decidiu o Tribunal Constitucional Federal da Alemanha, a dignidade do indivíduo socialmente integrado e responsável.

Onde cada vez mais viceja o discurso do ódio e da intolerância e a prática da vingança e do justiçamento (e mesmo linchamento) à margem do Direito e contrário ao Direito, a dignidade de cada um e de todos já está em processo grave de violação coletiva e autofágica. Ademais disso, dignidade da pessoa humana implica respeito e reconhecimento mútuos, num ambiente de alteridade e reciprocidade. Não tratar o outro como um fim em si mesmo e como mero objeto (Kant).

Quando nos defrontamos com discursos (inclusive oriundos de pessoas que ocupam espaços de poder que deveriam justamente combater o ódio e a intolerância) justificando, direta ou subliminarmente, a execução sumária da vereadora e militante Marielle Franco, sob o pretexto de se tratar de alguém que “defende bandidos e traficantes” e “enxovalha” a autoridade que justa e legitimamente é a que mais mata — sob o manto da oficialidade — civis, inclusive chegando a afirmar que a morte foi merecida, a luz vermelha que já se acendeu há muito tempo chega a ser incandescente!

Isso nada tem a ver com o exercício regular do direito, de situações de efetiva legítima defesa (própria e de terceiros) que muitas vezes — aí sim — afastam a ilicitude da intervenção violenta. Da mesma forma, não se trata de afastar a possibilidade de, em certos casos (o que não se verifica no caso em pauta!), políticos e personalidades influentes serem financiados pelo crime, como inclusive já foi revelado em algumas situações devidamente demonstradas.

Mesmo assim, uma coisa não justifica a outra, no caso, pois a justiça pelas próprias mãos é intolerável ao Estado Democrático de Direito.

Um dos problemas principais que casos como o de Marielle tornam visível é o processo, entre nós já amplamente disseminado, do que Boaventura Santos designou de uma espécie de “fascismo societal”, traduzido por um estado de “apartheid social”, que finca raízes mais firmes em contextos marcados por altas doses de exclusão social e que, além disso, acaba por resultar na divisão da cartografia urbana em zonas civilizadas, que ainda vivem sob o signo do contrato social e mantém os parâmetros e procedimentos do Estado Democrático (e Social) de Direito, e zonas marcadas pela exclusão e pela selvageria, caracterizadas por uma espécie de retorno a um estado da natureza à feição de Hobbes, na qual o próprio Estado, a pretexto de salvaguardar a ordem e os direitos fundamentais, passa a atuar de forma predatória e opressiva, além da subversão gradual da ordem jurídica democrática[1].

Com isso, aprofunda-se a crise de efetividade dos direitos humanos e fundamentais, que — e é esse o principal ponto a destacar nesta coluna — desemboca (e entre nós já desembocou) numa crise de confiança no sistema democrático e no Estado de Direito como um todo, mas também numa crescente desconfiança do significado dos direitos humanos e fundamentais.

Basta aqui lembrar manifestações frequentes e amplamente disseminadas no sentido de que direitos humanos são “coisa de vagabundo e para proteger vagabundo”. Ademais disso, aprofunda-se o fosso entre os “com direitos” e os “sem direitos”, outra marca do acima referido “fascismo societal”. Quem — como deveria ser — frui, em termos gerais, dos direitos fundamentais e humanos consagrados na ordem jurídica positiva passa a ser rotulado de privilegiado (e de fato, acaba, por ironia, a sê-lo em certo sentido), ao passo que o outro, o “sem direitos”, passa a ser alguém a ser afastado, excluído, evitado e mesmo reprimido e eliminado.

Por tais razões, aqui esquematicamente expostas, é que o assassinato de Marielle e de tantos outros militantes da causa dos direitos humanos e fundamentais deve merecer especial tratamento (reitere-se, não pelo fato de alguém ser melhor que outrem), pois aqui se agrega um valor simbólico especial (adicional), posto que calar vozes que denunciam pública e corajosamente violações de direitos humanos é atentar também contra manifestações particularmente relevantes para a democracia. Do contrário, teremos poucas chances no sentido de não sucumbir aos discursos e práticas do ódio e da intolerância.


[1] Cf. Boaventura Sousa Santos, Reinventar a Democracia, op. cit., p. 23 e ss.

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