STF no pelourinho

Votos de Celso de Mello desmentem entusiastas do encarceramento

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29 de março de 2018, 12h28

A Constituição Federal redesenhou o Direito do país. Um dos novos vetores mais significativos foi a decisão de delegar ao Poder Judiciário — principalmente ao Supremo Tribunal Federal — a função de decidir todas as questões que dividem os brasileiros. Das mais simples às mais complexas.

Pelo desenho da Constituição que agora chega aos 30 anos, o STF passou a ser o primeiro Poder da República ao absorver incumbências que antes eram do Legislativo e do Executivo. Em um movimento mais recente, o reinado do Supremo passou a ser oprimido por juízes de primeira instância e pelo Ministério Público Federal. Não por previsão da Carta, mas por um mandato mais forte que ela, embora menos legítimo juridicamente: a vontade popular.

A força irresistível do populismo deriva de características comuns à porção majoritária da sociedade: a emoção e a ignorância generalizadas. Vem daí a noção de que fazer justiça é prender ricos e poderosos. Absolver é compactuar com a corrupção. Em um quadro estranho, assassinos, traficantes e estupradores tornaram-se menos odiosos que políticos ou acusados pela prática de crime de colarinho branco.

Esse enredo já se vinha esboçando há tempos, mas atingiu seu ápice na discussão sobre a prisão antes da conclusão do julgamento do acusado. Ou seja: o encarceramento com a confirmação condenatória pela segunda instância.

Como acontece sempre que a emoção toma conta do cenário, o debate público está repleto de manipulações ofensivas e levianas que, em quadro sereno, seriam consideradas risíveis. Dois exemplos desta semana: o juiz Sergio Moro exibiu seu cabedal técnico ao defender emenda constitucional para revogar cláusula pétrea da Constituição. O procurador da República de Curitiba, Carlos Lima, declarou que a revisão do entendimento do Supremo, em pauta, objetiva apenas livrar Lula da prisão. E cita o ministro Celso de Mello como artífice da “farsa”.

Qualquer pesquisa nos arquivos do STF mostra que há acórdãos eloquentes do ministro, a partir de 1989, declarando inconstitucional a execução antecipada (ou provisória) da sentença penal condenatória recorrível. Ou seja, antes do trânsito em julgado. Antes, portanto, de “mensalões”, lavajatices ou da chegada do PT ao poder.

O ministro Celso de Mello nunca se desviou desse entendimento e, pelas poucas entrevistas que dá, pode-se saber que jamais votou em Lula — o que se pode dizer também pelo menos em relação a outros dois alvos do universo justiceiro, os ministros Marco Aurélio e Gilmar Mendes.

A leitura dos votos e acórdãos de Celso de Mello permitem derrubar empulhações, como a de que esperar a condenação definitiva é uma singularidade do constitucionalismo brasileiro. As Constituições democráticas da Itália (1947, artigo 27) e de Portugal (1976, até a 7ª Revisão Constitucional em 2005, artigo 32, nº 2) trazem textos idênticos ao brasileiro.

Já durante o regime ditatorial (e fascista) do Estado Novo (1937-1945), Getúlio Vargas editou o Decreto-lei 88, de 20/12/1937, cujo artigo 20, nº 5, proclamava, ao sabor do perfil autocrático daquele regime político, que se presumia provada a acusação, cabendo ao réu provar a sua própria inocência.

Até mesmo no plano da legislação comum brasileira só se executa uma simples pena de multa criminal depois do trânsito em julgado da sentença condenatória (Código Penal, artigo 50). Quanto às penas de prisão e às penas restritivas de direitos, elas só podem ser executadas depois que transitar em julgado a sentença condenatória que as impôs. É o que determina a Lei de Execução Penal no artigo 105 (pena de prisão) e no artigo 147 (penas restritivas de direitos).

A mesma exigência (trânsito em julgado) se aplica às condenações criminais proferidas pela Justiça Militar (tanto da União quanto dos estados-membros). É o que impõem os artigos 592 e 594 do Código de Processo Penal Militar. Em suma: não se pode reescrever a Constituição e as leis da República sob o pretexto de "interpretá-las". O intérprete encontra limitações em sua atividade exegética, especialmente a limitação de ordem semântica.

Onde se exige trânsito em julgado (que constitui conceito unívoco), não se pode ler, arbitrariamente, "condenação em segundo grau ainda sujeita a recurso". Proceder assim é distorcer a locução constitucional inscrita no artigo 5º, inciso LVII, da Carta Magna brasileira ("Ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória"). Ou seja, é fraudar a Constituição e transgredir direito fundamental assegurado a todos. Até mesmo a Lula.

Mas a discussão é sobre a Constituição e as leis do Brasil. É um truque retórico buscar comparação com o ordenamento jurídico de outros países que adotaram, em tema de presunção de inocência, o critério do "duplo grau de jurisdição". A Constituinte brasileira poderia ter optado pelo "duplo grau de jurisdição". Mas, legitimamente, escolheu o critério do "trânsito em julgado".

Até porque a presunção constitucional de inocência não impede que o Poder Judiciário se valha, como faz frequentemente, do instituto da tutela cautelar penal e decrete, antes mesmo do trânsito em julgado de eventual condenação criminal, a prisão temporária e a prisão preventiva do investigado, indiciado ou réu. Ou seja, não há qualquer incompatibilidade de ordem jurídica nessa hipótese, pois essas e outras modalidades de prisão cautelar não têm fundamento em juízo prematuro de culpabilidade.

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